Na Rua da Consolação, pertinho do cruzamento com a Avenida Paulista, um simpático espaço oferecia uma programação diversificada de filmes (muitos chegavam a ficar anos em cartaz!), em salas de projeção com nomes que homenageavam artistas como Portinari, Mário de Andrade e Carmen Miranda.
O cinema foi inaugurado em 1952 com o nome de Trianon. Foi batizado como Belas Artes em 67 pela Sociedade Amigos da Cinemateca e Companhia Serrador, que assumiram o cinema. Em 2004, começou a ser patrocinado pelo banco HSBC, ganhou nova fachada e passou a se chamarHSBC Belas Artes. Com a perda do patrocínio no final de março de 2010, o cinema passou pordificuldades financeiras, principalmente devido ao valor do aluguel.
No começo de 2011, com o anúncio do fechamento, foi formado o MBA – Movimento pelo Cine Belas Artes. O grupo luta pela reabertura do cinema e já teve importantes conquistas no processo de tombamento do prédio (quando tombado, um local com valor histórico e cultural não pode ser modificado ou demolido para dar lugar a outra construção).
Em dezembro, a Justiça concedeu uma liminar que proíbe o dono do local, Flávio Maluf, a fazer alterações no imóvel. Segundo rumores, o prédio seria demolido por uma construtora oualugado para uma loja de departamentos no valor aproximado de R$ 150 mil mensais (cerca de R$ 1,8 milhão ao ano).
A liminar também obriga o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) e Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) a reabrirem os processos de tombamento do cinema.
O MBA defende que o governo ou a Prefeitura de São Paulo declarem o imóvel como deutilidade pública e o comprem para que o cinema seja reaberto.
Para marcar o primeiro ano em que os paulistanos perderam o Belas Artes, o Movimento promoverá o evento “Ato Público e Pedalada pela Reabertura do Cine Belas Artes” no sábado, 17 de março. A manifestação começa às 16h em frente ao prédio. Ao final do ato, os manifestantes caminharão até a praça do Ciclista, de onde partirá às 18h uma pedalada que percorrerá ruas da região da Paulista e Augusta.
Bicicleta e cinema: qual a relação?
Andar de bicicleta e ir a um cinema de rua não são ações distantes. Ambas dialogam com a criação de um espaço público de mais qualidade, em que as pessoas se sentem parte integrante da cidade.
Quem mora em São Paulo já deve ter ouvido a máxima de que “praia de paulistano é shopping”(já que no Rio de Janeiro é a de areia mesmo…). Pudera: são mais de 50 estabelecimentos de compras cravados em todas as regiões da cidade – além dos que estão em construção, como um mega empreendimento na avenida Juscelino Kubitschek, com vaga para 2 mil automóveis.
Esse tipo de desenvolvimento (que não é de agora) se baseia na criação de espaços públicos fechados – e, portanto, excludentes – em que as compras (e não a saúde, os encontros, o contato com áreas verdes) são o principal incentivo ao passeio, dentro de centros comerciais de onde muitas vezes não é possível ver a luz do dia e “sentir o tempo passar”.
Essa lógica ajuda, entre outras coisas, a consolidar a crença de que a rua não oferececondições seguras e prazerosas para ser vivida ao ar livre (e muitas vezes não oferece mesmo).
No livro O Mundo das Calçadas (Ed. Humanitas), o doutor em Planejamento Urbano e Regional Eduardo Yázigi explica que, ao longo do século XX, as ruas perderam o ar “elegante” e adquiriram, devido aos riscos, o sinônimo de coisa ruim. “Tão ruim que nos anos 70, com a redescoberta dos aspectos salutares do andar, inventa-se a aberração das chamadas ruas de lazer, uma pseudocategoria, separada da vida, que só consegue se impor na cabeça dos tecnocratas que as idealizaram”, critica.
Para o autor, as calçadas, lugares reservados para o deslocamento a pé, são fragmentos essenciais para uma cidade mais humana. Não por acaso, o Cine Belas Artes tinha suas entradas na calçada da Consolação, onde as pessoas se encontravam, faziam filas, conversavam, comiam pipoca, viam cartazes de filmes… “Creio firmemente ser impossível humanizar a cidade sem o sistema de pedestres, pois o lado biológico é a grande condição de humanização. Mesmo num momento em que há propostas de criar torres de um ou dois quilômetros de altura, nunca deixará de haver a recriação de um espaço público do pedestre internamente. Sem ir longe demais, a calçada, enquanto contraponto do sistema automobilístico, é o que dá vida à cidade”.
Esse contraponto é igualmente forte e importante em movimentos que defendem uma cidade com menos carros e menos trânsito, onde as pessoas possam ir e vir de forma mais rápida e segura, além de mais saudável e menos estressante. “A finalidade da sociedade humana, como diz o biólogo Laborit, não é construir cidades, mas viver. Isso muda muito as coisas. Este simples enunciado de coisas ligadas ao corpo sugere, de imediato, várias opções dereorganização da vida urbana, em que o espaço público, grandemente confundido com a calçada, representa uma frente da maior importância”, diz Yázigi.
O planejamento que nos trouxe até aqui
No livro A Cidade Vertical e o Urbanismo Modernizador (Edusp), a urbanista Nadia Somekh fala sobre o processo de verticalização de São Paulo, concebido e consolidado na década de 30 com clara influência na lógica norte-americana, embora, no início, tenha sido chamada de verticalização europeia. “Certamente o arranha-céu é um fenômeno tipicamente americano, tanto quanto o automóvel associado ao progresso, símbolos que o cinema, também sob a supremacia americana, vai ajudar a difundir. Junto com a expansão do capital, a cultura americana espalha-se no mundo inteiro e, principalmente, nas grandes cidades como São Paulo”.
No caso da metrópole, é essencial destacar também o Plano de Avenidas formulado nos anos 20 e implantado a partir de 38 com Prestes Maia na prefeitura paulistana. Esta foi uma intervenção urbanística fundamental no desenvolvimento da mobilidade baseada no automóvel individual. (Saiba mais sobre o Plano de Avenidas no post sobre o documentário Entre Rios).
No prefácio do livro O Mundo das Calçadas, a geógrafa Maria Adélia Aparecida de Souza diz que o planejamento das cidades é um exercício de política, realizado, portanto, por normas. “Aí está um sutil e delicado problema que deveria ser abordado pela teoria do planejamento que, afinal de contas, acaba sempre discutindo a norma, a mecânica do planejamento, e não o sujeito, o cidadão”.
E será que não é possível usar as ruas e calçadas de um jeito diferente? O livro cita a obraTristes Trópicos, quando o francês Levi Strauss diz que “há tantos modos de se usar a cidade, que um francês, comparando a utilização da rua na França e no Brasil, concluirá que seus compatriotas não usam a rua, verdadeiramente”.
Dessa forma, pedalar pela reabertura de um cinema de rua expande a questão de um movimento isolado. Diz respeito a questões que envolvem a todos os cidadãos que, em meio a avalanches imobiliárias e comerciais, perdem importantes espaços que tornam a vida menos fechada em apartamentos, prédios e centros de compras – como uma desapropriação do entendimento da cidade como lugar de cultura, preservação da história, estímulo à qualidade de vida e à convivência com segurança.
Agende-se e participe!
Ato Público e Pedalada pela Reabertura do Cine Belas Artes
Sábado, dia 17 de março de 2012, em São Paulo
Ato às 16h, em frente ao Belas Artes
Pedalada às 18h, com saída da Praça do Ciclista