O centro de São Paulo poderia ter prédios sem muros. Famílias de diferentes faixas de renda seriam vizinhas. Morariam perto do trabalho e teriam uma vida confortável, com serviços e comércio ao alcance. O espaço público no entorno seria agradável: cheio de árvores, com calçadas largas e ciclovias. Um cenário bem distinto daquele visto na região hoje em dia.
No papel, é nesta imagem que se ancora o projeto da PPP (Parceira Público-privada) da Habitação para o centro da cidade. A proposta de construir vinte mil moradias é capitaneada pela Casa Paulista, órgão de fomento da Secretaria de Habitação de São Paulo. O projeto também foi abraçado pelo prefeito Fernando Haddad, além do Governo Federal, que ajudará com financiamentos à moradia.
A ideia, porém, é muito mais do que esta imagem de consenso. Movimentos sociais e urbanistas têm criticado a forma como o projeto foi elaborado, como ele será executado e para quem ele está sendo feito. “A proposta parece contemplar reivindicações históricas dos setores que atuam em defesa ao direito de moradia no país. Mas tais conquistas podem não se tornar realidade, caso não sejam equacionadas algumas questões essenciais,” escreveram 18 movimentos, ONGs e laboratórios acadêmicos em um carta com críticas à proposta.
Como o projeto foi elaborado
O modelo de PPP, pelo qual o Estado concede funções públicas à iniciativa privada, foi escolhido devido à falta de orçamento para fazer investimentos diretos para moradia e infraestrutura na região. A iniciativa privada desembolsaria 4,6 bilhões de reais e o estado de São Paulo, 1,6 bilhão. Outros 404 milhões de reais deverão vir da prefeitura, que vai ajudar nas 12 mil habitações de interesse social.
O projeto foi elaborado a partir da ideia de que São Paulo se desindustrializou. Hoje, a indústria responde por menos de 20% do PIB da metrópole. Como resultado, os lugares onde ficaram as fábricas estão degradados por não terem acompanhado a mudança econômica da cidade. O projeto serviria para corrigir este quadro, levando a moradia estes lugares.
Este modelo foi desenvolvido pela ONG Urbem. A organização fez o projeto a partir de uma pesquisa extensa com uma equipe de 73 profissionais de diferentes áreas. O resultado foram 12 volumes de 300 páginas cada e estão disponíveis para consulta.
Até agora, não houve participação popular no processo. O projeto está agora em consulta pública. No site da Casa Paulista, é possível fazer sugestões até o dia 9 de junho. A ideia é que o edital seja publicado ainda em junho e as áreas estejam licitadas até agosto.
Habitação social será minoria
Na divisão das vagas, 32% delas ficarão para pessoas que ganham até quatro salários mínimos, abaixo do número reivindicado pelos movimentos sociais (veja mais detalhes no projeto anexo à reportagem). Destas 6.650 vagas, duas mil serão destinadas a militantes ligados ao movimento.
Segundo o subsecretário da Casa Paulista, Reinaldo Iapequino, esta escolha foi tomada para que o projeto fosse viável financeiramente. “O direito à moradia está na Constituição. Mas a Constituição não diz que o direito à moradia é gratuito. E ela diz também que você tem que obedecer a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ou seja, a proposta está limitada à disponibilidade orçamentária,” diz Iapequino. Para entrar no programa, as pessoas deverão comprovar que trabalham no centro da cidade, em uma seleção que caberá às empresas.
Durante a elaboração do modelo, foi dada preferência a lugares abandonadas ou com poucas pessoas morando. Mesmo assim, moradores da região terão de ser realocados na execução do projeto. Segundo o secretário, elas devem ser atendidas em outros programas habitacionais do governo.
Segundo Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e relatora especial da ONU, o projeto foi elaborado com mais foco na oferta do que nas necessidades daqueles que vivem no centro. “Parece que o projeto é para quem não está lá. Estão ignorando que tem gente que está lá vivendo em condições precárias,” diz Rolnik. “Tem de estar equacionado, não pode dizer que será atendido em um programa de outro lugar, de outro programa de outro governo.”
A carta dos movimentos diz que o projeto foi omisso em relação ao impacto nas atividades produtivos do centro. “A falta de definições claras (...) impacta negativamente os atuais ocupantes do território, incluindo comerciantes, prestadores de serviços, trabalhadores e usuários,” diz a carta dos movimentos. Segundo o secretário, somente o comércio que estiver dentro da lei deve ser indenizado. “A atividade é legal? Tem todos os alvarás funcionando? Se estiver, ele vai receber a justa indenização,” diz o subsecretário.
Os movimentos também questionam como a política permanecerá no longo prazo. Sem uma ação para a permanência dos mais pobres na região, poderia haver um processo de exclusão deles da região, com os apartamentos sendo vendidos por preços mais altos. A carta dos movimentos diz que “a proposta não traz preocupações em relação à permanência dos novos moradores de baixa renda na região central após a aquisição das unidades.”
Segundo Iapequino, a única maneira de o estado atuar é fiscalizando a lei estadual que proíbe a venda de imóvel adquirido em um programa habitacional em um período de dez anos. “É um fenômeno difícil de controlar. A hora que você dá a propriedade para o individuo, é dele,” diz o subsecretário.
Para que tenha continuidade, o projeto terá de funcionar durante mais de 10 anos, em contraposição a uma série de programas de renovação do centro já foram abortados em São Paulo. O último deles foi o projeto da Nova Luz. O projeto de concessão, que custou 14 milhões ao município, foi abortado pelo prefeito Fernando Haddad. Ele afirmou que o modelo era inviável.
O que faz pensar que esse seria diferente? “Estamos na liturgia, não chegou no fim da missa. Pode ser mais um que não de certo. O problema sempre era de escala, tempo e maturação. Nós apertamos no prazo e ousamos na escala,” diz o subsecretário.
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