Lei de mobilidade urbana deve redesenhar as cidades

Entrevista com Nazareno Stanislau Affonso, coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos

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Fonte: Instituto Humanitas Unisinos  |  Autor: Da redação  |  Postado em: 20 de junho de 2012

Lei de mobilidade urbana: redesenhando as cidades

Lei de mobilidade deve redesenhar as cidades

créditos: Divulgação

“A lei da mobilidade urbana propõe a mobilidade não para alguns, nem só para pobres ou para ricos, mas com transporte de qualidade para todos”. Partindo desta avaliação, Nazareno Affonso comenta a lei de mobilidade urbana em vigor no país desde o dia 12 de abril. Affonso, que há mais de 20 anos acompanha este debate, é coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos – MDT e do escritório da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP de Brasília. Também é diretor do Instituto Ruaviva e é integrante do Conselho das Cidades e da Coordenação do Fórum Nacional da Reforma Urbana. 

Veja a seguir a entrevista concedida ao site do Instituto Humanitas Unisinos:


O que propõe a lei de mobilidade urbana? 

A lei de mobilidade urbana confronta a política de mobilidade instituída, que tem como base a universalização do uso e do acesso ao automóvel como meio de transporte universal da população brasileira. Até este momento o Estado brasileiro incentivou o uso do automóvel, construindo um valor que supera a casa própria. Quer dizer, têm pessoas que possuem carros que custam mais do que a casa própria. Esse sistema de organizar a mobilidade urbana a partir do automóvel gera um desperdício de energia muito grande, além de um desperdício no sistema viário. Quer dizer, quase não existem mais cidades como antigamente, onde o cidadão andava a pé, e utilizava meios de transportes.


Essa política implícita de favorecimento ao automóvel gerou uma consequência gravíssima assim como o maior desastre de política pública: a violência no trânsito. Mata-se no trânsito brasileiro mais de 40 mil pessoas por ano, cerca de 110 pessoas por dia. Se o Código de Trânsito Brasileiro fosse cumprido, se o Estado fosse mais sério e atuasse do mesmo modo que atua em outras situações, o transporte e a mobilidade seriam prioridades no país.

Por outro lado, a cultura do automóvel já está instalada no Brasil. Quem não tem carro quer tê-lo. Então, não se trata apenas de uma mudança nas políticas públicas, mas de uma mudança de valores, de opção de vida, e de país.


Nesse sentido, a lei defende como prioridade o transporte não motorizado: investimento em calçadas, espaços para bicicleta, transporte público. A lei entende também que é preciso ter equidade nos investimentos de mobilidade urbana. Então, se o automóvel é responsável por 30% das viagens, o entendimento é de que o sistema viário destinado para o uso de automóveis deve ser de 30%. O restante do espaço deve ser destinado a calçadas, corredores de ônibus, ciclovias etc. Quer dizer, o Estado não pode investir somente na construção de viadutos para carros, porque outros meios de transportes são prioritários.


Caso essa lei seja de fato cumprida, começaremos a delinear uma nova cidade. A partir dessa mudança estrutural, a lei instrumenta os estados da Federação para que eles se ajustem a ela. Nesse sentido, a lei deixa claro que o uso do automóvel precisa ser regulado por uma política de estacionamento, como acontece na França, por exemplo, onde se restringe o uso do automóvel. As pessoas imaginam que na Europa todo mundo anda de metrô, mas na verdade eles priorizam o transporte público, calçadas e bicicletas.

A política do estacionamento é a melhor forma de disciplinar o uso do automóvel. Essa política consiste em, por um lado, cobrar um valor elevado pelo estacionamento e, de outro lado, impedir o uso da via pública para estacionar automóveis. Nesse sentido, os movimentos sociais propõe a proibição de estacionamentos em via pública, para que esta área, hoje utilizada para estacionamento, seja reaproveitada para ampliar as calçadas, construir ciclovias ou corredores de ônibus. Essa é uma “área morta”, que pode ser disponibilizada para as pessoas. Para se ter uma ideia, hoje o carro ocupa o espaço de um pequeno flat de 20 metros quadrados e paga menos de dois reais por hora na área azul.

 

A lei prioriza os transportes não motorizados e os serviços públicos coletivos. Na prática, como essas alternativas são possíveis, considerando que muitas cidades não dispõem de ciclovias e calçadas adequadas para pedestres? 

Este é o ponto: criar uma mobilidade sustentável, porque não se justifica mais investir na construção de vias para atender aos automóveis, ou construir seis pistas para carros e uma para ônibus.

