A defesa do ar limpo no Brasil

Os valores orientadores para qualidade do ar adotados no Brasil permanecem defasados. Agora, no contexto das mudanças climáticas, a situação está se agravando ainda mais

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Fonte: Carta para o Futuro  |  Autor: Carlos Bocuhy  |  Postado em: 15 de julho de 2024

Mancha de poluição de material particulado no hori

Material particulado no céu de São Paulo em 2023

créditos: Foto: Edilson Dantas / O Globo

Segundo a Organização Mundial da Saúde, a poluição do ar ambiente (ao ar livre) causou 4,2 milhões de mortes prematuras em todo o mundo em 2019.

 

A OMS sugere dois caminhos para resolver o problema: adotar ou revisar e implementar padrões nacionais de qualidade do ar, alinhados com as diretrizes mais recentes da organização, e identificar e controlar as fontes de poluição.

 

Adotar essas diretrizes no Brasil não é uma tarefa fácil. O Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) tem enfrentado um longo caminho para viabilizar essa implementação.

 

Há 20 anos, em 2002, o Proam iniciava a coordenação do Programa Metrópoles Saudáveis em parceria com Opas-OMS, que realizou um estudo comparativo sobre saúde ambiental, abrangendo metrópoles como São Paulo, Belém, Curitiba, Cidade do México, Buenos Aires, La Paz, Ciudad Juarez e El Paso, entre outras.

 

A busca por indicadores prioritários e saudáveis foi estabelecida no Termo de Referência para Metrópoles Saudáveis (Proam/Opas 2007), que reconheceu a poluição atmosférica como um dos principais problemas ambientais de saúde pública. Segundo dados da Faculdade de Saúde Pública da USP, a metrópole de São Paulo registrava cerca de 17.000 óbitos por ano devido à poluição atmosférica.

 

Os avanços da epidemiologia ambiental sobre a poluição do ar ocorreram de forma progressiva após a década de 1990, quando os avanços tecnológicos permitiram maior precisão na definição de limites seguros para a saúde humana. No Brasil, a resolução Conama 03/90 estabeleceu os Padrões de Qualidade do Ar (PQAr), baseados na revisão científica dos padrões realizada pela OMS em 1987.

 

Novos valores indicadores de PQAr, mais protetivos, foram estabelecidos pela OMS em 2005. Em resposta, o Proam propôs, em 2008, a atualização dos PQAr para o Estado de São Paulo, por meio do Conselho Estadual do Meio Ambiente de São Paulo (Consema). Utilizamos a prerrogativa legal de estabelecer normas mais protetivas que as nacionais, devido à morbidade que afetava não só a capital do estado, mas também cidades do interior paulista, que sofriam com problemas de saúde decorrentes da queima de cana-de-açúcar.

 

Cinco anos depois, com um inexplicável atraso de dois anos na gaveta do Executivo, foi sancionado o Decreto nº 59.113, em 23 de abril de 2013. Novos padrões entraram em vigor para o Estado de São Paulo, com metas, mas sem prazos definidos. Atualmente, a norma se encontra na Meta Intermediária 2 (MI2), conforme pode ser verificado no site da Cetesb.

 

Também em 2013, o Proam pressionou insistentemente o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para revisar a resolução Conama 03/90 e atualizar os PQAr em nível nacional. Os trabalhos no Conama, iniciados em 2013, duraram seis anos devido a constantes obstruções de interesses econômicos e políticos envolvidos, resultando finalmente na Resolução Conama 491/2018.

 

O resultado foi pífio. A obstrução do setor industrial e de alguns órgãos ambientais estatais, que temiam ser responsabilizados pela falta de implementação de padrões mais seguros, demonstrou que a Lei de Crimes Ambientais é um pesadelo para os férteis terrenos da desconformidade ambiental no Brasil.

 

Nesse cenário adverso, a sociedade civil alinhou-se ao Ministério Público, buscando meios para reagir ao descalabro do resultado que já se desenhava no Conama, que já apresentava baixa eficiência democrática.

 

Não resta sombra de dúvida de que, assim como os PQar necessitavam revisão por defasagem científica, a composição do Conama merece revisão em função de sua evidente deficiência democrática.

 

Sobre essa matéria já se manifestou o STF: “Cabe ao Poder Executivo, a partir das premissas constitucionais que conformam os processos decisórios democráticos e os direitos fundamentais de participação e procedimentais ambientais, escolher o desenho institucional mais adequado. Não se afirma nesta decisão constitucional qual a organização-procedimental a ser adotada, mas a marcação da moldura democrática e dos direitos fundamentais a serem respeitados”.

 

O ilustre jurista José Affonso da Silva, durante Audiência Pública promovida pelo Ministério Público Federal da 3ª Região em conjunto com o Proam, em 2018, sobre aspectos técnicos da revisão dos Padrões de Qualidade do Ar (PQar) para o Brasil, assim se manifestou:

 

A poluição do ar é a mais danosa das poluições, porque ela é expansiva. É expansiva no sentido de que ela provoca a poluição de todos os demais elementos da natureza... e especialmente porque ela provoca doenças respiratórias que levam à morte, como ficamos sabendo através das estatísticas de morte em consequência dessa poluição”.

 

Na mesma Audiência Pública, a então procuradora-geral da República Raquel Dodge afirmou que “no centro desta Audiência Pública estão em jogo dois bens essenciais à vida: a saúde e o meio ambiente. Com efeito, qualquer regramento que não garanta a extensiva e eficaz proteção a esses direitos não estará sob a guarda da nossa ordem constitucional”.

