Mariana Chiesa é advogada, doutora em Direito do Estado pela USP e especialista em gestão pública e advocacia consultiva. Ao longo de sua carreira, assessorou empresas, startups e ONGs em contratos de impacto social, consolidando uma ampla experiência na modelagem jurídica de políticas públicas e parcerias público-privadas.
É professora na graduação em Direito do Insper e na Pós-Graduação da FGV-SP. Além disso, integra a equipe do Instituto ZeroCem, que promove pesquisas sobre desenvolvimento sócio-ambiental justo. Nesta entrevista, concedida no início de outubro, ela traz sua visão sobre os dilemas para a definição e avanço das políticas urbanas, em especial aquelas relacionadas ao meio ambiente e à mobilidade sustentável.
O que é mobilidade urbana sustentável na sua visão de especialista em direito?
Uma mobilidade que dependa menos de combustíveis fósseis, que seja menos poluente, que privilegie os modos coletivos. Sabemos que tudo isso seria melhor para as cidades, e revendo a lei de 2012 que estabeleceu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, vemos que todas as prioridades deveriam ser dadas para as pessoas que andam a pé. No entanto, enquanto as prefeituras investem pesado na construção e renovação das vias para o tráfego motorizado, as calçadas continuam abandonadas, descontínuas. As prioridades continuam invertidas, em prejuízo das pessoas que querem caminhar ou usar bicicletas. E sabemos que a estratégia mais correta, mais sustentável, seria a valorização das calçadas, a instalação de mais ciclovias, de forma que as pessoas possam circular de maneira mais segura e confortável. Mas, olhando hoje para as cidades brasileiras, vemos que alguns consensos sobre o desenvolvimento urbano estão sendo colocados em dúvida, especialmente quando abordamos o assunto sob uma visão de sustentabilidade. Por exemplo, uma prática comum do urbanismo é adensar as cidades nos locais onde há mais oferta de infraestrutura. Mas se pensarmos que esse adensamento vai exigir mais energia, mais capacidade de drenagem, de oferta de água potável, levando essa infraestrutura ao seu limite, será que essa ideia do adensamento é realmente sustentável? Acho que neste momento nós estamos reexaminando algumas premissas para verificar se elas se mantêm. E isso vale também para a mobilidade.
Você citou a lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana, mas há uma óbvia lentidão para que as ideias presentes nessa legislação sejam aplicadas na prática. Será que teremos mais uma lei que será esquecida, engavetada? Como atuar para que essa legislação chegue às ruas?
O que me parece é que a sociedade ainda não compreendeu inteiramente a importância dos temas urbanos, em especial o da sustentabilidade na mobilidade urbana. Algumas pautas, como a da tarifa zero, vêm tendo avanços, mas por motivos que envolvem também o interesse de empresários e de prefeitos. Tenho a sensação de que nós brasileiros precisamos lutar para conquistar alguns avanços como sociedade. Nós depositamos muita expectativa nas leis, como se elas tivessem um toque mágico para resolver os problemas, mas às vezes as leis surgem sem refletir exatamente o que a sociedade está pensando. Então, precisamos desse trabalho de informar e apresentar a lei para puxar a sociedade, que depois poderá pedir novos avanços, novas leis, para ir mais a frente. E assim, um movimento puxa o outro para que a sociedade consiga chegar lá.
Poderia dar um exemplo?
Eu participei da gestão do (Fernando) Haddad na Prefeitura de São Paulo (2013-2016), quando elaboramos o novo plano diretor para a cidade. Esse plano propunha uma redução no número de garagens das edificações novas, nas proximidades dos terminais e eixos de transportes públicos, onde os moradores ou usuários poderiam chegar de ônibus ou de metrô. Mas essa proposta gerou uma verdadeira guerra, um debate irracional. O setor de shoppings foi um ator importante nessa polêmica, porque mesmo localizados perto do metrô, os projetos de novos shoppings eram obrigados a ter um número mínimo de vagas, que depois ficavam ociosas. Afinal, uma vaga de garagem é uma área construída mal utilizada e de difícil conversão para outros usos. Mas a polêmica se manteve por um longo tempo, de forma totalmente irracional.
A mesma coisa aconteceu na construção das ciclovias?
