A pujança econômica do Brasil evidenciou potencialidades, mas também gargalos para o desenvolvimento do país. Um dos principais é o nó do trânsito nas cidades. O aumento da renda dos trabalhadores e a melhoria nas condições de crédito fizeram com que mais brasileiros pudessem comprar automóveis. Até aí, tudo certo. O problema é colocar esses carros para circular diariamente nas ruas. O automóvel oferece condições de conforto, comodidade e segurança que o transporte coletivo deveria oferecer, mas não oferece. Assim, a escolha óbvia – e preocupante – de cada vez mais gente é o carro. Junte-se a isso a precária estrutura de ônibus e trens nas grandes cidades e está formado o congestionamento.
Estudo inédito do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com base em dados do Censo 2010 mostra o alcance do problema. Pela primeira vez, o órgão calculou o tempo que as pessoas gastam no trajeto entre a casa e o trabalho: 52% dos brasileiros levam de seis a trinta minutos; 23% demoram de trinta minutos a uma hora; e 11%, mais de uma hora. Há ainda 13% que chegam ao trabalho em até cinco minutos. A situação piora nas grandes cidades. Em São Paulo, 31% dos trabalhadores, quase um terço, levam mais de uma hora para cumprir o percurso; no Rio de Janeiro, 25%; e, em Salvador, 22%. Veja detalhes no infográfico.
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É nas cidades da região metropolitana de São Paulo e do Rio que se encontram os piores índices. Metade da população de Francisco Morato e de Ferraz de Vasconcelos, ambas na Grande São Paulo, leva mais de uma hora para chegar ao trabalho – grande parte dessas pessoas está empregada na capital, a cerca de 50 quilômetros de onde moram. A situação é a mesma em Japeri e Queimados, na Baixada Fluminense. "O tempo de viagem é proporcional às distâncias e à falta de planejamento das cidades", afirma o arquiteto e especialista em planejamento urbano Ricardo Corrêa, da consultoria TC Urbes. “Esse fenômeno vem sendo replicado em capitais e cidades médias pelo Brasil. É um processo de 'sãopaulificação'".
O trânsito como rotina - Se considerarmos a proporção de cidadãos que levam mais de duas horas para chegar ao trabalho diariamente, o estado do Rio aparece na frente, com 4,41%, seguido por São Paulo, com 2,92%. A explicação é que cerca de 75% da população fluminense vive em municípios da região metropolitana do Rio, enquanto no estado de São Paulo esse índice cai para cerca de 50%, principalmente pela existência de mais polos econômicos, como a região do ABC, por exemplo.
O segurança Adílson da Silva, de 59 anos, cumpre há 20 a mesma rotina: de segunda a sexta-feira, acorda às 3h30, sai de casa às 4 horas e só chega ao trabalho às 6h20. Silva mora em Japeri e trabalha em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Para vencer o trajeto, usa trem e ônibus. "Faço a maior parte da viagem de pé, o ônibus sempre atrasa. É muito tumulto", diz. "Ainda assim, prefiro morar em Japeri a viver em uma favela na capital".
Moradora de Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo, na divisa com Ferraz de Vasconcelos, a babá Cris Tavares de Melo, de 54 anos, bem que tentou trabalhar no bairro. "Era tão perto que eu almoçava em casa", diz. As condições de trabalho precárias e o salário baixo na fábrica, no entanto, levaram Cris a procurar emprego em outras regiões.
Hoje, ela trabalha em Perdizes, na Zona Oeste da capital. "Para chegar às 9h30 no serviço, saio de casa às 6h45. São quase três horas de viagem”, conta, enumerando os trajetos de lotação, trem, ônibus e dez minutos de caminhada. "Gostaria muito de poder ler no caminho, mas raramente tem lugar para sentar e, se a gente vai de pé, mal consegue mexer os braços".
De acordo com o arquiteto Ricardo Corrêa, a região central de São Paulo concentra 43% das vagas de emprego da cidade, mas apenas 13% da população. Isso faz com que uma massa de trabalhadores se desloque diariamente da periferia para o centro. "É preciso criar centros financeiros em cada região da cidade, para diminuir a distância dos deslocamentos", afirma.
