Jane's Walk na capital federal: caminhada e olhar crítico sobre a cidade

O Jane's Walk é um movimento criado em Toronto (Canadá), inspirado nas ideias de Jane Jacobs, que promove caminhadas e ocorre em várias cidades do mundo

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Uirá Lourenço  |  Postado em: 07 de maio de 2015

Turma reunida no Jane's Walk, que ocorreu no últim

Turma reunida no Jane's Walk, que ocorreu no último sábado

créditos: Reprodução/Mobilize Brasil

 

No dia 2/5, ocorreu a segunda edição do Jane’s Walk em Brasília, com participação expressiva de pessoas interessadas em caminhar e discutir a cidade. O evento faz parte de um movimento que ocorre em várias cidades pelo mundo, inspirado na urbanista Jane Jacobs, que incentiva grupos a organizarem caminhadas para observar a cidade e integrar a comunidade.  

 

Em dez pontos de parada no percurso, foram debatidos vários aspectos relevantes da cidade, tais como: estado de conservação e largura das calçadas, rampas de acesso, sombreamento, uso do espaço público, diversidade de usos na cidade e política de estacionamento. O trajeto apresentou diversidade de ambientes propícia a reflexões, desde calçadas reformadas ao longo da W3 Sul até o ponto crítico no setor de rádio e tv sul, com calçadas totalmente destruídas em razão da circulação e do estacionamento de carros.

 

                           Trecho do percurso com calçada em bom estado                                  Calçada em ruínas, no setor de rádio e tv sul

 

Durante o trajeto, houve uma demonstração evidente dos malefícios causados pelo modelo de cidade pensada para o automóvel. A inacessibilidade no trajeto entre o setor de rádio e tv e o parque da cidade foi, por acaso, testada por um cadeirante. Durante os debates do grupo, Giovani era empurrado por Vânia na cadeira de rodas. Circulando na rua, em meio aos carros e, mais à frente, obrigado a grande esforço para transpor os desníveis das calçadas sem rampa.

 

As dificuldades do casal e o relato sobre o que pensam das condições da cidade estão registrados em vídeo. Vale frisar que o hospital Sarah Kubitschek, referência em reabilitação, localiza-se nas proximidades.

 

No início de 2014, crianças aplicaram “multas cidadãs” em vários carros estacionados sobre calçadas e canteiros, no mesmo local por onde passou o grupo que fez a caminhada (https://www.youtube.com/watch?v=vxUVsWKz-uQ). Passado mais de um ano, a situação continua igual, totalmente inacessível. Na verdade, a situação parece ter piorado em razão da contínua passagem de carros.

 

Ao final do passeio, os participantes preencheram formulário de avaliação. Na pergunta sobre algum fato que tenha causado surpresa ou tenha desagradado, boa parte citou o péssimo estado de conservação das calçadas e a invasão do espaço público pelos carros. Sobre pontos positivos do passeio, relatou-se o melhor conhecimento da cidade, além da qualidade da discussão sobre mobilidade urbana.

 

Jane Jacobs: crítica ao urbanismo tradicional

O Jane’s Walk é um movimento criado em Toronto (Canadá), inspirado nas ideias de Jane Jacobs, que promove caminhadas e ocorre em vários locais: em 2014, foram mais de mil passeios em 134 cidades de 25 países.

 

Jane Jacobs foi uma ativista que analisou a dinâmica das cidades, por meio de observações nas caminhadas cotidianas, em especial no bairro onde morava, em Nova York. Seu livro “Morte e vida de grandes cidades” foi originalmente publicado em 1961 e revolucionou o planejamento urbano. Com uma visão aguçada sobre os espaços públicos e sobre as relações humanas na vizinhança, Jacobs combateu o modelo de cidade centrada no automóvel. Seu ativismo ajudou a conter a expansão de vias expressas e rodovias em Nova York e Toronto, cidades em que morou.  