Sim. Eram projetos para facilitar a circulação da cidade, para proteger vidas, para reduzir os poluentes urbanos, mas geraram uma grande polêmica nos jornais. O interessante é que foi a legislação que puxou esse debate na sociedade. Essas disputas foram judicializadas, envolveram o Ministério Público, geraram termos de ajuste de condutas. Nesse processo, nós conseguimos criar um fundo, o Fundurb, a partir dos recursos de outorgas onerosas, cujos recursos seriam destinados à habitação social, mobilidade urbana e drenagem. Mas, veja, quando esse fundo atingiu uma cifra importante, em torno de um bilhão de reais, o que fez o atual prefeito, Ricardo Nunes? Ele conseguiu aprovar uma alteração na lei e utilizou esses recursos no sistema viário para automóveis, com o recapeamento asfáltico. Então, como advogada, eu esperaria que a sociedade civil se estruturasse de forma adequada para combater esse tipo de coisa.
Mas na área de mobilidade as organizações já vêm tentando atuar de forma organizada...
Sim, mas veja a área ambiental: nós já temos organizações bem estruturadas para o litígio estratégico. Na área de mobilidade há ações pontuais, pulverizadas, criando precedentes ruins, porque mal construídos, em vez de criar grandes "cases", bem estruturados, que permitam um avanço mais consistente da legislação.
Então, em resumo, você entende que as organizações que trabalham pela mobilidade urbana sustentável também precisam criar seu "pequeno exército" de especialistas para travar os combates na Justiça?
Eu penso que nossa sociedade está cada vez mais polarizada, cada vez menos capaz de resolver seus problemas em conversações, sem recorrer ao Judiciário. Isso significa que, se o Judiciário era importante no passado, agora ele é muito mais importante. E por isso, nós precisamos começar a olhar esse ambiente como um lugar onde precisamos estar presentes, mas sempre de forma qualificada. Eu participei indiretamente da ação pública contra o prefeito João Dória (2017-2018), quando ele decidiu numa canetada aumentar a velocidade de tráfego nas Marginais de São Paulo. Foi uma ação muito bem estruturada, com dados técnicos de várias áreas, que evidenciavam o absurdo daquela decisão. A profunda discussão que se estabeleceu acabou constrangendo o próprio prefeito, que não teve coragem de mexer na velocidade de outros corredores de trânsito da cidade, que ficaram em 50 km/h. Foi um baita resultado positivo. Claro que perder a ação foi ruim, mas essa ação bem estruturada foi importante para segurar o impulso dos gestores públicos. Esse foi um bom exemplo de litígio estratégico.
Falando em velocidade, o trânsito no Brasil continua perigoso, matando muita gente, especialmente motociclistas, pedestres e ciclistas. E nota-se um desrespeito à regulamentação, com muita gente passando sinais vermelhos, andando em velocidades altas nas ruas, estacionando sobre calçadas ou em ciclovias. Caberia uma ação coletiva contra os prefeitos para a proteção das pessoas?
O Estado tem uma responsabilidade em relação a esses "acidentes", que independe de quem é o culpado. Mas existem ações em que há um nexo muito claro entre o que aconteceu e a conduta do Estado. Por exemplo: se uma árvore cair e matar uma pessoa, ou se um pedestre é atropelado por um ônibus do sistema de transporte municipal, ou ainda se um pedaço de laje de uma UBS cai sobre um paciente, nesses casos a relação é muito objetiva. Nos casos em que não há uma relação direta é muito mais difícil fazer essa conexão de responsabilidade. Por exemplo, na ação contra o aumento de velocidade nas Marginais houve a tentativa de estabelecer essa conexão, associando um possível aumento de sinistros com as velocidades mais altas definidas pela Prefeitura. Juridicamente, essa conexão é difícil de ser feita.
Em relação aos novos prefeitos que assumirão em janeiro de 2025, a senhora acha que teremos boas notícias na área de mobilidade sustentável?
As novas gestões não têm muitas alternativas porque com as mudanças no clima as pautas da sustentabilidade, do urbanismo, estão chegando de forma mais intensa na vida dos cidadãos. O caso extremo do Rio Grande do Sul mostrou que a nossa sociedade precisa encontrar novas estratégias de desenvolvimento, e eu acho que isso vai consolidar uma pressão forte sobre as pessoas que ocuparem as cadeiras de prefeitos.
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