Nesta longa entrevista (em três partes), a engenheira brasileira Veronica Sesoko falou sobre as iniciativas de inovação adotadas pelo City Council de Dublin, discutiu os sistemas de bicicletas e patinetes públicas da cidade, e agora levanta possibilidades e dúvidas sobre o futuro dos drones na Irlanda e em toda a Europa.
Alguns anos atrás, nós começamos a discutir o uso de drones nas cidades, e uma das ideias era a de encará-los como uma alternativa de transporte de pequenas cargas. Talvez fosse uma alternativa boa para áreas rurais, mas arriscada para as cidades grandes, para cidades com grande movimento. E hoje, você como engenheira está envolvida em um projeto que estimula o uso de drones nas cidades. Que utilizações seriam mais adequadas?
O projeto em que estou trabalhando é o Drone Innovation Partnership e tem esse nome porque é uma parceria entre o Dublin City Council, que é a Prefeitura, o Irish Aviation Authority, que é o regulamentador da aviação, e a Maynooth University, que é a parte acadêmica.
Eu participei do primeiro projeto de drones da prefeitura, três anos atrás, que se chamava Accelerating the Potential of Drones for Local Authorities.
A ideia era estudar e explorar os usos possíveis dos drones em serviços públicos. Naquele estudo, concluímos que o drone pode realizar vários serviços de forma mais eficiente e segura.
Vários serviços?
Por exemplo, já estamos usando os drones pelo corpo de bombeiros, que é um serviço da prefeitura. Em caso de incêndio, é muito mais fácil ter uma visão geral do que está acontecendo usando drones, com imagens ao vivo. Os bombeiros também usam os drones para atividades de prevenção de incêndios. Eles começaram a mapear algumas regiões ou prédios específicos na cidade que são de alto risco. Um deles era uma igreja, a de Saint Patrick, que é um patrimônio histórico da Irlanda. A edificação tem várias áreas de difícil acesso, muito complicadas por ser uma igreja tão antiga. Eles usaram drones para mapear a construção e criaram um modelo 3D.
Eles conseguiram anexar todas as plantas dessa igreja, incluíram fotos de cada detalhe, de todas as áreas de risco, e foram colando todas essas informações, onde estão os hidrantes e onde estão os corpos de água que eles podem acessar. E tudo isso foi colocado em arquivos disponíveis na 'nuvem'. Então, em caso de incêndio na igreja, além de conseguir economizar muito tempo, os bombeiros podem evitar riscos, salvar a própria vida, e salvar também o patrimônio histórico por terem mais familiaridade com a construção.
Os bombeiros também mapearam uma planta industrial que tem reservatórios de produtos químicos e conectaram essas informações com a base de dados da planta. Desta forma, eles sabem exatamente qual substância está dentro de qual reservatório e também a quantidade armazenada. Em caso de incêndio, eles conseguem priorizar os trabalhos nas áreas de maior risco. Por exemplo, se for hidrogênio, que é altamente inflamável, então eles saberiam que têm que isolar esse reservatório em vez de tentar fazer o cordão de isolamento em todos os reservatórios. Eles conseguem priorizar.
Drones também são utilizados na avaliação de segurança das edificações pelo Building Control, o órgão que faz as inspeções dos prédios aqui. Fazem a vistoria dos edifícios, principalmente na cobertura, para ver se alguma coisa está fora de norma ou se precisa de manutenção. Eles também realizaram a inspeção no canal do rio Liffey, verificando e medindo as fissuras. Dessa forma, os engenheiros conseguem fazer todo o projeto técnico para a restauração. Esses serviços foram executados muito rapidamente, com grande economia de recursos.
Eu tenho vários amigos trabalhando em empresas de construção que usam também o drones, semanalmente ou cada duas semanas, para checar a evolução das obras, para ver se está compatível com o planejamento e os projetos. Por exemplo, as fundações, será que as escavações foram feitas exatamente nos pontos corretos? Eles conseguem mapear a obra e verificar se a evolução está de acordo com o contrato.
