Tarifa zero: pauta emergente no 65º aniversário de Brasília

Artigo defende que Brasília pode avançar com adoção da tarifa zero para uma política de justiça socioambiental que a faria merecer, de fato, a alcunha "cidade do futuro"

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Fonte: Correio Braziliense  |  Autor: Thiago Trindade*  |  Postado em: 22 de abril de 2025

Ônibus adesivado com logo que celebra os 65 anos d

Ônibus adesivado com logo que celebra os 65 anos de Brasília

créditos: Divulgação/ Semob-DF

Brasília comemora em 2025 seus 65 anos de existência. Mas, à luz de nossos indicadores sociais, talvez não haja muito o que festejar. O Distrito Federal é marcado por desigualdades tão profundas que o tornam um dos territórios mais segregados do mundo. 

 

O relatório Como anda Brasília, produzido pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF) em 2023, com dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD 2021), mostra que, enquanto a renda média do grupo de Regiões Administrativas (RAs) mais ricas era de R$ 18.127, no grupo das RAs mais pobres essa renda equivalia a R$ 2.787.

 

Todavia, o foco do relatório reside em outro aspecto da desigualdade no DF: a mobilidade urbana. Ao se analisar os deslocamentos diários para o trabalho, verifica-se que a maioria daqueles realizados por ônibus e a pé é feita pelas pessoas negras, enquanto que a população não negra utiliza mais o carro para essa finalidade. Adotando o gênero como recorte, os homens não negros são os que mais se deslocam com automóvel (61,1%), seguidos pelas mulheres não negras (53,9%). Por sua vez, as mulheres negras constituem o grupo que mais se desloca para o trabalho de ônibus (45,5%) e a pé (12,7%), seguidas pelos homens negros (32,5% e 9%, respectivamente).

 

Pelo critério renda, na faixa de até um salário mínimo, tanto homens como mulheres se deslocam mais de ônibus para o trabalho (42,8% e 54,5%, respectivamente), bem como na faixa de um a dois salários (48,2% e 63,5%). Para os grupos de renda mais alta, a relação se inverte: o uso do carro aumenta, enquanto a locomoção por ônibus diminui consideravelmente.

 

Os dados revelam que as condições com que os diferentes grupos e classes sociais se locomovem pela cidade, e dela se apropriam para diferentes fins (lazer, serviços públicos, emprego etc.), são bastante diferenciadas. Uma vez que a possibilidade de ter um automóvel está ligada à condição econômica, a grande maioria dos residentes das localidades mais pobres é a que mais depende do transporte público. Por isso, os grupos de menor renda têm seu direito de ir e vir seriamente prejudicado, já que os custos do deslocamento diário podem ser um obstáculo considerável para sua locomoção. Em suma, a população branca e rica tem maior mobilidade urbana, enquanto que a população negra e de baixa renda experimenta maiores dificuldades para circular pela cidade, sendo que o grupo mais afetado são as mulheres negras de baixa renda.

 

Logo, a tarifa cobrada no transporte público é um elemento decisivo na sustentação da estrutura urbana segregacionista no DF, impedindo a população negra de circular livremente e reforçando padrões históricos de exclusão. Vale lembrar que, em 2015, o transporte foi incluído como direito social na Constituição Federal (Art. 6º), constituindo-se desde então em um dever do Estado. A tarifa representa, portanto, uma violação de um direito constitucional de milhões de pessoas.

 

Nesse cenário, a proposta de tarifa zero no transporte público emerge como alternativa viável e necessária para democratizar a cidade e garantir uma vida mais digna a grupos sociais historicamente marginalizados. Antes vista como "utopia", a tarifa zero hoje é realidade em mais de 120 municípios brasileiros (beneficiando mais de cinco milhões de cidadãos e cidadãs). Em março, teve início no DF o programa Vai de Graça, que garante tarifa zero aos domingos. Embora há pouco tempo em vigor, os efeitos positivos na economia local já são percebidos. 

 

É importante destacar que a tarifa zero não é uma política setorial; ao contrário, ela tem uma série de efeitos positivos que beneficia grande parte da sociedade. Simultaneamente, a tarifa zero é uma política de: i) distribuição de renda, já que anula o gasto com o transporte público e beneficia as pessoas de baixa renda; ii) combate às desigualdades raciais, pois permite maior liberdade de circulação à população negra; iii) garantia do direito constitucional de ir e vir para todas as pessoas; iv) redução das emissões de carbono, uma vez que tende a estimular um maior uso do transporte coletivo em detrimento do individual; e v) redução de mortes no trânsito, pela mesma razão.

 

É claro que a gratuidade no transporte público não resolve todos os nossos problemas, mas ela é um grande passo na construção de uma cidade mais democrática e menos desigual. O Vai de Graça é uma conquista importante, mas a tarifa zero precisa ser adotada todos os dias da semana, 24 horas por dia. Sabemos que é possível. No momento do seu 65º aniversário, Brasília tem a oportunidade de avançar — por meio da adoção da tarifa zero — na promoção de uma política de justiça socioambiental que a faria merecer, de fato, a alcunha de "cidade do futuro".

 

* Thiago Trindade é professor do Instituto de Ciência Política da UnB, coordenador do Observatório das Metrópoles em Brasília.

 

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