Há dez anos, em 2014, junto com amigos e amigas, Silvia Stuchi Cruz fundou a "Corrida Amiga", uma organização que procurava incentivar a corrida como forma de mobilidade urbana. Ao longo do tempo a iniciativa evoluiu para um instituto e passou a atuar na educação de crianças e jovens para o caminhar, essa forma antiga e quase esquecida de transporte. Para além do ativismo, como as campanhas Calçada-Cilada e Travessia Cilada, a trajetória de Silvia foi ancorada em uma sólida formação acadêmica: ela é gestora ambiental pela Universidade de São Paulo, no campus USP Leste, mestre e doutora pela Universidade de Campinas (Unicamp). E hoje atua como pesquisadora associada no Centro de Estudos sobre Urbanização para o Conhecimento e a Inovação (Ceuci), da Unicamp. Para marcar o décimo aniversário da Corrida Amiga, a ativista e hoje educadora fala sobre sua trajetória e detalha a intensa história de trabalhos, campanhas e publicações realizadas pela organização em todo o Brasil.
Como foi o início do Corrida Amiga?
Nós começamos com a ideia de corrida como forma de transporte, por conta do movimento internacional "run commuting" que conheci nos meus estágios de doutorado. Antes ainda, quando cursava a graduação na USP Leste, eu morava em São Bernardo e tinha que fazer viagens diárias de trem, trólebus, ônibus, carona...e essa experiência me fez refletir muito sobre os sistemas de mobilidade urbana, especialmente na Região Metropolitana de São Paulo. No doutorado, quando passei parte do tempo em outros países, constatei que existiam outras formas, mais humanas, de proporcionar os deslocamentos nas cidades, de forma a melhorar a vida de seus moradores.
Silvia Stuchi Cruz, fundadora do Instituto Corrida Amiga: em defesa do óbvio
O Corrida Amiga completou dez anos de trabalho incessante. Podemos falar em conquistas, em mudanças?
É muito difícil responder a essa pergunta. Eu gostaria que nós já estivéssemos vivendo em um outro tipo de cidade, bem diferente. Mas, sim, nós avançamos em termos de políticas públicas e também na consciência das pessoas de que precisamos encontrar um novo caminho para a mobilidade urbana. Hoje já se sabe que não adianta falar somente em trânsito, em melhorar o trânsito de veículos. As pessoas já incorporaram o conceito de mobilidade urbana sustentável, que é bem mais amplo e envolve a circulação dos pedestres, de bicicletas e do transporte público com mais qualidade. Antes, só se pensava em ampliar pistas, construir pontes, viadutos. Até mesmo a mudança do termo "acidente" para "sinistro de trânsito" na norma técnica, denota essa mudança de consciência, pelo menos entre os técnicos da área, para a redução de velocidades e maior cuidado com a vida humana.
Mas como iniciar a mudança necessária?
Hoje em dia nem é necessário ser um especialista para saber o que deveria ser mudado para melhorar a vida da população, o ambiente urbano. Estamos em um ano eleitoral e as propostas dos melhores candidatos já apontam para esse caminho da mobilidade urbana sustentável. É claro que ainda há muitos resquícios da "carrocracia", mas já vemos ideias como a tarifa zero, redes de mobilidade a pé, ciclovias etc., que sinalizam essa vontade de mudança. E há alguns planos e projetos que já estão chegando às ruas, como as ideias de ruas completas, zonas calmas, além de ações de proteção à primeira infância, como o realizado em Jundiaí (SP), ou o Mais Vida nos Morros, no Recife, os programas Rotas Seguras, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e o caso de Fortaleza, que despontou como exemplo, com prêmios no Brasil e no exterior. Há dez anos havia um tabu em falar sobre as políticas de reduzir velocidades, mas agora há um consenso. Claro que precisamos seguir pressionando para que as boas práticas se multipliquem, deixem de ser exceções e passem a fazer parte dos planos urbanos, do dia a dia de quem dirige, de quem planeja e projeta as cidades, especialmente neste momento em qeu começamos a sentir os efeitos das mudanças climáticas. Afinal, em que tipo de cidade queremos viver?
Você puxou o assunto das mudanças climáticas, que é decisivo para o futuro da vida humana e para as cidades. A Corrida Amiga vem trabalhando fortemente com a educação de crianças, que serão os continuadores do que nós fazemos hoje. Como é a resposta delas, dos professores e dos pais em relação ao problemas de mobilidade e de sua relação com as emissões, ruído, enfim da degradação do ambiente?