Equipe e parceiros do Drone Innovation Project: À esquerda, Ciarán Seoighe, Jamie Cudden,
Tim McCarthy, Stephanie Keogh, Veronica Mariti Sesoko, James Lawless, Aleksandra Kocon,
Thomas Curran, Eileen Quinlivan, Enda Walsh. Foto: Arquivo DIP
Mas no caso específico de mobilidade, nós sabemos que vocês também estão trabalhando com alguns tipos de entregas que podem ser mais rápidas com drones do que se fossem feitas com veículos circulando pelas vias da cidade. É isso?
Sim. Dublin está sendo uma das cidades pioneiras no mundo junto com algumas outras cidades dos Estados Unidos e da China também. Uma empresa irlandesa, a Manna Drone, começou a fazer entregas de comida no meio da pandemia de Covid, há uns quatro anos.
Iniciaram no interior, numa cidadezinha chamada Oranmore, fazendo algumas entregas de comida, mas também entregavam alguns medicamentos e outros produtos de farmácia. Depois de quase um ano de operações, eles mudaram para Balbriggan, uma vila aqui ao norte de Dublin. É uma cidade um pouco maior, que está em expansão. Foram muito bem-sucedidos e agora estão operando em uma outra região chamada Blushers Town, que já é muito mais perto do centro de Dublin, a cerca de meia hora de carro.
Mas como funciona essa entrega de comidas?
A empresa opera a partir de uma base, em um shopping center. Eles estabeleceram parcerias com vários restaurantes desse shopping e conseguem entregar café, pizza, hambúrguer em distâncias de até 5 km. Também fizeram parceria com um mercado, mas para pequenas entregas, de até dois quilos, ou alguma coisa assim. Pelo que sei eles já entregaram mais de 200 mil pedidos nesses últimos anos aqui na Irlanda, o que é bastante significativo.
E como esses produtos chegam ao consumidor? O drone entra pela janela da casa (risos)? Nós aqui ficamos imaginando isso numa cidade como São Paulo, com 12 milhões de habitantes, e a grande confusão que isso geraria...
Claro. Nós ainda não temos solução para situações como a de São Paulo, onde há muitos prédios altos. Tanto que mesmo aqui a empresa irlandesa opera somente nas áreas suburbanas, onde as pessoas em geral têm um espaço de jardim. Durante a viagem, o drone voa a cerca de 65 metros de altura até o local da entrega. Assim que chega, o equipamento desce até uma altura de 20 ou 15 metros e permanece estacionário, nessa altura. As entregas são feitas por meio de um cabo que desce a mercadoria até o solo. Depois a pessoa pode coletar o seu pacote.
Você falou também sobre a entrega de produtos de saúde, de emergências médicas...
Há uma outra companhia, a Wing, que começou a operar neste ano aqui. Ela pertence à Alphabet, ou seja, a mesma empresa que controla o Google. Começaram as operações durante o verão aqui na Irlanda e o foco deles é a parte de entregas médicas, principalmente na parte de sangue, de testes, objetos pequenos para hospitais. A Wing já fechou parceria com três hospitais privados na perspectiva de transportar rapidamente e de forma confiável esses produtos hospitalares.
Para isso montaram um centro de distribuição, com todos esses produtos, e aí podem entregar rapidamente, conforme os hospitais precisem desses componentes médicos. Estão testando isso aqui em Dublin e em Londres. As entregas são feitas no telhado dos hospitais, principalmente porque o hospital geralmente tem uma área bem grande de telhado, que aqui costuma ser plano. E o ruído dos drones acaba sendo barrado por aquela parede (platibanda) que circunda os telhados.
Aliás, drones são equipamentos barulhentos. Essas viagens, se forem constantes, não incomodam as pessoas? A prefeitura já fez alguma avaliação dessas entregas com drones e das consequências ambientais que isso pode gerar?
Ainda não existe essa conclusão. Essa é uma das principais reclamações que estão ocorrendo nas cidades que já têm entregas com drones 'em grande escala', digamos assim. O barulho nas entregas é a reclamação número um, porque as outras atividades nem são percebidas pela maioria das pessoas. Enquanto o drone está voando de A pra B, ele não faz tanto barulho, porque você consegue controlar a altura e manter a aeronave distante do solo.
