Mobilize

 
"A gente é torto igual a Garrincha e Aleijadinho
  Ninguém precisa consertar
  Se não der certo a gente se vira sozinho
 Decerto então nada vai dar"

Na terceira semana de julho chegamos aos 200 dias da seção #UmaRuaCadaDia. E depois de ver e examinar fotos de 400 vias públicas brasileiras, foi inevitável pensar na canção de Vicente Barreto e Celso Viáfora sobre as "tortices" de nossas ruas.

No período, publicamos fotos das vias públicas batizadas com a data de cada dia do ano, de 1º de janeiro a 19 de julho, com imagens de ruas, avenidas e praças, em todas as regiões do país. É uma amostragem aleatória dos espaços urbanos por onde os brasileiros caminham, pedalam e tropeçam. Revela a existência de dezenas de tipos de ruas, algumas sem pavimentação ou calçadas, outras estreitas e ocupadas por varais de roupas, cadeiras, escadarias, entulho, lixo, jardins e bancas de comércio.

Há pequenas passagens entre casarios em permanente construção, com crianças brincando, gente conversando e bicicletas encurtando distâncias. E há também largas avenidas, com várias pistas e trânsito feroz de veículos motorizados, que afugentam as pessoas a pé.

Mercado Central na praça 7 de Julho, em Pelotas (RS):
calçadas livres em região com urbanização bem consolidada

Em dias de sorte, encontramos algumas ruas bem consolidadas, com toda a infraestrutura necessária para a mobilidade segura, incluindo calçadas bem pavimentadas, faixas de travessia, semáforos para pedestres, ciclofaixas delimitadas, arborização e paisagismo, além de espaços para descanso. Mas são raríssimas exceções. Uma terceira versão de ruas brasileiras encontra-se em áreas quase rurais, recém incorporadas aos cadastros dos municípios, que ainda abrigam cavalos pastando e galinhas ciscando nas ruas.

 
Rua 20 de Abril, em Campina Grande (PB)

Olhando a amostragem atual, com mais de 400 fotos, fica evidente a quase impossibilidade de se cumprir a promessa de passeios acessíveis, com três faixas bem definidas (acesso, livre e serviços), como sugerem os manuais de urbanismo.

E examinando as imagens com novas lentes, podemos intuir um caminho possível e suave para essa transformação: simplesmente, deixar que a vida ocupe as ruas. Muitas fotos mostram a faixa de calçadas tomada por rodas de pessoas em cadeiras de praia, conversando, trabalhando, bebendo um cafezinho, vivendo a vida do lado de fora. Também se vê carros, muitas motos, caminhões e até ônibus estacionados nas ruas e sobre as calçadas, impondo suas presenças mecânicas acima das pessoas.

Ruas assim estreitas, com calçadas impraticáveis, poderiam ser transformadas em vias compartilhadas, com circulação restrita para veículos, mas completamente abertas a pessoas, para desfrute das conversas e brincadeiras infantis. É uma intuição, que talvez mereça um exame mais profundo de urbanistas, antropólogos, engenheiros, profissionais de saúde, comerciantes, gestores públicos e, claro, dos moradores de cada rua.

Rua 11 de Maio, em Salvador (BA): espaço de festa comunitária

As árvores que faltam
A baixa presença de árvores ou de qualquer paisagismo é outro aspecto a destacar nas imagens: são raras as ruas e cidades que oferecem essa proteção natural contra o sol tropical e o calor. Uma "invenção" brasileira, mais comum nas cidades do Nordeste, são as árvores plantadas em pequenos canteiros sobre as sarjetas (meios-fios) em várias ruas destacadas na seção. Funcionam como pequenos espaços drenantes, que poderiam ser transformados em "jardins de chuva", posicionados para absorver as águas e evitar a formação de enxurradas perigosas.

Rua 18 de Julho, em Ponta-Porã (MS): rara arborização

Um ponto importante é a constatação de que as imagens colhidas pelo serviço Google Earth Street View permitem acompanhar a situação e a evolução temporal das vias urbanas do país, avaliar condições das vias, calçadas, da sinalização, infraestrutura para bicicletas, iluminação, arborização pública, tratamento de resíduos e uma série de outros aspectos que compõem a vida urbana.
 

Trecho da Avenida 8 de Junho, em Santa Maria (RS)

Duzentos dias, quatrocentas ruas
A seguir, incluímos uma pequena estatística da amostragem realizada até agora. As imagens são geradas pela plataforma Google Earth Street View e selecionadas, editadas e comentadas pelo arquiteto e fotógrafo Lauro Rocha.

Das 400 ruas publicadas, 272 (68%) ostentam uma urbanização antiga, consolidada.
E destas 272: 

- 8 são dotadas de ciclovia ou ciclofaixa (2,9%); 

- 60 oferecem alguma arborização (22%); 

- 95 apresentam calçadas regulares e acessíveis na maior parte de sua extensão (34,9%); 

- 65 têm calçadas com largura que permitem a circulação, mas são obstruídas, em alguns pontos, por postes, árvores, degraus ou outros obstáculos (23,9%); 

- 112 mostram calçadas irregulares, sem nenhuma acessibilidade (41,1%).

OCUPAÇÕES E LOTEAMENTOS IRREGULARES
Dentre as 400 ruas, 83 (20,7%) parecem resultar de ocupações informais ou loteamentos irregulares. São vias em baixadas ou terrenos com  relevos acidentados, com calçadas estreitas ou inexistentes.

VIAS EM PROCESSO DE URBANIZAÇÃO
Das 400 vias publicadas, 26 imagens (6,5%) mostram ruas em processo de urbanização, sem calçadas, arborização ou sinalização viária.

VIAS "RURAIS"
Embora agregadas ao tecido urbano, 16 imagens (4%) mostram vias que sugerem ambientes com características rurais. Em geral, não são pavimentadas e não têm calçadas.

Veja fotos das 400 ruas
É uma viagem muito interessante pelas cidades do Brasil.

Janeiro: uma rua por dia
Fevereiro: uma rua por dia
Março: uma rua por dia
Abril: uma rua por dia
Maio: uma rua cada dia
Junho: uma rua cada dia
Julho: uma rua cada dia
 

*Nota: os textos e a pesquisa de imagens da ação #UmaRuaCadaDia são preparados diariamente pelo fotógrafo e arquiteto Lauro Rocha.

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