Faltando três semanas para o começo da Copa do Mundo de 2006, no dia 28 de maio, a chanceler Angela Merkel e seu ministro de Transportes partiram da cidade de Leipzig rumo a Berlim a bordo de um trem de alta velocidade. Anteriormente, o trecho de 200 quilômetros era feito em mais de duas horas, mas com o novo ICE (sigla para um dos modelos de trem de alta velocidade alemão), o tempo de viagem caiu para uma hora e meia.
Ao chegar em Berlim, a chanceler e o ministro inauguraram a Hauptbahnhof, a estação central da cidade, a principal obra de um pacote de 10 bilhões de euros que foram usados para modernizar a malha ferroviária alemã. A estação em si custou 700 milhões de euros (cerca de R$ 2 bilhões) e começou a ser planejada no início dos anos 1990.
O diretor da Deutsche Bahn responsável por Berlim, Ingulf Leuschel, lembra do sufoco para deixar tudo pronto na última hora. Nos últimos meses, havia funcionários trabalhando durante 24 horas. A permissão oficial para inauguração da estação aconteceu a menos de 24 horas de Angela Merkel embarcar.
Ingulf Leuschel, da Deutsche Bahn, lembra que estação de Berlim ficou pronta na última hora
"Nós estávamos sob grande pressão para terminar a Hauptbahnhof em 2006. Já em 2004 a situação era bastante clara: nós precisamos ter mais infraestrutura para lidar com a Copa do Mundo", disse Leuschel à BBC Brasil.
A Berlim Hauptbahnhof recebeu mais de meio milhão de pessoas por dia durante a Copa de 2006, e foi um dos pontos mais visitados da Alemanha - tanto entre pessoas que queriam ver a estação como as que precisaram pegar suas conexões lá. Com 1,2 mil trens passando por lá diariamente, é uma das maiores estações da Europa.
"Foram tantas pessoas visitando Berlim, mesmo pessoas sem ingressos para os jogos. E com o sistema velho de trens, teria sido impossível lidar com essa multidão."
Leuschel conta que sem a Copa do Mundo, a estação teria ficado pronta pelo menos dois anos depois. O torneio serviu de incentivo para antecipar as obras.
Durante a Copa
Tragédia e erro
Nem tudo foi perfeito na inauguração da Berlim Hauptbahnhof.
Uma grande festa foi preparada para a abertura, com a chegada da chanceler Angela Merkel por trem e um tapete vermelho para os primeiros passageiros. Mais de 500 mil pessoas visitaram o local no primeiro fim de semana de funcionamento. Mas o evento ficou marcado por uma tragédia: um adolescente com problemas mentais esfaqueou 28 pessoas.
A estação também foi alvo de piadas entre alguns devido a um erro de engenharia: a cobertura das plataformas superiores acabou ficando mais curta do que o inicialmente planejado. Com isso, os passageiros dos vagões dianteiros dos trens - geralmente os da primeira classe - acabavam se molhando em dias de chuvas ao desembarcar.
Para remediar a situação, durante meses, a estação empregou funcionários com guarda-chuvas para receber aqueles que haviam pago mais caro para viajar.
Um relatório do governo alemão feito após o Mundial considerou que o país passou no teste com sua infraestrutura de transportes.
"O fardo extra na malha de transportes que aconteceu com o aumento no número de espectadores e visitantes foi significativamente maior do que se esperava. Um milhão de turistas estrangeiros eram esperados para a Copa do Mundo. No entanto, mais de dois milhões vieram para a Alemanha", afirma o documento do ministério do Interior alemão.
"Frequentemente se previu problemas consideráveis no setor de transportes por conta da Copa do Mundo. No entanto, isso quase não ocorreu."
Esta foi a primeira Copa em que o ingresso do jogo dava direito a transporte público gratuito no dia da partida. As autoridades tinham a meta de transportar com sua malha pública pelo menos metade do total de torcedores presentes. A meta foi cumprida com folga - mais de 70%. No transporte entre as cidades, foram acionados 370 trens extras.