 

A introdução do livro deixa claro o lado combativo de Jacobs já nas primeiras linhas: “Este livro é um ataque aos fundamentos do planejamento urbano e da reurbanização ora vigentes.” O senso crítico, no entanto, não impede que aflorem passagens líricas. Ao comentar sobre a suposta desordem na cidade tradicional, caracterizada pela complexidade de uso das calçadas que garante segurança, compara o movimento de pedestres a uma dança (não sincronizada ou ensaiada): “... um balé complexo, em que cada indivíduo e os grupos têm papeis distintos, que por milagre se reforçam mutuamente e compõem um todo ordenado. O balé da boa calçada urbana nunca se repete em outro lugar, e em qualquer lugar está sempre repleto de novas improvisações”.  

 

Também enriquecem o livro os exemplos concretos, vivenciados pela autora. Ao explicar sobre os moradores que tomam conta voluntariamente das ruas, Jacobs narra o fato de, quando estava em um ponto de ônibus, uma mulher ter gritado da janela de um prédio para alertar que o ônibus não passava ali aos sábados.  

 

Exercício da cidadania

As duas edições do Jane’s Walk realizadas em Brasília foram oportunidades não apenas de observar e discutir a cidade, mas também de reunir pessoas preocupadas com a qualidade de vida e com as condições do espaço público. Nesta segunda edição, contou-se com a presença de oito estudantes de arquitetura, que certamente terão um olhar diferenciado em projetos futuros. Pelos comentários ao final da caminhada, percebe-se o despertar para o senso crítico e para outros possíveis rumos na cidade.

 

Assim como em outros centros urbanos, Brasília vivencia um gradativo aumento de ações de indivíduos e grupos que buscam transformar a cidade, interferir no espaço urbano para torná-lo mais receptivo às pessoas. Hortas vêm sendo espalhadas por moradores nos espaços públicos (https://www.youtube.com/watch?v=S0-qXzIbfG4). Um grupo da asa sul inconformado com a inacessibilidade promoveu, recentemente, uma ação em que convidou outras pessoas a circularem pelas calçadas com vendas nos olhos, cadeira de rodas e bengalas. Já um cidadão morador do bairro sudoeste, inconformado com insegurança na travessia, resolveu comprar tinta e pintar a faixa para pedestres. Nas vias do Distrito Federal, há ciclovias que terminam de forma brusca, sem qualquer sinalização indicadora do caminho a seguir. E ainda há as vias “verdes” sem ciclovia. Nestes locais, também há cidadãos atentos e que cobram a continuidade no trajeto.

 

                          Pintura questiona o término repentino no caminho                                    Questionamento na EPTG, “Linha Verde”

 

A integração da vizinhança e a realização de ações práticas têm tudo a ver com o intuito das caminhadas inspiradas em Jacobs. Além de pôr a mão na massa – pintar faixas de pedestres, ciclofaixas e criar hortas comunitárias e locais de convivência – é recomendável registrar as queixas junto ao poder público e cobrar as melhorias necessárias. Além dos canais de ouvidoria, pode-se enviar reclamações e propostas aos e-mails dos órgãos gestores e, ainda, buscar informações por meio da lei de acesso à informação. Outra boa iniciativa que contribui para o exercício de cidadania é o Cidadera (https://cidadera.com), que permite o registro de queixas sobre diversos problemas na cidade, inclusive referente a calçadas e ciclovias destruídas. Ao poder público cabe, então, ficar atento às reclamações e tomar as devidas providências.


Com largas avenidas e amplos espaços ao automóvel, Brasília cede espaço, gradativamente, ao clamor por uma cidade mais humana, com mais espaços de convivência e de circulação a pé. Nada mais justo, afinal somos todos pedestres. Mesmo os que usam principalmente carro, ônibus, metrô ou bicicleta, em algum momento se tornam pedestres e precisam de calçadas adequadas, sinalização e um ambiente acolhedor.


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