Recursos federais não podem mais ser destinados para esse modelo de investimento. E em nível local, a população pode questionar investimentos voltados apenas para o automóvel. Outra questão é encontrar maneiras de reutilizar a estrutura viária já existente.

Atualmente, o congestionamento aumenta a tarifa do transporte, em São Paulo, em torno de 17% a 25%. Quer dizer, se a tarifa custa três reais, 75 centavos são destinados à empresa para pagar o custo do engarrafamento. Todo mundo acha que o pedágio é um absurdo, mas se aplica pedágio ao usuário no transporte público por conta do engarrafamento.

Toda vez que apresento uma palestra, pergunto se as pessoas assistiram o filme Matrix, porque ele demonstra exatamente como as pessoas se sentem em relação ao tema do transporte e da mobilidade urbana: vivem absurdos e acham que esta é uma situação normal. Quer dizer, muitas pessoas pensam que é normal ficar horas parado num congestionamento por conta do volume de carros circulando. Isso é absolutamente antidemocrático, porque o sistema viário é feito para transportar pessoas, e não veículos.

 

Por um lado, o Brasil promulga uma lei que prioriza veículos não motorizados, o transporte público etc. Por outro, o governo incentiva a compra de automóveis. Como vê essas medidas em relação à discussão sobre a mobilidade urbana no país? 

Acontece que hoje se democratizou o acesso ao automóvel. A maior briga que tivemos durante a negociação dessa lei foi com o Ministério da Fazenda, que dá benefícios para a indústria do automóvel. Esse ministério retirou da lei uma série de instrumentos que favoreceriam o uso do transporte público. Hoje o usuário, para se ter uma ideia, paga em média 20% mais no uso do transporte público para pagar os programas sociais do governo em relação aos idosos e estudantes que utilizam o transporte de graça ou com descontos. Essas políticas são justas, mas não é justo que o custo seja revertido aos usuários.


O problema é que o Ministério da Fazenda vê a indústria automobilística como um produtor de PIB, do mesmo jeito que existem outras formas de produção do PIB, as quais são negativas. Quer dizer, nos últimos anos o diesel aumentou cinco vezes mais do que a gasolina, e esse aumento gerou um reajuste enorme nas tarifas de transporte público.

O interessante nesse momento é que surgem questionamentos de vários lugares, e até a mídia está pautando esse tema, porque não há outra forma. Nesse sentido, a lei de mobilidade urbana é importante porque vivemos um momento de absoluta impossibilidade de apresentar uma solução para a frota existente no Brasil, e o crescimento do uso de automóveis. Se há cinco anos uma pessoa levava vinte minutos para se deslocar, hoje ela leva mais de 30, e amanhã levará cinquenta. 

 

Nas grandes cidades, os problemas de mobilidade urbana são causados pela grande concentração de automóveis, mas também pela superlotação dos transportes públicos. Que modelo de transporte público deveria ser priorizado no Brasil para resolver esse impasse? 

Não existe um modelo; trata-se de um conjunto. Eu combato a visão de que existe um modelo para o transporte público. As pessoas costumam dizer que o ideal é investir em metrô. Hoje o Brasil conta com um sistema metroviário que atende muito bem a demandas acima de 30 mil passageiros/hora/sentido único, porque em determinados locais se justifica pagar 10 vezes mais do que um corredor de ônibus para atender à demanda.


Entretanto, a melhor forma de investir em transporte público é fazer uma análise do tempo de implantação do sistema, capacidade de transporte e recursos utilizados. Se há disponibilidade de 10 bilhões de reais, que possibilitem investir em 300 quilômetros de corredores, e 100 quilômetros de metrô, é preciso avaliar se a demanda justifica um ou outro investimento.


Hoje, o metrô de São Paulo já ultrapassou 80 mil passageiros/hora/sentido único. Quer dizer, as pessoas que andam de metrô em São Paulo andam pior do que as pessoas que se locomovem de ônibus em Porto Alegre, porque ele ultrapassou sua capacidade. Quando qualquer sistema ultrapassa a capacidade, perde qualidade. Quando atualmente falamos em sistemas de ônibus, lembramos os exemplos de Curitiba e Porto Alegre, em que há um sistema integrado. Mas em Bogotá, os brasileiros criaram um sistema que está sendo implantado no Brasil progressivamente. Esse sistema é monitorado por GPS, ou seja, todos os ônibus são monitorados por uma central, onde o controlador tem contato com o motorista via rádio, e o motorista sabe se está no tempo correto ou atrasado. Se há um problema com determinado ônibus, a central tem tempo de enviar um ônibus substituto, e quem está na parada sabe em quantos minutos passará o próximo ônibus. Esses corredores já carregam mais de 30 mil passageiros/hora/sentido único, mas estão chegando no limite.

