Tarifa zero: luta de classes e apropriação empresarial da gratuidade

Em artigo, os pesquisadores Gustavo Serafim e João Lucas Campos discutem os modelos de gratuidade no transporte adotados por cidades brasileiras

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Fonte: Congresso em Foco  |  Autor: Gustavo Serafim* e João Lucas Campos**  |  Postado em: 03 de julho de 2024

Ônibus com tarifa zero em Luziânia , Goiás

Ônibus com tarifa zero em Luziânia , Goiás

créditos: Reprodução/ Chico Santana

Originada nos anos 1980, durante o governo Luiza Erundina no município de São Paulo, a proposta de Tarifa Zero no transporte público ganhou uma força nunca vista nos últimos anos. Naquele momento, quando todas as condições técnicas para sua implementação foram apresentadas, a proposta foi institucionalmente inviabilizada, os jornais a acusavam de “irracional” e temiam que a população depredasse os ônibus.


No início do século 21, diversas revoltas por transporte nos municípios brasileiros, como a Revolta do Buzu em Salvador (2003), a Guerra da Tarifa em Florianópolis (2005) e a luta pelo Passe Livre Estudantil no DF (2006), criaram o Movimento Passe Livre, que foi responsável por dar um novo fôlego à proposta de Tarifa Zero na agenda pública a partir das manifestações de junho de 2013.


Caluniada como uma "proposta infantil e impossível", hoje mais de 100 cidades do Brasil tratam essa pauta como uma solução para a crise de mobilidade urbana e até mesmo a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), antes inimiga da ideia, estuda os impactos da política em 2024. Mas por que o empresariado, oligarquias locais e até políticos de direita estão interessados em zerar o preço das passagens quando antes criminalizavam quem fazia essa reivindicação nas ruas? Será uma preocupação sincera na democratização das cidades e no fim da segregação urbana? O que explica esse “acordo tácito entre movimentos e empresários”[1]?


Não é novidade que o transporte público é, em muitos casos, a única maneira de determinados setores da sociedade se locomoverem pela cidade, especialmente para as pessoas de baixa renda que não têm condições de comprar veículos de transporte individual.


A necessidade de se transitar pela cidade encontra tanto barreiras geográficas quanto barreiras sociais e econômicas, no sentido de que a imposição de uma tarifa a ser paga diretamente pelos usuários desse serviço impacta diretamente no acesso a outros direitos no ambiente urbano.


Nesse sentido, o direito ao transporte (garantido no artigo 6º da Constituição Federal), representa um importante mecanismo de cidadania, mas que é constantemente negado aos segmentos mais pobres ao se cobrar uma tarifa incompatível com a renda da população.


Durante as eleições de 2022, o Supremo Tribunal Federal determinou a suspensão da cobrança de tarifa em todas as capitais do país em dia de eleição como uma medida de enfrentamento à abstenção eleitoral, representando o reconhecimento institucional do Estado brasileiro sobre a importância do acesso universal e gratuito ao transporte público. Se a tarifa pode impedir tantos brasileiros de exercerem o seu direito ao voto, imagine quantos outros impedimentos ela gera cotidianamente a todas as pessoas que dependem do transporte público para acessar a cidade.


O aumento exponencial do número de municípios com Tarifa Zero a partir de 2020 (cerca de 220%)[2], ano em que se iniciou a pandemia de Covid-19, se destaca ao analisar o histórico de implementação dessa política no Brasil. As medidas de lockdown e de distanciamento social, inquestionavelmente necessárias para a redução do número de pessoas infectadas pelo vírus, impactaram na diminuição de passageiros nos ônibus, trens e metrôs nas cidades, impondo novos desafios à manutenção do sistema de transporte em diversas cidades.


Na Região Metropolitana do Entorno do Distrito Federal (RME), dois municípios adotaram a Tarifa Zero após 2020: Formosa (GO) e Luziânia (GO).


Na cidade de Formosa, a implementação do programa municipal “Transporte para Todos” ocorreu devido à grande dificuldade em manter contratos com empresários do transporte no período pandêmico[3], chegando ao ponto da cidade, que tem mais de 100 mil habitantes, ficar sem transporte público por meses. Nesse cenário, é notória a contradição entre os interesses do empresariado em manter um serviço lucrativo e as necessidades da população em exercer o seu direito ao transporte público.


Além disso, o caso de Formosa evidenciou um aspecto já apontado há anos por movimentos sociais e pesquisadores da mobilidade urbana: o atual modelo de financiamento do transporte público é insustentável econômica e socialmente. O constante aumento no preço das tarifas provoca a diminuição no número de usuários, reduzindo a receita do sistema e provocando uma nova necessidade de aumento para atender à pressão dos donos das empresas de transporte coletivo. Esse é o chamado “ciclo vicioso da tarifa”, que sobrecarrega principalmente os setores mais pobres, que dependem desse serviço no seu dia a dia.


Hoje, segundo os dados referenciados anteriormente, mais de 5 milhões de brasileiros têm acesso a sistemas de transporte público gratuitos. Se antes parte da mídia e dos gestores acusavam essa proposta de “irresponsável” ou mesmo “utópica”, atualmente a lista de municípios que adotam a política de Tarifa Zero aumenta a cada mês. Está evidente não só a possibilidade técnica de sua implementação, mas, em muitos casos, a sua necessidade como solução de problemas sociais e econômicos que atingem diversos municípios no país.


