É comum, em todo o mundo, que trocas políticas nos cargos de poder interfiram em alguma medida na condução dos projetos ferroviários urbanos. No Brasil, porém, frequentemente essas mudanças trazem efeitos dramáticos à população na sua mobilidade. Dois casos, um ocorrido em Cuiabá (MT), outro em Canoas (RS), são exemplares desse fenômeno.
Cuiabá, e o VLT que não saiu do papel
Em 2012, foram iniciadas na capital matogrossense obras civis de uma rede de trem leve (VLT), com duas linhas e 22,2 km de extensão. No entanto, apesar dos trabalhos iniciados, o projeto nunca viria a ser concluído, com as obras parando em 2015. Após uma longa paralisação e várias disputas contratuais e políticas, o governo do estado do Mato Grosso decidiu desmontar os trilhos e construir uma rede de ônibus de trânsito rápido (BRT), operado por ônibus elétricos.
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VLTs de Cuiabá, vendidos sem uso ao governo da Bahia em junho de 2024 Foto: Município de Cuiabá
Originalmente, a rede de VLTs de Cuiabá tinha sido planejada a tempo de abrir os jogos da Copa do Mundo de 2014. Na época, o governo estadual concedeu ao consórcio VLT Cuiabá um contrato de R$ 1,48 bilhão. A linha 1, de 15 km, no sentido nordeste-sudoeste, foi planejada para ligar o Centro Político Administrativo (CPA), em Cuiabá, ao aeroporto internacional, em Várzea Grande. Já a linha 2, de 7,2 km, deveria conectar a sudeste o distrito de Coxipó ao Morro da Luz (Centro). A rede havia sido projetada para transportar 160 mil pessoas por dia.
As obras foram suspensas em 2015 por suspeitas de irregularidades na licitação. O contrato foi rescindido em 2017 e o projeto oficialmente abandonado em 2020, após mais de R$ 1 bilhão já ter sido gasto.
Em 2019, o governo estadual liderado por Mauro Mendes concluiu que retomar o projeto do VLT iria custar outros R$ 730 milhões, levando em conta o custo de renovação da infraestrutura já instalada, mas não mantida durante as disputas contratuais, e a necessidade de atualizar o material rodante já entregue e armazenado. Concluiu ainda que a construção de uma rede de BRT do zero, incluindo a remoção da infraestrutura do VLT quando necessário, sairia por menos, ou, R$ 480 milhões.
As obras de desmontagem dos trilhos do bonde começaram em março de 2023. Os 40 veículos leves sobre trilhos fabricados pela CAF, e alguns componentes da infraestrutura, foram vendidos ao estado da Bahia em junho de 2024 para uso na rede de duas linhas de VLT em desenvolvimento na capital Salvador.
O plano é que o corredor de BRT, cujas obras iniciaram em janeiro de 2024, siga em grande parte o traçado das duas linhas do VLT. Com uma frota de 56 veículos elétricos, as duas linhas compreenderão serviços de ônibus com e sem paradas intermediárias.
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Simulação gráfica do BRT de Cuiabá Imagem: Gov do MT
Estado x município
Diferentemente do governo estadual, o prefeito de Cuiabá, Emanuel Pinheiro, desde 2017 com bancada de liderança na Câmara Municipal, foi grande apoiador da conclusão do projeto do VLT. Pinheiro iniciou várias tentativas legais para impedir o governo estadual de levar adiante a rede de BRT, em favor da conclusão do sistema de bondes. À mídia local, ele declarou: "Não há senso comum em dizer que o BRT, que está começando do zero, é mais barato que o VLT, que já teve 70% das obras concluídas e boa parte do seu material já comprado." Emanuel Pinheiro também argumentou que outras cidades no Brasil, como Curitiba e Rio de Janeiro, estavam trabalhando em projetos para substituir suas linhas de BRT existentes por rotas de trem leve, e não o contrário.
O governador de Mato Grosso tem uma visão diferente, e alega que a decisão de substituir o bonde moderno pelo BRT levou em consideração estudos técnicos preparados pelo governo e pelo grupo técnico criado pela Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana, "que pôs fim a uma era de corrupção no estado."
