No começo do século vinte, a população das grandes cidades americanas utilizava o bonde elétrico. Décadas depois, uma série de fatores já havia levado a uma mudança no cenário urbano: políticas públicas retrógradas, forte marketing do carro (“símbolo de status”) e o lobby das indústrias ligadas ao automóvel fizeram desaparecer o bonde na maioria das metrópoles daquele país. Começava aí o “romance” com carro, que invadia rapidamente o espaço público.
A exceção foi São Francisco, na Califórnia. De forma surpreendente, a cidade soube preservar o patrimônio de transporte por bondes e, decorrente dessa opção, atingir um nível de qualidade de vida invejável no país.
As ladeiras íngremes de São Francisco levaram a que se adotasse um sistema de bondes diferente, o dos “carros a cabo” (“cable car”, veículos tracionados por cabo, a partir de motores estacionários). A primeira linha foi instalada em 1873. Hoje, a cidade conta com 17 linhas de bonde convencional, 3 linhas de carros a cabo (as únicas ainda existentes no mundo), e ainda uma linha de bondes históricos, com carros restaurados.
Segundo Dario Hidalgo, diretor do Embarq - Centro de Transporte Sustentável do Instituto de Recursos Mundiais, já em meados do século passado São Francisco gozava de elevado grau de desenvolvimento urbano: “Após a corrida do ouro de 1876, esta cidade cresceu muito rapidamente, e se consolidou nos anos 50 muito antes do que a maioria das cidades americanas”.
O fato de a cidade não ter se deixado levar tão facilmente pela tendência à supremacia do automóvel também encontra razões na própria topografia. Cidade pequena, situada numa península com apenas 75 km², é cheia de ladeiras íngremes, e essa conformação desafiou os limites do carro, analisa Hidalgo.
Para aproveitar ao máximo o pouco espaço, as ruas da cidade foram desenhadas muito estreitas, lembrando ruelas das antigas cidades europeias. Assim, diz o especialista, o conflito entre carro e bonde, que surgiu em outros locais, não teve nem chance de se colocar em São Francisco, já que os moradores dependiam demais deste serviço, e simplesmente não havia como dividir este espaço nas ruas com o carro.
Resistência ao automóvel
Indo além, a cidade desenvolveu uma espécie de aversão ao carro. Tanto que, além de preservar o bonde, São Francisco foi a única nos Estados Unidos que rechaçou os planos de governos para que uma rodovia atravessasse o centro da cidade.
Associações de moradores, como a influente Haight-Ashbury Neighborhood Council, fundada em 1960 e atuante até hoje,
uniram-se para protestar contra o projeto do Panhandle-Golden Gate Park Freeway, uma rodovia que teria acabado com 60% do famoso Panhandle Park.
A oposição às rodovias foi tão forte que, em 1959, o Conselho de Supervisores da cidade votou por descartar 7 dos 10 planos existentes para rodovias. Em 1964, poucos meses depois do protesto histórico, o mesmo Conselho votou (6 a 5) contra a construção do Panhandle-Golden Gate Park Freeway.
Mas as autoridades tanto insistiram que acabaram por aprovar a obra de um “minhocão”, o Embarcadero, inaugurado em 1959. Trinta anos depois, em 1989, o terremoto Loma Prieta causou danos irreparáveis à sua estrutura, e a cidade, num gesto esclarecido, optou por derrubar o minhocão em vez de reconstruí-lo.
Em seu lugar, ao custo de 50 milhões de dólares, foi construído um bulevar, com passeios de mais de 7 metros de largura de cada lado, paisagismo de palmeiras e pracinhas em todo o perímetro, além de uma coleção de peças de arte pública. Em baixo, a eliminação da antiga estrutura elevada abriu espaço para mais de 40 hectares de praças e parques à beira da baía; e nos arredores, as propriedades valorizaram 300%, em média.
Hoje, os bons resultados combinando preservação do sistema de transporte coletivo e rejeição a atrocidades urbanísticas como o minhocão faz da cidade um modelo mundial.
Já no Brasil, desde 1975 está colocada a discussão sobre a demolição do Elevado Costa e Silva, o minhocão paulistano. Quatro prefeitos – Jânio Quadros, Marta Suplicy, José Serra e Gilberto Kassab – levantaram essa possibilidade, mas nenhum deles sequer elaborou um plano para viabilizar a empreitada. Neste ano de eleições, valeria a pena os candidatos ao governo municipal conhecerem o caso de São Francisco para melhor poderem avaliar seus planos urbanísticos.
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