De nada adianta, no entanto, fazer como Minas Gerais, que instalou a sede administrativa do estado no extremo norte da capital sem dotar a região de transporte público. A estação de metrô mais próxima fica a dois quilômetros do complexo. Belo Horizonte aparece como a quinta capital com maior porcentual de pessoas que levam mais de uma hora para chegar ao trabalho (17%), de acordo com o IBGE.
A falta de planejamento urbano fica clara também em Manaus, que está empatada com Belo Horizonte na parcela de pessoas que levam mais de uma hora para cumprir o trajeto entre a residência e o emprego. A cidade se desenvolveu com base em um plano diretor de 1975, que limitava a altura dos edifícios, mas não as divisas da cidade. O resultado foi a expansão de uma mancha urbana sobre a Floresta Amazônica, com grandes distância entre os bairros. A tendência só começou a ser revertida recentemente, com uma revisão no plano.
No limite - Analistas ouvidos pelo site de VEJA concordam que a falta de um modelo de mobilidade tende a levar o trânsito das médias e grandes cidades brasileiras ao colapso em menos de dez anos. Antes disso, o gargalo pode espantar investimentos que ajudariam a consolidar o desenvolvimento do Brasil. "Somos um país em crescimento e, se não mudarmos a mentalidade em relação ao trânsito, vamos ver o capital migrar para outros países onde há qualidade de vida", afirma Corrêa.
Por enquanto, o Brasil não vem mostrando capacidade de adaptação a sua nova realidade econômica. "A prosperidade das pessoas tem sido um catalisador da saturação do trânsito nas cidades, pela falta de estrutura de transporte público", afirma o arquiteto urbanista Ricardo Esteves, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "O desejo de passageiros que estão num ônibus lotado e parado em meio ao congestionamento não é que o ônibus ande por um corredor exclusivo, mas que eles estejam em um carro, também presos no congestionamento. A lógica está errada".
Carro, modo de usar - O investimento em transporte coletivo é fundamental para fazer com que brasileiros de todas as classes sociais passem a usar o carro para passeio – e não como meio principal de transporte. Na capital da Dinamarca, Copenhague, 97% da população tem automóvel, mas metade dos deslocamentos é feito de bicicleta. São Paulo, em contrapartida, tem uma frota de 5 milhões de carros e até 3 milhões deles saem da garagem diariamente. Para um trânsito sustentável, esse número não poderia ultrapassar 1 milhão.
No Rio de Janeiro, a perspectiva é de que a frota chegue aos 3 milhões de veículos em 2020, de acordo com cálculos do professor Paulo Cezar Ribeiro, do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe-UFRJ). "A frota no Brasil está crescendo muito e tende a crescer ainda mais", diz. "Chegará a um ponto em que não haverá alternativa a não ser reorganizar o sistema".
Pelo menos no papel o Brasil conseguiu dar um passo adiante. Foi assinada em janeiro uma lei que institui o Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que institui diretrizes para a organização do trânsito nas cidades, com prioridade para pedestres, ciclistas e transporte coletivo. Na terça-feira, a presidente Dilma Rousseff anunciou investimento de 32 bilhões de reais em 51 municípios incluídos no PAC da Mobilidade Urbana. O programa estimula o investimento conjunto dos governos federal, estadual e municipal em obras de trem, metrô e corredores de ônibus nas grandes cidades.
Enquanto os anúncios estão restritos às paredes do Palácio do Planalto, a assistente administrativa Karla de Oliveira Feitosa, de 34 anos, seguirá perdendo quatro horas diárias de convivência com sua filha de 4 anos. São duas horas para ir de Itapecerica da Serra à capital paulista, onde trabalha, e duas horas para voltar. "Já tentei caminhos alternativos, outras linhas de ônibus e outros trajetos, mas todos demoram tanto quanto o que faço hoje", lamenta. "Minha única opção é sair de casa o mais cedo possível, para não pegar tanto congestionamento".
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