Então, o modelo para o Brasil é verificar a relação entre capacidade, custo e tempo de implantação. Esse sistema tem de ser integrado, tem de ter estacionamento para os automóveis e tem de ter formas de guardar ou transportar as bicicletas. Além disso, é preciso investir maciçamente em vias de pedestres que sejam administradas pelo poder público. É preciso pensar uma nova forma de redesenhar a cidade. Se analisarmos outros países do mundo, veremos que isso já acontece. Em Bogotá, por exemplo, em 10 anos o governo fez um novo sistema de corredores de ônibus, acabou com os estacionamentos em vias públicas, criou calçadas de oito metros e investiu em ciclovias.

 

Como vê o investimento do governo em mobilidade urbana para a Copa do Mundo?

Em relação à Copa do Mundo, houve uma fala infeliz da ministra do Planejamento,Miriam Belchior. Ela disse que o jeito de resolver a mobilidade urbana no período da Copa do Mundo era dar feriado para as pessoas. 

Além disso, junto com os projetos de mobilidade da Copa, vieram os projetos do PAC da Mobilidade. Então, em alguns estados os governadores interviram e mudaram a matriz de responsabilidade. Isso aconteceu na Bahia e emCuiabá. Na Bahia, por exemplo, trocaram um corredor de ônibus absolutamente maduro, com a capacidade de carregar 17 mil passageiros, que custaria 600 mil reais, por um metrô que custará três bilhões e que não ficará pronto até a Copa do Mundo. O legado dessa decisão do governo da Bahia é ter um grande canteiro de obras no período da Copa. Hoje Salvador é a terceira cidade mais congestionada do Brasil. Então essa decisão será um desastre.

A nossa expectativa é de que nas outras regiões do país se consiga aplicar o que está acordado na matriz de responsabilidade. De todo modo, o Brasil está muito preparado para agir em eventos por conta daqueles que já acontecem no país. Queríamos que a Copa mostrasse ao mundo um Brasil mais moderno, onde o transporte público fosse decente, onde as pessoas pudessem se deslocar via ciclovias. 

Apesar de isso não ser possível, a situação mais crítica será a dos aeroportos, porque a capacidade de gestão de crise é insuficiente. O objetivo dos movimentos sociais era utilizar a Copa do Mundo como um meio de pressionar o governo a melhorar a mobilidade urbana, não apenas para beneficiar quem vem assistir a Copa, mas a população que, depois do evento, teria um legado. 

Estamos vivendo uma época em que se tem uma massa de investimentos enorme, como nunca havia tido antes. Então, essa lei é aprovada num momento em que o Brasil está investindo nas regiões metropolitanas quase 100 bilhões de reais nos próximos cinco anos. Entretanto, continuamos insistindo que esses recursos também sejam destinados a cidades menores. De todo modo, esses investimentos já sinalizam uma mudança. Cada vez mais deputados estão envolvidos com a questão da mobilidade urbana, e já existem frentes parlamentares que defendem as ciclovias, o transporte público, a acessibilidade etc.

 

É possível estimar o déficit de transporte público no Brasil?

Um amigo meu, que costuma ministrar palestras sobre o tema, disse recentemente que o Brasil tem um déficit de 40 bilhões em transporte público. Na maioria das cidades brasileiras, como São Paulo, 90%  do sistema viário é utilizado por automóveis. Quer dizer, existe um sistema viário apropriado para o uso do automóvel. Se reutilizarmos esse sistema viário sobre outras bases, é possível reduzir os custos com transporte e transportar mais pessoas com qualidade.

Adriano Branco, um dos maiores especialistas em transporte de São Paulo, realizou um estudo onde demonstra que a divisão modal em São Paulo – entre transporte público e automóvel – é de 52% para transporte público, e 48% para automóvel. Ele argumenta que se 70% do espaço viário for destinado ao transporte público e 30% para o automóvel, seria possível reduzir o número de automóveis circulando e diminuir o congestionamento. As pessoas perderiam o “privilégio” de andar de carro, mas chegarão mais cedo ao destino. 

Nesse sentido, a lei da mobilidade urbana propõe uma mobilidade para todos, e não só para alguns, nem para pobre ou para rico. A opção é investir em um transporte de qualidade para todos.

 

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