O peoplemover de Canoas (RS)
Desde 2011, estava em desenvolvimento em Canoas - cidade localizada no extremo norte da Grande Porto Alegre - a proposta de um aeromóvel, linha de transporte de passageiros automatizada, que usa a tecnologia de propulsão a ar pressurizado desenvolvida localmente pelo engenheiro gaúcho Oskar Hans Wolfgang Coester.
O percurso inicial planejado era de 4,6 km, com sete estações, partindo de Guajuviras, a leste da cidade, até a estação Mathias Velho, na linha de metrô que liga Mercado, no centro de Porto Alegre, a Novo Hamburgo, no norte da área urbana. Embora curta, a linha de transporte atenderia a cerca de metade da população de Canoas, e ofereceria um tempo de viagem de ponta a ponta de 9 minutos; percorrer o mesmo trajeto por terra pode levar mais de 40 minutos em horários de pico.
No longo prazo, estudos previam estender a linha por mais 13,4 km. Planejada para ser realizada como um projeto PPP, teria capacidade para transportar 12 mil passageiros por hora/por sentido. Seriam 24 estações, se todas as extensões se concretizassem. O projeto começou durante a gestão de Jairo Jorge, cujos dois mandatos como prefeito de Canoas ocorreram de 2009 a 2017.
Cancelamento e frustração
O projeto do peoplemover recebeu R$ 272 milhões do governo federal e a construção começou em 2015. Sua obra, entretanto, foi interrompida em 2018, após outra gestão municipal ter sido empossada em 2017. O novo prefeito, Luiz Carlos Busato, moveu uma ação legal apontando irregularidades na licitação do projeto. Uma revisão do empreendimento considerou o custo muito alto e questionou sua viabilidade financeira. Decidiu-se então cancelar o projeto.
Em junho de 2019, um novo Plano de Mobilidade Urbana aprovado permitiu ao município alocar os restantes R$ 223 milhões do financiamento do peoplemover para outras obras de mobilidade, como reconstrução de estradas, reabilitação do espaço urbano central, melhorias na rede de ônibus, reconstrução de um terminal, criação de novas faixas de ônibus e infraestrutura para bicicletas. Os planos foram aprovados pelo governo federal para uso da verba parada. Vale dizer que quando o projeto do aeromóvel foi suspenso, 40% das obras estavam concluídas, com um gasto efetuado de R$ 60 milhões.
Reviravolta
Os eventos tomaram uma reviravolta em 2021, quando Jairo Jorge venceu as eleições municipais, retornando para outro mandato. Desde então, ele passou a retomar a proposta de peoplemover, realizando várias reuniões com representantes do governo federal.
No ano passado, a cidade solicitou cofinanciamento do Novo Programa Nacional de Aceleração do Crescimento (PAC), e aguarda o financiamento do governo federal para prosseguir com o projeto. O custo para concluir o primeiro trecho de 4,6 km agora é estimado em R$ 755 milhões.
A tecnologia do aeromovel no Brasil foi adotada primeiramente em Porto Alegre, onde uma pista de testes foi construída em 1983. Atualmente, a linha de um quilômetro ao longo da Avenida Loureiro da Silva é usada como atração turística. Outra linha foi inaugurada em 2013 para a ligação de uma estação do metrô aos terminais do Aeroporto Internacional Salgado Filho.
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Aeromóvel, parcialmente construído em Canoas. Imagem: Vera Zaffari & Co
No Brasil, o próximo aeromóvel deveria ter sido inaugurado no final de 2024. A linha de 2,7 km de extensão ligará o terminal Aeroporto-Guarulhos da linha 13-Jade da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) aos terminais 1, 2 e 3 do aeroporto de Guarulhos.
Em tempo: a primeira aplicação comercial do aeromovel ocorreu em Jacarta, na Indonésia, em 1989, quando uma linha de 3,2 km foi inaugurada para atender a quatro estações no parque Taman Mini Indonesia Indah.
* Marcelo Benoit é correspondente do grupo Railway Gazette International em Montevidéu, Uruguai. Artigo publicado originalmente no Metro Report International
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