Em seu blog Pé de Igualdade, a arquiteta Meli Malatesta dedica um texto às observações do escritor Álvares de Azevedo sobre a cidade de São Paulo por volta dos anos 1840. "As calçadas do inferno são mil vezes melhores", dizia o poeta romântico no período em que estudava na Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Graças ao café, e depois, à indústria, a cidade enriqueceu e chegou a ter uma urbanização bem consolidada, incluindo as calçadas, que foram inteiramente renovadas a partir dos anos 1860. E basta rever as fotos da cidade na virada do século para confirmar essa evolução positiva, que teve um marco na criação da avenida Paulista e durou até os anos 1950. A partir daí, com a expansão da área urbanizada e o aumento da frota de automóveis e ônibus, os pedestres foram perdendo prestígio e as calçadas reduzidas, abandonadas ou simplesmente eliminadas. Tudo para abrir mais espaço ao tráfego motorizado e facilitar a entrada e saída dos carros nos imóveis. E o que era calçada se tornou rampa de garagem.
O fenômeno repetiu-se, com maior ou menor intensidade, em todas as grandes cidades do país, transformando o caminhar numa aventura arriscada, quase um rally urbano a pé. O resultado foi o abandono das ruas e o crescimento do uso do carro, mesmo para pequenos trajetos, num cíclo que entupiu as ruas de veículos e acelerou mais ainda a degradação urbana. Um ciclo vicioso.
Há duas semanas a cidade está debatendo a proposta de implantar uma ciclovia na velha Paulista, via relativamente bem sinalizada, com calçadas nota 9, segundo o Levantamento Calçadas do Brasil. Mas, pedalar ali é mesmo uma tarefa dura e arriscada, o que explica a invasão de bikes pelas calçadas, um compartilhamento forçado do espaço público para preservar a vida de quem usa a bicicleta.
Hoje 75% do espaço da avenida é dedicado a pistas para carros. Além disso, o sistema de tráfego conta com duas vias paralelas de mão única, cada uma delas com mais três pistas. No total, são 12 pistas exclusivas para automóveis no corredor da Paulista. E nenhuma para bicicletas.
Proposta do arquiteto Ricardo Correa (TC Urbes) para a Paulista: ônibus à esquerda e ciclovia à direira
Semana passada, o portal Uol publicou um texto do jornalista Wellington Ramalhoso que lembra o projeto de transformação da avenida em um boulevard de tráfego leve, com prioridade para os pedestres, lá anos 1970. O projeto era assinado pelo engenheiro Figueiredo Ferraz e pelo arquiteto Nadir Mezerani. A proposta, chamada Nova Paulista, sofreu forte oposição e foi executada em um trecho de apenas cem metros.
Passados mais de 40 anos, com metrô no subsolo e sempre repleta de pedestres, a Paulista parece lembrar e reiterar sua vocação de local de convivência e passeio. E pede mudanças: ciclovias, pistas para transporte coletivo, calçadas bem mantidas e árvores, muitas árvores, para nos proteger do calor e conservar os ciclos naturais da água.
E onde se lê Paulista, leia-se qualquer grande avenida do Brasil.
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