No caso da Wing, o drone foi desenhado e fabricado para funcionar como um pequeno avião. Quando ele está voando com as hélices verticais, que eles chamam de navegação, é como se fosse um avião, com pouco ruído, quase inaudível. As pessoas começam a escutar quando o drone faz o "hovering", parado no mesmo ponto, como se fosse um helicóptero, ou quando está subindo ou descendo na vertical. Os especialistas estão tentando minimizar esse problema, repensando o design dos drones. Uma das providências que estamos tentando é verificar qual seria a quantidade admissível de drones voando dentro de uma área definida, por exemplo, um quilômetro quadrado.
Existe uma norma técnica, um standard para isso?
Não há norma técnica e ainda não existem estudos conclusivos sobre esses problemas. Os pesquisadores me explicaram que não basta limitar o nível de ruído, por exemplo para até 10 decibéis, porque a frequência do barulho também é importante, e se for alta o ruído agudo pode ser muito mais desconfortável.
E como são ondas sonoras, elas se propagam e são refletidas por edificações. Então, se você está em um ambiente aberto, ou se você está entre prédios, o ruído se propaga de forma completamente diferente. Então, tem muito estudo ainda para ser feito e esta é uma das áreas que a gente espera explorar um pouco mais. Não sabemos exatamente como isso vai funcionar e não temos ideia do impacto desse barulho também, por exemplo, para as aves.
Sim, influencia na parte de biodiversidade...
Um dos motivos pelos quais o órgão regulamentador autorizou essas operações comerciais é exatamente para que possamos começar a entender os impactos no ambiente real, quais seriam as áreas a estudar, o que priorizar, e o que realmente incomoda. Uma das grandes partes deste projeto, que tem a duração de dois anos, é exatamente responder a essas questões.
Estamos organizando um workshop para começar a falar sobre as áreas onde os voos não serão permitidos. Um exemplo é uma das ilhas aqui de Dublin, a Bull Island. É uma região de grande biodiversidade, um ponto de passagem das aves migratórias, que poderiam ser afetadas pelos drones. Então, nós vamos defender que durante alguns meses do ano essa região seja considerada uma zona proibida para voos. E daí, criar um mapa de zoneamento da cidade, do espaço aéreo, com essas restrições: altura de voo, nível de ruído, tempo de proibição e se vai ser durante alguns meses ou permanentemente.
Por exemplo, como vai funcionar o controle desse tráfego aéreo?
Justo. Uma das áreas que queremos explorar é a parte de Unmanned Aircraft System Traffic Management (UTM), que é basicamente entender como é que vai funcionar o sistema de tráfego aéreo dos drones. No solo nós temos as nossas ruas, os semáforos e todas as regras conhecidas de trânsito. Também sabemos como funcionam as marcações para a navegação dos aviões.
Mas para essa faixa que eles chamam de Low Airspace, a gente não tem regra. Há várias ideias, de delimitar corredores, que seriam como as avenidas, onde a gente concentraria o trânsito de todos esses drones. Mas provavelmente teremos que estabelecer normas para priorizar a circulação de emergência, a mesma coisa que a gente tem hoje para as ambulâncias ou os carros de bombeiros, de forma a abrir todo o espaço para esse drone passar caso outros drones estejam circulando na mesma rota.
No espaço aéreo temos uma altitude onde circulam os aviões de grande porte. Existe também uma faixa bem abaixo onde circulam aviões menores e os helicópteros. A faixa dos drones seria ainda inferior à dos helicópteros, uma faixa intermediária entre helicópteros e as edificações...?
Sim, exatamente. Aqui na União Europeia os drones com peso menor que 250 gramas podem voar a até 30 metros de altura sem você precisar pedir permissão a ninguém, a não ser em áreas restritas, que a gente chama no-fly, por exemplo em volta de prisões, hospitais ou aeroportos. Então, já existem algumas regras, mas só, como você pode ver, 30 metros de altura, é quase nada. Então, esse espaço aéreo é muito variável, porque depende do relevo, dos prédios, das construções existentes.