 

O impasse estava instalado. Em função da insuficiência protetiva, caracterizada por metas sem prazos e valores elevados para episódios críticos de poluição, a resolução foi aprovada sob protestos do próprio proponente, o Proam, em conjunto com a bancada ambientalista do Conama, especialistas em controle de poluição, do Ministério Público Federal e do Ministério da Saúde.

 

No período que antecedeu à judicialização da resolução do Conama no STF, apelamos ao deputado Paulo Teixeira para que construíssemos uma lei do ar para o Brasil. O Conama era evidentemente vulnerável aos interesses econômicos e a situação poderia ser melhor equacionada por força de Lei. Assim surgiu a Lei da Política Nacional da Qualidade do Ar, de 2 de maio de 2024, decorrente de um encontro fortuito nas escadas rolantes do Aeroporto de Brasília.

 

Em que pese avançar na determinação do levantamento de fontes de poluição, lição de casa que seguia abandonada pelos órgãos ambientais, a Lei remete ao Conama a regulamentação técnica, ou seja, a armadilha antidemocrática continua.


Poluição por trânsito na av. Marginal do Pinheiros, em São Paulo Foto: Ag. Brasil

 

A Resolução 491/2018 acabou objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6148, proposta pela Procuradoria-Geral da República.

 

Julgada em 5 de maio de 2022, o STF determinou que “no prazo de vinte e quatro meses a contar da publicação do presente acórdão, o Conama edite nova resolução sobre a matéria, a qual deverá levar em consideração: (i) as atuais orientações da Organização Mundial da Saúde sobre os padrões adequados da qualidade do ar; (ii) a realidade nacional e as peculiaridades locais; bem como (iii) os primados da livre iniciativa, do desenvolvimento social, da redução da pobreza e da promoção da saúde pública; (iv) por fim, decorrido o prazo de vinte e quatro meses acima concedido, sem a edição de novo ato que represente avanço material na política pública relacionada à qualidade do ar, passarão a vigorar os parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde enquanto perdurar a omissão administrativa na edição da nova Resolução”.

 

Dessa forma, remeteu-se a tarefa novamente para o Conama, que continua a sofrer da crônica insuficiência democrática ao abrigar formidável desequilíbrio de forças entre interesses governamentais e econômicos em contraponto à minguada representação das ONGs ambientais.

 

O Conama só deliberou sobre a matéria em 12 de junho de 2024. Novamente cedeu à pressão dos órgãos ambientais e setores industriais que resistiam à adequação tecnológica para redução de emissões. Manteve metas e prazos excessivamente lenientes.

Resolução Conama 491/2018 revisada e aprovada em 12 de junho de 2024 - gráfico do anexo I com observações sobre prazos do Proam. Obs: o PF representa o valor recomendado como seguro na revisão de 2021 da OMS


 

O Padrão Intermediário 2 (PI-2) será aplicado nacionalmente de janeiro de 2005 até dezembro de 2032, admitindo para alguns poluentes como Material Particulado MP10 o dobro do padrão seguro recomendado pela OMS -- e para MP2,5 , o quádruplo, apesar de ser reconhecidamente carcinogênico.

 

Os padrões serão posteriores serão o Padrão Intermediário 3 (PI-3) até 2043; PI-4 até 2048, quando finalmente será estabelecido prazo para atingimento do Padrão Final, ou seja, o índice seguro à saúde ficará apenas para a metade do século 21. Salve-se quem puder.

 

Certamente durante este período a OMS revisará novamente os PQar, como já fez em 1987, 2005 e 2021.

 

Há um incompreensível silêncio sobre este descalabro. É evidente a fragilidade da norma que só atesta a incapacidade estatal de impulsionar novas tecnologias e acordos setoriais, algo similar à falta de implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que patina na capacidade estatal de cobrar a economia circular.

 

Nessa lógica o mercado é o senhor da razão. Os valores orientadores para qualidade do ar adotados no Brasil permanecem defasados, só que agora estão sendo agravados no contexto das mudanças climáticas.

 

Não posso deixar de nominar aqui algumas das organizações e especialistas que atuaram para avançar com os padrões de ar mais seguros para o Brasil, entre estes o engenheiro Olímpio Alvarez, especialista em controle de emissões veiculares; Paulo Saldiva, Alfesio Braga e Evangelina Vormitag, da área de saúde pública; o jurista José Affonso da Silva; os procuradores regionais da República Fátima de Souza Borghi e José Leônidas Bellém de Lima; e a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge, além de tantos outros que demandavam a edição de uma norma que fosse, de fato, protetiva à saúde pública.

 

O fato é que continuamos no impasse por ar limpo. A busca por justiça ambiental só se concretizará com a implementação de políticas públicas firmes para a redução de poluentes.

 

Nessa lacuna, o Brasil continua a orientar seu crescimento por meio de uma precária meta intermediária e PQar defasados. De forma distorcida, há subterfúgio de utilizar padrões ambientais não seguros à saúde como referência para novos licenciamentos ambientais.

 

Assim, novos empreendimentos já nascem poluentes e com protetividade insuficiente, a exemplo da megausina termelétrica que se pretende instalar em Caçapava (SP), cuja emissão equivale à carga poluidora de 6,5 milhões de veículos (em NOx), em uma região que apresenta pontos de saturação em material particulado e ozônio troposférico, conforme aponta parecer do Proam encaminhado à Procuradoria da República de São José dos Campos.

 

Essas distorções estão desinformando a sociedade, permitindo estudos de impacto ambiental inverídicos. Estamos deixando de implementar boa política por ar limpo. Continuamos a viver um atentado contra a boa normativa ambiental, com precários indicadores ambientais que deveriam ser priorizados entre os elementos mais importantes e essenciais para garantir saudável qualidade de vida para os brasileiros.

 

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