Assim como temos acompanhado no noticiário brasileiro, nos Estados Unidos também há quem discorde dos programas promovidos pela prefeitura de Nova York para diminuir a "carrodependência", e privilegiar pedestres e ciclistas. No último final de semana, por exemplo, o "Jornal Nacional" (TV Globo) exibiu em rede nacional uma extensa matéria para mostrar “os acidentes provocados pelo crescente uso da bicicleta na cidade”.
A matéria pode ter acertado ao destacar a importância dos ciclistas obedecerem às regras de trânsito, tanto por questões de segurança, como para manter uma relação saudável de convívio com pedestres e motoristas, mas erra ao ignorar os enormes ganhos que os novaiorquinos tiveram com as transformações promovidas na cidade de 2005 até hoje. Também falha ao computar acidentes de bicicleta e negligenciar o crescimento no uso da magrela, a diminuição do número de acidentes com veículos motorizados, o total de acidentes no trânsito, os benefícios com a saúde conquistados com os novos programas, entre outros fatores.
O texto da reportagem destaca que trezentas e quarenta mil viagens por dia são feitas de bicicleta na metrópole americana. Segundo a matéria a febre das bikes teria vindo com a abertura das novas ciclovias e com o eficiente sistema de bicicletas compartilhadas. De fato o número de usuários de bicicletas cresceu muito em Nova York nos últimos anos com a política de incentivo ao modal (inclusive com a construção de ciclovias) e diminuição do limite de velocidade para veículos automotores na cidade, mas a cultura ciclistica novaiorquina vem de longa data, crescendo muito desde a década de 1980. Ou seja, não é um fato novo.
Bikes compartilhadas
Outro ponto destacado pelo JN foi o grande número de usuários do sistema de bicicletas compartilhadas na cidade - hoje, 120 mil pessoas pagam o equivalente a R$250,00 por ano e podem usar as bicicletas compartilhadas quantas vezes quiserem. A matéria relaciona o sucesso do programa ao aumento do número de acidentes, seja quando os ciclistas aparecem como vítimas da violência no trânsito, ou também como responsáveis por ela. Não há, no entanto, um comparativo com o número absoluto de acidentes antes do início dos programas de incentivo ao uso da bicicleta, a discriminação dos acidentes causados por automóveis em comparação com aqueles causados por bicicletas ou a gravidade em cada caso.
Em recente visita ao Brasil, o ex-diretor de Políticas Públicas do Departamento de Transportes de Nova York, John Orcutt, falou ao Mobilize sobre o programa Vision Zero, implementado pela prefeitura daquela cidade durante a gestão De Blasio e cujo objetivo é zerar as mortes em acidentes de trânsito. Entre as ações promovidas pela gestão pública estão a diminuição do limite de velocidade em todo o perímetro da cidade; a ampliação de calçadas e ciclovias e a promoção do uso da bicicleta. John apresentou números que comprovam o sucesso do programa, mas que aparentemente foram desconsiderados pela reportagem.
A matéria veiculada na tevê aponta que no ano passado inteiro, 12 ciclistas morreram nas ruas e que nesse ano, já foram 18 mortes e 3.400 feridos. Por outro lado, parece que a produção esqueceu de verificar os dados oficiais da prefeitura de Nova York que apontam as colisões com automóveis como a principal causa de mortes em crianças com menos de 14 anos e a segunda para idosos.
Dado alarmante, disponível inclusive no site da prefeitura novaiorquina, é que a cada duas horas uma pessoa morre ou é seriamente ferida por veículos automotores na cidade, que conseguiu, com a implementação do programa Vision Zero (da qual faz parte inclsuive o fomento ao uso da bicicleta), reduzir em 34% as mortes em acidentes de trânsito desde que foi implementado em 2005. Não são apenas uma ou duas vidas que foram salvas, mas 34% do total das mortes causadas por colisão com veículos automotores foram evitadas!
A reportagem ignorou completamente informações como o crescimento do número de viagens de bicicleta na cidade e o número total de acidentes graves ou fatais em Nova York comparando os dois ou três últimos anos. Não é novidade para ninguém que um dado fora de contexto pode levar a uma conclusão equivocada.
A matéria destaca ainda os casos em que o pedestre é a vítima de acidentes envolvendo ciclistas, que também teriam aumentado. No ano passado, 316 pessoas ficaram feridas em acidentes com ciclistas. E uma morreu. Este ano, dois pedestres teriam morrido no Central Park. Para comentar o caso entrevistaram uma cidadã chamada Cindy, que diz que um ciclista quase passou por cima dela e acha que as bicicletas são tão perigosas quanto os carros. A afirmação não foi feita por nenhum especialista e desconsidera vários fatores como a velocidade máxima que uma bicicleta pode atingir, seu peso, a gravidade dos acidentes em bicicleta comparando com os acidentes envolvendo carros e a probabilidade de morte em um impacto comparando os modais. Como contraponto, que tal entrevistar um pedestre que tenha sido ameaçado por um carro, um caminhão, uma moto ou um ônibus? No caso a opinião de que "bicicletas são tão perigosas quanto carros" de um pedestre aparece como se fosse de um especialista, mas não é.
Regras de trânsito
As regras para se conduzir uma bicicleta na cidade americana são as mesmas daquelas para os condutores de veículos automotores: não passar no sinal vermelho, não andar na calçada, nem na contramão e as atitudes em todos os casos são passíveis de multa. Assim como no Brasil, em Nova York é fácil flagrar o desrespeito às lei: ciclistas pedalam no sentido contrário ou cruzam o sinal fechado. O que a reportagem esqueceu de dizer é que muitas vezes os ciclistas tem este comportamento como uma forma de se proteger, já que não se sentem seguros quando compartilham as vias com veículos que pesam toneladas e atingem velocidades muito maiores que as bicicletas. Não considerou que condutores de veículos motorizados muitas vezes jogam seus carros em cima das bicicletas e não resta outra saída ao ciclista senão garantir ele mesmo sua própria segurança.
Outra entrevistada, chamada simplesmente de Megan na reportagem, confessa que comete infrações de trânsito em bicicleta de vez em quando, quando não vê ninguém. O Jornal Nacional perguntou se não é perigoso e ela diz: "Só um pouquinho", e assim termina a matéria. Será que a entrevistada "faz isso" de vez em quando por puro capricho? Talvez tenha faltado um pouco de equilíbrio nos depoimentos e a edição tenha passado a idéia equivocada de que os ciclistas são pessoas que colocam suas próprias vidas e a dos outros em risco por puro prazer, sendo um tipo de maluco assassino suicida sobre duas rodas flamejantes. Faço aqui um desafio: pergunte a um amigo ciclista se isso é verdade!
Leia e assista a reportagem da TV Globo clicando no link.
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