"Os automóveis já ocuparam espaço demais nas cidades"

Para o engenheiro Lúcio Gregori, ex-secretário de transportes de SP, é fundamental que haja uma mudança completa no transporte coletivo brasileiro

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Fonte: A Tarde  |  Autor: Katia Borges  |  Postado em: 03 de novembro de 2015

Gregori é um dos defensores da tarifa zero no tran

Gregori, um dos defensores da tarifa zero no transporte

créditos: My Fun City

 

Engenheiro pela Poli USP, Lúcio Gregori foi  secretário municipal dos Transportes de São Paulo na gestão Luiza Erundina, e diretor de planejamento da Empresa Municipal de Urbanização, da prefeitura de São Paulo, e da Empresa Metropolitana de Planejamento de São Paulo. Criador do projeto Tarifa Zero, Gregori defende a mudança completa na estrutura do transporte coletivo brasileiro, propondo a  reprodução nacional de  modelos semelhantes aos já implantados em cidades dos Estados Unidos e países da Europa, e inclusive em algumas cidades do Brasil.

 

"O principal  empecilho concreto, e por isso prático, é que essa implantação pressupõe mais recursos do estado, para subsidiar inteiramente o custo do serviço. E isso vai bater em tributação para tanto. E tributação no Brasil virou palavrão". Em Salvador, Gregori participa esta semana da mesa-redonda "As ruas e o direito à cidade", que integra a extensa programação do urbBA[15], Seminário Urbanismo na Bahia, que acontece entre 3 e 6 de novembro na Faculdade de Arquitetura da Ufba. Este evento é considerado uma preparação para o Habitat III, que em outubro do ano que vem será realizado em Quito, no Equador, e discutirá temas relacionados às cidades no mundo. 

 

O senhor é o criador da Tarifa Zero. Em que medida se pode transformar o pensamento das pessoas para que entendam o transporte como um direito social?

Há vários modos. Da perspectiva de um governo ou do aparato de poder à perspectiva da população. Do aparato do poder, ele pode, por meio da comunicação e propaganda  esclarecedoras e educativas, mostrar o significado da Tarifa Zero, por exemplo, como  característica do transporte como direito. Isso aconteceu em 1990, no governo Erundina, quando propusemos a Tarifa Zero em julho daquele ano. Após campanhas  pela TV, debates etc., uma pesquisa do Instituto  Toledo Associados,  em dezembro, indicou que 76% eram a favor da reforma tributária para obter recursos para a T-0 e 68% eram a favor de que a Câmara Municipal votasse a favor. Apenas 25%, contra. A Câmara sequer votou. De parte da população, é semelhante, só que os recursos  são menores. O MPL nasceu reivindicando a gratuidade para estudantes. Após debate que fizemos em outubro  de 2005, em 2006/2007, adotaram a T-0 como proposta. Em oito  anos chegamos a 2013, e hoje a Tarifa Zero é um assunto nacional, e o Congresso incluiu  dia 15/9/2015 o  transporte como direito social no artigo 6º da Constituição.

 

Quais os empecilhos à implantação do sistema? Muitos o confundem com a simples gratuidade do transporte.

O principal  empecilho concreto, e por isso prático, é que essa implantação pressupõe mais recursos do estado (em geral) para subsidiar inteiramente o custo do serviço. E isso vai bater em tributação para tanto. E tributação no Brasil virou palavrão, pois os que "têm mais" pagam menos impostos proporcionalmente, mas venderam essa ideia para os que "têm menos". Porque no Brasil os impostos (cerca de 47%) são mais  sobre consumo e menos sobre renda, patrimônio, herança, fortuna etc. Outro empecilho decorre de um modo de organização socioeconômica que passa a ideia de que esse serviço deve ser resolvido a mercado, como tantos outros serviços e bens de consumo. Ou seja, a mobilidade é de responsabilidade individual e deve ser paga. Isso foi construído historicamente. Tanto que muito antes das aglomerações urbanas de certo porte, o que ocorria era a imobilidade da mão de obra. Morava-se nas colônias agrícolas e nas vilas industriais. Com o desenvolvimento, essa solução não era mais possível nem conveniente para indústria e comércio urbanos. Daí se cria o transporte como responsabilidade do estado, mas operado  por empresas privadas, e cria-se a construção histórica. A tarifa se transforma num verdadeiro fetiche. Para o empresário, porque é o oxigênio do seu negócio; para os governos, porque aumentar a tarifa é sempre desgastante politicamente; e para o usuário, porque sem pagar por ela não terá mobilidade necessária e suficiente. Essas questões até dariam para desenvolver toda uma "psicanálise" desse processo e como isso impregnou a mente das pessoas.

 

Há exemplos de cidades que conseguiram implantar esse modelo?

No Brasil, algumas, como Agudos (SP) , Ivaiporã (PR) e outras mais recentes, como Maricá (RJ), Muzambinho (MG). Nos EUA, cerca de 32 cidades têm o chamado fare-free. Na China, Changdhu; na Europa,  Thalin, capital da Estônia, para dar alguns exemplos. Hasselt, na Bélgica, teve gratuidade de 1997 até 2014, quando, por conta do aperto fiscal na Europa em geral, voltou a cobrar um euro. Aliás uma demonstração inequívoca de disputa de recursos do estado na crise europeia. Os bancos parece que levam a melhor...

 

Entende-se que a questão do transporte urbano, gratuito ou não, passa necessariamente por pensar o sistema de transporte como um todo, o que inclui a mobilidade urbana. Há muitos projetos. Qual deles o senhor considera mais viável?