Sim. Esse trabalho com as crianças parece ser o caminho mais viável, mais efetivo, sempre pensando que logo elas serão pessoas adultas e estarão trabalhando e assumindo a liderança. Nós temos o projeto Escola Ativa, que fazemos em escolas públicas aqui de São Paulo. Ao chegar, nós fazemos um diagnóstico que levanta dados sobre a atividade física, sedentarismo e saúde dos alunos, mas também sobre as formas de transporte usadas, como uma mini pesquisa origem-destino. E ao final das atividades, quando lançamos um novo questionário, notamos que, em média, 49% das pessoas passaram a considerar caminhadas de até 15 minutos como uma forma de mobilidade. Outras 34% passaram a considerar caminhadas de até 30 minutos para suas atividades diárias, como ir ao mercado, à padaria ou visitar uma pessoa. E 90% das pessoas passaram a reconhecer a caminhada como uma boa forma de atividade física. Mais ainda, 97% entendem que as atividades ao ar livre também são fundamentais para o pleno desenvolvimento intelectual das crianças, o que aponta a necessidade de mais parques, praças e ruas livres para que elas possam brincar e ter um desenvolvimento pleno, físico, cognitivo, social, e como cidadãs.
Crianças experimentam caminhar guiados por bengala de cego
Veja, parece que as cidades estão seguindo no caminho contrário, com uma onda irrefreável de construções, de novos edifícios, fechados em si, sem contato com os espaços públicos...
Nós do Corrida Amiga não temos resposta para essa questão, que tem raízes políticas e econômicas, dentro de uma lógica baseada em visões liberais, financeiras. Há essa força que vem de cima para baixo e que desconfigura bairros inteiros, restringe os espaços verdes...Mas há também o outro lado, o esforço de baixo para cima, feito por organizações como a nossa, pelas pessoas que se interessam e participam conosco, que se tornam voluntárias. E são pessoas de todas as classes sociais, com várias formações e profissões, mas todas interessadas em fazer alguma coisa, espalhar essa cultura da gentileza, de respeito ao pedestre, de evitar o uso desnecessário do carro, de "fazer a revolução do óbvio".
Caminhar é simples, natural, é óbvio...
É óbvio, mas nós precisamos levar o mesmo cuidado que temos com a nossa casa, com a sala de estar, com o jardim do condomínio, ao espaços públicos. As pessoas, sejam crianças, mulheres ou homens, de todas as idades, precisam estar seguras nas ruas, nas praças, tanto do ponto de vista da segurança pública como do trânsito, de ter certeza de que podem atravessar uma rua pela faixa de pedestres sem correr o risco de serem atropeladas. Talvez ao colocar esses desafios, que interessam a todas as pessoas a gente consiga furar algumas bolhas e ganhar mais espaço.
Há um mês o Corrida Amiga realizou uma campanha, a Travessia Cilada, que procurou avaliar os tempos de espera e de travessia nas sinaleiras (semáforos) de pedestres. Quais foram os resultados obtidos nessas avaliações, que foram feitas somente com o apoio de voluntários?
Infelizmente, apesar dos avanços na parte regulatória que eu mencionei, as cidades continuam priorizando o fluxo do trânsito motorizado, obrigando os pedestres a longas esperas. E o problema não se limita às grandes metrópoles, mas também atinge as cidades do interior. Em algumas cidades do estado de São Paulo, em atividades com o Sesc e com escolas públicas, eu fiquei bem assustada em ver o crescimento da frota de carros e especialmente de motocicletas. São cidades em que as pessoas não andam mais nas ruas e onde quase não se vê crianças brincando. É assustador.
Também é um pouco desanimador, porque as autoridades parecem pouco interessadas em estimular que as pessoas ocupem as ruas...Mas, seguimos em frente, correto?
O que posso dizer é que o Corrida Amiga vai continuar trabalhando para que tenhamos cidades mais humanas. E vamos integrar a coalizão que estará realizando a campanha Mobilidade Sustentável nas Eleições, de forma a influenciar os eleitores e fazer com que os candidatos incluam nossas pautas em seus programas.
Jovens de escola pública pintam painel em defesa da mobilidade urbana sustentável
Por fim, você pode dizer como funciona, como fazer contato e como participar das ações do Corrida Amiga?
Todas as ações que realizamos, sejam em escolas, em praças ou em unidades do Sesc, são gratuitas para o público. E agora neste mês de agosto teremos um novo treinamento de voluntariado. Temos uma lista muito grande de escolas para atender e nem sempre conseguimos, por falta de recursos humanos. Os voluntários passam por um treinamento intensivo, de um dia inteiro, aqui na nossa sede, em São Paulo, pertinho da estação Sumaré do metrô. Depois do treinamento as pessoas podem participar conosco das atividades, campanhas, coleta de dados, produção de relatórios, porque tudo que fazemos se transforma em publicações para uso público.
Há ainda espaço para a corrida?
Com o passar do tempo e a chegada de outras pessoas e visões, sobretudo da pedagogia, fomos ampliando e diversificando nossa atuação. Apesar do nosso foco atual estar no público infantil, ainda estimulamos sim o uso da corrida como meio de transporte. Eu sigo firme, caminhando e correndo.
Para saber mais sobre o Instituto Corrida Amiga:
Site: http://corridaamiga.org
Instagram: https://www.instagram.com/corridaamiga/
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