Uma curiosidade: Quem faz o controle do voo, por exemplo, de um centro de fornecimento de equipamentos hospitalares até o hospital para ter certeza que ele vai chegar a esse local?
É tudo via GPS, tanto que um dos motivos pelo qual você não vê drones voando dentro de prédios é que geralmente há o risco de o GPS perder o sinal. Então, essa é uma das limitantes. É necessário ter uma rede de GPS bem confiável para operar um serviço de drones, mas você já consegue operar eles de forma remota. Como esses drones contam com uma série de sensores acoplados, eles conseguem fazer toda a operação de forma remota.
Uma das inovações que a gente quer testar aqui na prefeitura no próximo ano é exatamente uma solução chamada Drone in the Box, que é um drone que tem todo o equipamento de navegação nele mesmo. Ele tem todos os sensores, estação de tempo, de clima, sistema de checagem, com toda a parte de testes, e produz o relatório para o piloto (humano), que vai estar em outra localização. Essa pessoa poderá autorizar remotamente o voo e daí acompanhar a operação, como se fosse uma torre de controle.
Ele é um robô construído e programado para ter todas as informações e se autoguiar para chegar a um determinado local. É essa a ideia?
Isso. Com esse Drone in the Box pensamos em evitar o excesso de drones que vão estar espalhados pela cidade e até mesmo reduzir os custos, porque você poderia alugar esse drone como serviço, sem ter que comprar a aeronave. É um tipo de aluguel, talvez por dois dias, para fazer a inspeção em uma fábrica. O drone sai de uma localidade, faz toda a inspeção, te envia os dados e acabou. Serviço finalizado. Amanhã talvez ele esteja trabalhando para uma outra empresa, fazendo serviços em outros locais.
Mas onde ficariam, de onde sairiam essas frotas de drones?
A Prefeitura está justamente estudando para saber quais são os espaços em terra que seriam necessários para os pousos e decolagens. Para o helicóptero, temos os helipontos e vamos precisar de "drone pontos" dentro da cidade. E aí temos uma série de perguntas: Como serão essas instalações, de que tamanho? Qual seria a distância ideal entre um e outro? São questões com forte implicações para o planejamento das cidades e várias delas fazem parte de nosso projeto.
Já há, digamos, um horizonte para esse plano do Dublin City Council? Qual seria o prazo para que essas ideias comecem a ocupar os céus?
Eu diria que a gente já está nessa jornada, tanto que o City Council estabeleceu o que ele chama de Drone Unit dentro de um programa mais geral, que é o Drone and Urban Air Mobility Strategy 2024-2029. Temos quatro pessoas dedicadas, full time, para desenvolver o serviço de drones.
A questão pendente é como é que isso vai funcionar com vários operadores independentes. Por exemplo, a Manna Drone está operando no norte de Dublin, enquanto a Wing está ficou com a parte ao sul da cidade. Essas duas empresas, elas já estão operando em Dallas, nos Estados Unidos, mas elas estão em um espaço que eles chamam de Uncontrolled Airspace. Então, o único mecanismo de segurança que eles têm é para evitar colisões: os sensores detectam o outro drone, eles desviam e acertam a rota.
Mas esse não é o estilo que a Europa quer. Nos desejamos desenvolver essas redes de UTM ou U-Space, que seria uma solução mais organizada. Para isso, há que ter um sistema de tráfego aéreo, ainda inexistente. E essa está sendo uma das principais barreiras para aumentar em escala as operações de drones. <continua...>
Leia mais: Na primeira parte da entrevista, Veronica Sesoko fala sobre inovação, tecnologia , bikes e patinetes na cidade.
Em breve: Na próxima (3ª) parte da entrevista, Verônica Sesoko explica como está sendo desenvolvido o sistema de controle de drones da Irlanda. E fala sobre o uso dessas pequenas aeronaves para o monitoramento da rede de ciclovias de Dublin.
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