Não vou comentar muito sobre as falas do meu xará Haddad. Vou me concentrar no que sei e que vi, para dizer que em grande parte os estudantes estão sim, certos.
Fui analista de crédito num banco privado em 2006/7 em São Paulo, e neste banco, muitas empresas de ônibus eram clientes, muitas mesmo, e havia um jeito bem especial de lidar com elas.
Ocorre que para uma empresa ganhar empréstimo, ela tem de ter fundamentos econômico-financeiros – ou seja, capacidade de pagar. E aí é que o bicho pega: pelas demonstrações contábeis oficiais (a partir das quais são geradas as planilhas de custo e as tarifas), praticamente nenhuma empresa de ônibus teria condição de pegar empréstimos.
Havia coisas estranhas, das quais eu me lembro com maior atenção do seguinte: o ativo imobilizado era muito baixo (ativo imobilizado é o que a empresa tem: as frotas de ônibus e outras propriedades). Muitas, mas muitas, apresentavam patrimônio liquido negativo – ou seja, acumulavam, por anos consecutivos, prejuízos que superavam o capital social da empresa. As contas nunca fechariam — as receitas seriam baixas perante as despesas. Além disto, as empresas possuem passivos muito maiores que ativos, e como ativo tem de ser igual ao passivo somado ao patrimônio liquido, este tinha de ser negativo.
Com uma situação financeira dessas, uma empresa não toma emprestado. E aí vai o pulo do gato (que dá até medo de contar): é óbvio que estas informações estão deturpadas (sendo gentil), e vou explicar como. Tanto era assim que nós tínhamos uma planilha em excel que fazia o cálculo do real balanço destas empresas.
O ponto é o seguinte: o ativo imobilizado não está declarado nestes balanços. É como se a ideia do pequeno empresário que não distingue o próprio bolso do caixa da empresa fosse levada às alturas. Donos de empresas têm parte da frota em nome próprio (ou de laranjas). Ou, então, compram em nome da empresa e depois “revendem” para terceiros (sócios), após quitados os financiamentos. Os terrenos nos quais estão as garagens das empresas são de propriedade dos sócios e também não aparecem no balanço. Por fim, essas empresas não pagam encargos trabalhistas, adiando-os ao máximo, para aproveitar, quando aparece, uma renegociação. Fazem isso para aumentar muito o exigível de longo prazo, propositalmente, além de ganhar caixa extra pago pelo governo.
Cientes dessas informações, para fazer a análise consolidávamos o patrimônio dos sócios (que na verdade seriam das empresas) com o das empresas. É claro que elas davam lucro na realidade – afinal estes empresários seriam tão idiotas de continuar para sempre num setor com altos fluxos de dinheiro se tivessem sempre prejuízos? Mas tem mais…
Àquela época, e ainda hoje, existem várias empresas que atendem o transporte urbano – em São Paulo, Rio de Janeiro e outras tantas cidades –, mas são poucas famílias que controlam de fato esta estrutura. Fazem isso indiretamente, através de sociedades. Em São Paulo, se não me engano, eram cinco famílias, que tomaram o setor na privatização da CMTC. Quando estas empresinhas começam a dar muitos problemas, elas as fecham e abrem outro CNPJ, com outros sócios. Fornecedores e especialmente funcionários ficam a ver navios. Por falar em funcionários, lembram do que falei sobre os direitos?
Pois bem, deixem-me explicar uma coisa que acontecia até com os gerentes do banco, quanto mais com os funcionários. No dia a dia, esses empresários são representados por “gerentões” armados. Se eles não querem atender alguém, e no contato comum todos os funcionários, são esses representantes que cuidam da negociação. Então, por exemplo — isso eu já ouvi os próprios motoristas comentando no Rio de Janeiro — quem vai entrar na Justiça para cobrar direitos, na melhor das possibilidades nunca mais trabalhará em qualquer outra empresa de ônibus. Se encher muito o saco, vai buscar o direito e não volta.
Para quem acha que eu estou exagerando, ficam duas dicas: procurem noticias sobre assassinatos de sindicalistas de ônibus. de vez em quando tem um. E outra: no final do debate de 2004 na rede Globo, naquela eleição fatídica em que a Marta perdeu do José Serra, ela comenta que teve de entrar com colete à prova de balas numa reunião com empresas de ônibus. (Trabalhei com um cara da alta cúpula do governo dela, e ele comentava que ela e o secretário sempre iam de colete, e que os empresários levavam seguranças armados e que sempre tinham de passar por detectores de metais para tirar as armas dos caras).
Enfim, o que eu queria dizer é o seguinte: sei que o Haddad fez mestrado na minha faculdade de Economia, portanto não é de todo inábil com números e devia abrir as tais planilhas de custo. Seria bom puxar um bom auditor para o lado dele, e usar as críticas como legitimação para rever esse lamaçal todo. Seria uma forma de aproveitar esta pressão contra estas empresas. A não ser que realmente seja só o apoio de financiamento em época de eleição que valha a pena… Em suma, é uma grande máfia, e não vai ser fácil desarmá-la – só que também, se for pra defendê-las, poder-se-ia ter mantido o Serra, certo?
E realmente não são só vinte centavos. Acho que a força desta garotada que está na rua – e que une Istambul, Occupy wallstreet, 15m na Espanha e todos os outros – vem do cansaço de ver todas as decisões importantes de interesse público serem dominadas por grandes interesses de pequenos grupos privados – e em todos os casos, defendidos na porrada por um Estado policialesco.
E para não dizer que não falei das flores, fiquem com essa pequena pérola de genialidade empreendedora baronesca dos imperadores do transporte público do Brasil. Na Veja, claro, em 1998. (se o setor não dá lucro, porque eles estão tão ricos?)
E sobre um barão especifico (um dos mais poderosos), no Rio de Janeiro. (Ps1: parece que é o sogrão do Paes. Ps2: vejam quantos sócios ele tem: três, e como em outro baronato a família comprou uma empresa de aviação). Veja clicando em:
http://www.milbus.com.br/revista_portal/revista_cont.asp?1448
http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0881/noticias/a-dificil-decolagem-do-cla-barata-m0116513