Ocorre que melhorias no transporte público por ônibus podem ser motivadas pelo custo geral que engarrafamentos longos de automóveis individuais causam para a economia, aumentando os atrasos e diminuindo o tempo no trabalho, gerando acidentes e poluindo a cidade. Há, inclusive, propostas que buscam quantificar quanto do Produto Interno Bruto (PIB) é perdido em função disso.


Não é estranho que cidades que implementaram essa política apresentem um crescimento econômico e associações comerciais elogiem a proposta, porque zerar a tarifa atende ao sentido que o transporte público tem de uma Condição Geral de Produção para a acumulação capitalista. É o motivo central pelo qual Talim, na Estônia, adotou a medida, como um mecanismo de modernização econômica[4], porque mais pessoas circulam pela cidade, podendo consumir mais com o que economizam e acessar a cidade de forma facilitada.


Para o empresariado do transporte, ocorre algo similar. Apesar da ampla variedade de modelos de Tarifa Zero, a política necessariamente exige um recurso oriundo integralmente do orçamento estatal, nesses casos dos respectivos municípios, tenham eles criado novas fontes de recurso ou não.

 

Mas a Tarifa Zero pode ser implementada mantendo as catracas. Tanto as catracas físicas, como forma de quantificar e limitar a quantidade de viagens e passageiros, quanto as catracas do funcionamento básico do transporte.


Em boa parte das cidades, o cálculo da remuneração do serviço onde há subsídios pagos pelo Estado se dá por meio do Índice de Passageiro Por Quilômetro (IPK): a empresa recebe um valor por cada passageiro que gira a catraca. Essa lógica faz com que quanto mais lotado está um ônibus, maior a lucratividade das empresas, incentivando a superlotação.


Por outro lado, linhas de ônibus que não estejam superlotadas e atendem regiões mais periféricas e distantes são consideradas linhas deficitárias pelo empresariado, que optará por cortar linhas que muitas vezes são as únicas que atendem aqueles bairros ou regiões, mantendo formas de segregação.


Se mantida a catraca da falta de participação popular nas decisões sobre a operação do transporte, envolvendo quem usa e trabalha no serviço, ela continuará restrita ao empresariado e às prefeituras, que não conhecem necessariamente os trajetos de que a população mais necessita. E há, ainda, as propostas de que o preço da passagem zero seja financiada por meio de pedágios urbanos ou tributos não progressivos sobre automóveis individuais, como propõe a NTU, opção que mantém outras formas de segregação. São catracas virtuais.


Isso explica em parte porque empresários passaram a considerar a proposta, que antes acusavam de ser impossível, e porque oligarquias locais, antes inimigas da Tarifa Zero, passaram a defendê-la. De um lado, a fagulha de sucessivas revoltas por transporte ao longo dos anos tornou-a central na agenda pública. De outro, o aprofundamento da crise de mobilidade ao longo dos anos criou a necessidade de outra solução fora do ciclo vicioso das tarifas. Os empresários tentam, assim, se apropriar e domesticar a pauta.


Assim como a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi essencial, mas não encerrou a luta pelo direito à saúde, zerar a tarifa do transporte público não põe fim à luta para que o transporte não seja uma mercadoria. A Tarifa Zero é um passo essencial para isso, mas pode ir além: pode atuar como uma ferramenta de combate à segregação urbana e de aumento da participação popular no funcionamento da cidade.


Certamente, eleições não serão capazes de produzir mudanças tão profundas e necessárias quanto as de uma revolução, como na Espanha em 1936, onde os (as) próprios trabalhadores (as) passaram a organizar e autogerir todo o transporte coletivo de algumas cidades conforme suas próprias necessidades.


Contudo, o tema incontornável do transporte público e da Tarifa Zero virá à tona, como as cidades do Entorno do DF, Luiziânia (GO) e Formosa (GO) apontam. Caberá à sociedade reivindicar um modelo de Tarifa Zero que democratize as cidades ao máximo que for possível, incentivando a participação e quebrando a segregação, sem catracas, sem superlotação e sem novas formas de controle.


Leia o original
Este artigo foi publicado originalmente no site Congresso em Foco, com o título "Tarifa zero: luta de classes e apropriações empresariais da gratuidade do transporte público". Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião do Mobilize Brasil.


Os autores
*
Gustavo Serafim é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade de Brasília (UnB); pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Observatório das Metrópoles (Núcleo Brasília) e militante das lutas por transporte.

**João Lucas Campos é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade de Brasília (UnB); Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Observatório das Metrópoles (Núcleo Brasília) e militante das lutas por transporte.


Notas:
[1] CARIBÉ, Daniel Andrade. Tarifa Zero: Mobilidade urbana, produção do espaço e direito à cidade. 2019. 372 f. Tese – Universidade Federal da Bahia – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Salvador, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/32615. Acesso em: 19 abr. 2024.

[2]  SANTINI, Daniel, 2024, “Brazilian municipalities with full Fare-Free Public Transport policies – updated March 2024”, https://doi.org/10.7910/DVN/Z927PD, Harvard Dataverse, V1

[3] Mobilize Brasil, 11/08/2021. Cidade de Formosa (GO) adota tarifa zero no transporte coletivo. Disponível em: <https://www.mobilize.org.br/noticias/12780/cidade-de-formosa-go-adota-tarifa-zero-no-transporte-coletivo.html> ; Acesso: 28/05/2024.

[4] SANTINI, Daniel. Passe Livre: as possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização. Autonomia Literária: São Paulo, 2019.

 

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