Daniel Guth é mestre em Urbanismo pelo Prourb/UFRJ, consultor e pesquisador em políticas de mobilidade urbana e, atualmente, diretor executivo da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike). Usa a bicicleta em seus deslocamentos urbanos desde 2006 e já desenvolveu vários projetos de estímulo ao ciclismo urbano. Nesta rápida entrevista, Guth comenta a proposta da Prefeitura de São Paulo de conceder ciclovias e outras infraestruturas cicloviárias a parceiros privados.
Como você vê o Projeto de Lei 827/2024 da prefeitura paulistana que permitiria a gestão de trechos cicloviários por empresas? Você acredita que essa participação poderia melhorar a qualidade das ciclovias e ciclofaixas da cidade? De que forma isso seria controlado?
Em primeiro lugar, lembro que a Prefeitura já tem os instrumentos jurídicos e administrativos para fazer parcerias com a iniciativa privada. Eu insisto nesse ponto para evitar que a discussão fique no campo ideológico, ou seja, do poder público versus empresas privadas, que eu acho uma discussão equivocada. Se uma empresa quer fazer um termo de cooperação para um projeto-piloto de sinalização cicloviária, desde que obedeça aos parâmetros existentes; se outra empresa quer ceder tintas para a pintura de uma ciclovia; se uma empresa quer entrar em uma licitação para operar a manutenção de ciclovias, isso tudo já existe e está regulamentado. Ser contra a participação das empresas é um enorme equívoco. E dou um exemplo: o bicicletário existente no Largo da Batata (em Pinheiros, zona oeste); ele é operado pela Tembici e é patrocinado pelo Itaú, mas continua sendo público, operando em uma via pública.
Penso que a questão central é se a construção, manutenção e gestão da infraestrutura cicloviária deve deixar de ser uma responsabilidade do Estado. É óbvio que não, porque a ciclovia não é um equipamento isolado. E conforme o Código de Trânsito Brasileiro, uma legislação federal, a ciclovia é parte da via pública e não cabe às prefeituras legislar sobre esse assunto. As coisas estão conectadas do ponto de vista técnico, administrativo e jurídico.
Se a prefeitura conseguir passar esse projeto de lei, eu não tenho dúvidas de que essa questão irá para a Justiça e a prefeitura vai perder porque não se pode isolar a calçada, o meio-fio, o sistema de drenagem. Como recapear uma rua sem recapear a ciclovia? Como sinalizar a via sem sinalizar a ciclofaixa? Até mesmo do ponto de vista administrativo, essa divisão de responsabilidades iria criar uma enorme dificuldade burocrática.
Mas, se há tantos problemas, por que a prefeitura arriscaria essa manobra?
Eu vejo que na verdade a prefeitura, no caso o prefeito Ricardo Nunes, não quer atrair parceiros. Ela quer passar a responsabilidade para terceiros e deixar de responder pelo não cumprimento de metas, pela falta de manutenção ou de fiscalização nas ciclovias. Em outras palavras, quer 'tirar o corpo fora' do assunto. Se houver ciclistas que sofram quedas por buracos ou falta de limpeza, a prefeitura simplesmente vai apontar o dedo para os entes privados e dizer 'cobrem deles'.
Talvez o prefeito queira simplesmente economizar alguns milhões de reais, porque não consegue compreender que a infraestrutura cicloviária é um investimento para melhorar a mobilidade e promover mais qualidade de vida no ambiente da cidade.
E veja, não sou eu quem está dizendo. A Política Nacional de Mobilidade Urbana, a Política Municipal de Mobilidade Urbana, a Lei do Sistema Cicloviário da cidade, enfim, todos os marcos legais estabelecem a prioridade para as infraestruturas de uso da bicicleta, e para os pedestres. Então, em resumo, acho que a proposta é inviável e só trará prejuízos para a cidade.
Como executivo da Aliança Bike você avalia que essa proposição da prefeitura poderá prejudicar os negócios de quem fabrica, comercializa ou faz a manutenção de bicicletas? Como os empresários do setor veem o assunto?
A Aliança Bike reúne 200 empresas e nós trabalhamos para que mais pessoas usem bicicletas, seja como meio de transporte, como lazer, atividade física, turismo ou logística. Assim, teremos mais gente comprando bicicletas, usando os serviços das lojas, consumindo produtos para ciclistas.
Ou seja, estamos alinhados cem por cento com todas as propostas que estimulem o uso e aumentem o número de pessoas em bikes. Desta forma, nós nos posicionaremos contra qualquer medida que possa colocar em xeque a melhoria e a ampliação das redes cicloviárias.
Trabalhamos para o crescimento das políticas públicas que facilitem a circulação de ciclistas, melhorem a segurança e o conforto das pessoas. E entendemos que dentro do pacto federativo, a responsabilidade de melhorar essas condições é das prefeituras, a atribuição. Por isso, todos os anos nós monitoramos os indicadores das ciclovias nas capitais, produzimos estudos sobre a dimensão da bicicleta como meio de transporte porque sabemos que esse estímulo vai trazer ganhos na saúde e no esporte.
Ganhos no esporte?
Os países que mais investem na bicicleta como modo de transporte, como a Bélgica, Holanda, França e Reino Unido, são os mesmos que se destacam no ciclismo esportivo, seja de estrada ou na mountain bike. Um bom exemplo, aqui na América do Sul, é a Colômbia, que desenvolveu uma cultura de ciclismo esportivo em várias modalidade e, não por acaso, Bogotá é uma referência internacional no ciclismo urbano. Nós aqui temos um convênio com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio) para fomentar o uso de bikes em unidades de conservação, e também estimular a conservação ambiental, o que gera benefícios para todos. E achamos que nas cidades, na mobilidade urbana, não é diferente. Mais bicicletas, mais ciclovias, cidades melhores.
Conheça o projeto para a concessão das ciclovias
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