O melhor é o transporte coletivo sobre trilhos e sobre pneus com tração elétrica e, nesse último caso, com ônibus  de última geração que não necessitam de alavanca captadora, ou híbridos diesel elétricos;  em seguida, os individuais ou de pequenos coletivos não motorizados, como bicicleta e  os de  dois a três lugares com  tração humana e o andar a pé. Os coletivos têm a vantagem de se adaptar melhor às variações de clima (chuva, frio e sol intensos) e de permitir deslocamentos em massa, indispensáveis em algumas situações .Além de serem mais abrangentes quanto à idade, capacidade física dos usuários etc. Fora os avanços tecnológicos que poderão surgir, como energia gerada por tratamento de  células de hidrogênio, por exemplo. Certamente haverá a disputa de mercado para o individual motorizado, via os car-sharing  sem motorista etc. Mas o individual motorizado, no conjunto, sempre será menos saudável ambientalmente.

 

Nesse sentido, como o senhor vê a abertura das ruas aos pedestres, como aconteceu recentemente na Avenida Paulista, e o incentivo ao ciclismo urbano?

Acho que deveria ser aumentado radicalmente o espaço das calçadas, ciclovias e skatevias, de modo que, no dia a dia, e não só aos domingos, a distribuição desse espaço mudasse hábitos  de mobilidade. O transporte individual motorizado, em particular os automóveis, já ocuparam espaço demais nas cidades e na vida das pessoas. Isso alterou  substantivamente as metrópoles, quase que exclusivamente em  seu benefício.

 

O senhor acompanhou as jornadas de junho, em 2013. Qual o paralelo que, em sua opinião, pode-se traçar com a recente ocupação das ruas de verde e amarelo e com os chamados "panelaços"?

Penso que em ambos os casos as ruas estão dizendo da  falência do sistema representativo tal com está posto. As diferenças se situam nas razões desse entendimento. As de 2013 tiveram o estopim do aumento tarifário e, depois,  abriram-se em múltiplas reivindicações. Elas  não tinham a contaminação de disputa eleitoral neste ou naquele nível de poder, como as manifestações verde-amarelas tiveram, além de  partidarizadas contra esse ou aquele partido, liderança etc. Note-se que o centro das manifestações de 2013 é a reivindicação de serviços públicos em qualidade e quantidade, "padrão Fifa", como cunhado à época e sem partidarização de "a favor ou contra x, y, z". Interessante notar, porém, que pesquisas feitas por professores da USP mostraram que surpreendentes 88,60% e 84,30% dos manifestantes de rua de  2015 acreditam, respectivamente, na universalidade e na gratuidade do serviço de saúde; 92,30% e 86,90%, na universalidade e gratuidade da educação; 21%, na gratuidade dos transportes urbanos; a serem  somados a  29% na gratuidade com ressalvas. É bom se pensar sobre isso. Outra diferença, possivelmente devida à não contaminação eleitoral-partidária, é que  em 2013 houve uma enorme vitória concreta; mais de cem cidades brasileiras revogaram o aumento de tarifa dos transportes coletivos. E em 2015?

 

O senhor tem acompanhado a movimentação em torno de um possível impeachment de Dilma Rousseff e da cassação do mandato de Eduardo Cunha. Há, em sua visão, um avanço em relação ao combate à corrupção no país?

São duas coisas diferentes. Impeachment  e cassação também estão em escalas diferentes. As discutidas pedaladas fiscais  dão margem a muita discussão se são causa de  impeachment ou não. Até onde eu saiba, não. Outros governos fizeram suas pedaladas pelo que li no noticiário sobre a recente e açodada aprovação de contas de governos passados pela Câmara Federal. Contas na Suíça com origem discutível podem dar em cassação e prisão. Há disputa política menor nessa discussão toda. Agora, sem dúvida, há enorme avanço no desvelar da corrupção no país. E fica evidente pela primeira vez, que me lembre nos meus (não poucos) anos de vida, que a corrupção é de múltiplos agentes do  setor privado, de políticos de vários partidos e de agentes do estado, e não  do estado como um todo. Curioso observar que a classe média clássica, chamemos assim, tem que reconhecer que os presos são, em sua maioria, oriundos dessa classe. Diretores, alto escalão de empresas privadas ou estatais, políticos etc. Quem sabe um pouco de sua ira não é derivada dessa constatação incômoda? O importante é que corrupção de certo tipo passou a ser muito arriscada no país.

 

Em que ponto nos perdemos da cidade como espaço de convivência e, sobretudo, de trocas filosóficas, como esta era, a ágora, em sua concepção original?

Nos perdemos no  ponto em que o mais importante de tudo passou a ser   acumular riqueza, tudo isso exacerbando e sendo  exacerbado  pelo individualismo egoísta e o autocentrismo envaidecido, podendo-se  acabar até mesmo com o meio ambiente indispensável à sobrevivência. Penso que aquela discussão sobre o espaço da rua é um exemplo acabado disso. Ao trocar o espaço da rua como convivência por  espaço de competição, perdeu-se a cidade como troca de experiências  de vida, de diferentes filosofias e consequentes aprendizados que daí derivam. Alguém já disse que a cidade é uma das mais maravilhosas invenções da humanidade para melhorar suas condições de vida. Transformá-la em território de disputas como as que citamos é destruir o potencial dessa incrível invenção humana.

 

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