Na época, uma autoridade alemã disse que "tudo que tínhamos com rodas foi colocado em uso" durante a Copa.
Legado
Todo o investimento para deixar as obras do setor de transportes prontas para a Copa foi aproveitado depois do torneio. Na capital, o maior legado foi a antecipação da Hauptbahnhof - um sonho antigo desde os tempos da reunificação do país.
A Berlim Hauptbahnhof fica no coração da cidade, a poucos metros do Parlamento alemão, em uma região que antigamente era "terra de ninguém" - num ponto entre as Alemanhas Oriental e Ocidental perto do antigo Muro de Berlim.
Sua inauguração em 2006 foi importante por dois motivos: primeiro por ser um ponto central de ligação do país, entre o Sul e o Norte, e o Leste e o Oeste. Ela recebe 350 mil pessoas por dia.
Segundo, porque a estação também foi fundamental para dar início a uma nova era de trens rápidos na capital alemã. Antes da Copa, as viagens para Berlim eram demoradas. Desde então, começaram a operar novas linhas de ICE da capital para diversas grandes cidades alemãs - como Hannover e Hamburgo - com velocidades superiores a 200 quilômetros por hora.
O próximo passo nesse projeto é concluir até dezembro de 2017 uma nova linha de trem-bala entre Berlim e Munique, com distância de 590 quilômetros. O tempo de viagem entre as duas cidades cairia pela metade - dos atuais 6h30.
'Hamburgo e Berlim, uma mesma cidade'
A resposta dos passageiros foi positiva ao legado.
"Hoje em dia, se você perde um trem, é fácil pegar o próximo", conta Michael Schmidt, relações públicas de uma empresa de logísticas. Ele mora e trabalha em Berlim e usa a malha de trens-bala da capital alemã para viajar por todo o país.
"Essa é a principal diferença em relação ao sistema antes de 2006. Naquela época, você tinha que ser sempre pontual com os trens, caso contrário acabava perdendo as reuniões. Hoje, com mais trens, é fácil de pegar outro uma hora depois."
A opinião é compartilhada por Luis Pantaleon, um editor de fotografia que trabalha em Berlim e mora em Hamburgo - cidades separadas por 250 quilômetros. Para ele, os investimentos feitos na época da Copa provocaram mudanças que afetaram até mesmo as suas perspectivas profissionais.
"Desde os novos trens rápidos é possível ir de Hamburgo a Berlim em uma hora e meia, isso não é nada. Hamburgo e Berlim praticamente se transformaram em uma só cidade", disse Pantaleon à BBC Brasil durante uma viagem de trem-bala para Leipzig.
"Eu trabalho 10, 11 horas por dia e se eu tivesse que ir para Hamburgo sexta-feira à noite, antes eu chegaria em casa à meia-noite, o que é impraticável."
Luis Pantaleon conta que trens-bala ampliam suas possibilidades de emprego
Apesar da comodidade, o custo disso tudo é bastante alto. Um passe mensal de trem entre Hamburgo e Berlim - com direito a uso da malha de metrôs e ônibus das duas cidades - custa 625 euros (R$ 2 mil). Em compensação, com a flexibilidade permitida pelo transporte, muitos profissionais têm melhores oportunidades de conseguir salários maiores.
"Hoje eu tenho muito mais liberdade para escolher onde trabalhar", diz Pantaleon. "Se o mercado de trabalho está difícil em Berlim, eu procuro algo em Hamburgo, onde pode haver mais empregos. Anos depois, se a situação piora em Hamburgo e melhora em Berlim, eu não preciso pensar: 'Ah, eu tenho que me mudar de novo'. Eu posso viajar diariamente e ficar morando onde eu quiser. É mais fácil mudar de emprego e progredir na carreira."
* Imagens: Agnès Bel
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