O que era para ser um projeto revolucionário de mobilidade urbana em Paris, amenizando problemas ambientais, de estacionamento e tráfego intenso, terá de se esforçar muito para não virar um retumbante fracasso – ao menos é para onde parece caminhar o Autolib’.
A versão automobilística do projeto surgiu na esteira do sucesso do Vélib, de 2007, em que usuários de bicicletas as compartilham em estações espalhadas por toda a cidade, pagando uma taxa fixa mais um adicional pelo tempo de uso – Vélib vem da junção de “vélo” (bicicleta) e “liberté” (liberdade); Autolib’ apenas troca a bicicleta pelo carro.
Mas não é um carro qualquer. Para não poluir, é um carro elétrico, para quatro pessoas. Vem com bancos de couro, GPS, vidros, travas e espelhos elétricos. Como no Vélib, tem estações por toda a cidade, sendo que cada uma delas é um ponto de carregamento.
No entanto, o que o projeto, que começou a ser implementado no final de 2011 parece não ter previsto é que: 1) Cuidar de carros não é tão simples e barato quanto de bicicletas; 2) O usuário da bicicleta tende a ter mais consciência de coletividade que o de carros, ainda mais o francês, sabidamente desapegado de veículos sobre quatro rodas.
Estação do Autolib' à noite: sem nenhum carro. Foto Luís Perez/Carpress
Resultado: não é difícil ver os outrora badalados Blue Cars atravancarem a calçada, como uma sucata velha, em diversos pontos da cidade – flagramos um deles em pleno Boulevard Saint-Michel, em frente ao Jardim de Luxemburgo. Mesmo os que se encontram em uso invariavelmente estão sujos, malcuidados e cheirando mal, como se houvesse excesso de umidade.
Alguns encontramos simplesmente depredados – quando os encontramos, pois é normal ver estações simplesmente vazias. Isso a despeito de haver atendimento 24 horas, sete dias por semana, com um sistema on-line de localização e reserva dos veículos, que pode ser acessado tanto pela internet quanto por meio de um aplicativo para smartphone.
Por fim, alguns dos terminais de obtenção e carregamento dos crachás (badges) usados para liberar e abrir os carros, que têm paredes de vidro e cobertura, viraram abrigo de moradores de rua – é uma forma de se proteger do vento gelado, muito embora nesta época do ano nem esteja tão frio (algo entre 12ºC e 24ºC).
Dificultar o acesso
Com tantas encrencas – e possivelmente custos –, é compreensível que os administradores do Autolib’ procurem restringir o acesso ao sistema. Por si só o acesso a um veículo automotor deve ser rígido. Seus atendentes, no entanto, parecem estar instruídos a dificultar ainda mais o acesso quando se trata de um estrangeiro.
Para começar, diferentemente do que ocorre em locadoras de automóveis convencionais, em que a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) brasileira é suficiente para alugar um carro, no Autolib’ a carteira internacional é expressamente exigida. Até aí, nada mais justo.
No Detran-SP (Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo), a PID (Permissão Internacional para Dirigir) não é barata. Custa R$ 221,54. Tive o cuidado de tirá-la para ter a experiência de usufruir do Autolib’. Fiz todo o processo pela internet (enviei os documentos anexados etc.).
Começou então minha saga pelos terminais de atendimento. Na primeira vez, munido apenas com a CNH brasileira, tentei tirar o crachá. Não podia. Tinha de mostrar mais uma vez (embora os tivesse enviado, com o cadastro aprovado) os documentos no terminal.
Volto no dia seguinte ao terminal e aí vem a parte bizarra. Munido de CNH, PID, passaporte e tudo mais, o atendente pede que os documentos sejam novamente escaneados (há uma câmera própria para isso no terminal, em que tudo é feito por videochamada).
Ao final do processo, ele diz: “Veja bem. Seus documentos estão todos em ordem, mas não são suficientes. Sinto muito. Para obter o badge, você precisa de uma autorização especial para dirigir em Paris. Essa autorização você pode conseguir na prefeitura [são diversos prédios da Mairie de Paris pela cidade] ou na polícia”. Autorização especial??? “Sim. Sinto muito.”
Morador de rua usa terminal de atendimento como abrigo. Foto Luís Perez/Carpress
Àquela altura, em pleno domingo, os prédios da prefeitura estavam fechados. Fui direto à polícia (daí minha suposição: se eu não fosse exatamente uma pessoa idônea, a última coisa que iria querer fazer era ir até a polícia). Extremamente cordial e solícito, o policial disse que aquela exigência não procedia.
Recorri então às redes sociais. Pelo Facebook foi realizado um atendimento mais adequado, esclarecido que essa “autorização especial” de fato não existe e liberado o badge para uso do Autolib’ por este repórter. Fora o estado geral do carro, de fato é um grande achado para a cidade. O senão fica por conta da execução.
No final das contas, fica a impressão de que tudo o que o Autolib’ puder fazer para restringir o uso dos veículos por estrangeiros, a fim de evitar maiores encrencas, ele fará. O estado em que se encontram sistema, carros, estações e terminais, bem como essa questão da burocracia, foram encaminhadas à área de imprensa do Autolib’.
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