Carros matam o ambiente das cidades e geram uma dupla exclusão social

Em artigo de 2020, Roberto Andrés já mostrava como a expansão imobiliária e o culto ao carro pioraram as condições ambientais, gerando catástrofes como a do RS

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Fonte: Roberto Andrés / Revista Piauí*  |  Autor: Mobilize Brasil  |  Postado em: 13 de maio de 2024

Vista aérea de um estacionamento: nenhuma permeabi

Vista aérea de um estacionamento: nenhuma permeabilidade

créditos: Edição Mobilize Brasil

Previsível, antecipado há décadas pelos cientistas, o fenômeno da mudança climática tem afetado o mundo, Brasil incluído, com secas, incêndios, tempestades e inundações. O caso mais recente, no Rio Grande do Sul, exige socorro urgente, mas é um alerta para a necessidade urgente de mudar a forma como cidades, estradas, rodovias, ferrovias, metrôs, aeroportos e todas as edificações serão construídas daqui por diante.


A lição mais clara é que a engenharia e a tecnologia atuais são incapazes de controlar as forças da natureza. Em meio ao caos, esperamos que as cidades gaúchas possam refazer-se olhando para o futuro, como laboratórios de um novo urbanismo, menos arrogante.


Nesta semana, além do excelente trabalho de Franco Montalto, reproduzimos parte de um texto de Roberto Andrés publicado pela revista Piauí, em junho de 2020, quando todos estávamos abrigados contra a ameaça da covid. O artigo já antevia os riscos ambientais desencadeados pelo uso indiscriminado do solo urbano e catalisados pelo tráfego motorizado, com prejuízos para todos, mas especialmente para as pessoas que não têm carro e nem participam dos jogos imobiliários.
Leia um resumo: 
 

"...É possível enxergar a história das metrópoles brasileiras – e de outros países na periferia do capitalismo – como uma versão microterritorial da crise climática que hoje vivemos em escala planetária. Ambas as crises têm em sua origem um modo de organização da vida humana que desconsidera e estressa os limites do mundo natural. Ambas operam com alta dosagem de desigualdade social, de modo que seus impactos são maiores entre os mais pobres.


A bem ver, as diversas fases da catástrofe climática global já foram trilhadas pelas grandes cidades brasileiras. Inicia-se por uma ocupação voraz do território, indiferente aos elementos naturais: impermeabilização extensiva do solo, supressão da vegetação, emissão de poluentes. Quando os problemas começam a incomodar, opera-se como se eles fossem, por um lado, males necessários para o progresso, e, por outro, como se fossem solucionáveis no futuro, graças a alguma inovação tecnológica que virá. Enquanto isso não acontece, a roda segue a girar e os problemas seguem intensificando-se.


Soluções faraônicas são buscadas – grandes obras de canalização para conter inundações, grandes viadutos e avenidas para melhorar o trânsito. Muitas vezes, essas soluções alimentam o mesmo ciclo que pretendiam reverter. As enchentes ficam piores ou migram para outro ponto. O trânsito piora. Quando as complicações chegam a níveis extremos, a elite busca alguma fuga que resolva o seu problema: a saída para os condomínios talvez seja o antepassado primitivo da busca pela colonização de outros planetas. Vai-se embora e deixa-se o abacaxi para aqueles que não podem partir.

 

No centro da crise climática urbana está o automóvel. Nascido para ser um item de luxo, o carro tornou-se, quando se difundiu na sociedade, um agente cancerígeno no tecido urbano. Os produtos de luxo costumam perder valor quando seu uso se generaliza. O carro passou por esse risco. Foi criado para que alguns burgueses muito ricos pudessem ganhar tempo e distinção, mas sua popularização acabou por subtrair-lhe essas duas qualidades. 

 

Quando todos têm um carro, ninguém ganha tempo, e a distinção perde relevância. Ainda assim, o carro não perdeu com isso, como aconteceu com outros itens de luxo ao longo da história, porque seu uso por alguns o tornava necessário para os demais. A partir do momento em que uma parcela da população – a mais rica – se desloca em automóveis, as cidades passam a se moldar a eles. As atividades se espraiam no território, os centros urbanos se degradam e a vida pedestre piora.

 

 Região da várzea do rio Tietê, em São Paulo, em dois momentos: em 1958, quando o rio já estava retificado
e em 2024, com as pistas e grandes áreas ocupadas por edificações e estacionamentos
 (Geomapaa 1958 e Google Maps)

 

Comprar um carro para si passa a ser a melhor saída para resolver os problemas gerados pelo excesso de carros dos outros. Essa equação resulta em uma acentuação progressiva da desigualdade e na propagação do vírus do individualismo. Cada novo motorista melhora as suas condições pessoais de deslocamento à custa da piora das condições de vida dos que não têm carro. Como automóveis são espaçosos, o trânsito para os usuários do transporte coletivo fica pior; como são poluentes, barulhentos e produzem acidentes, todos os moradores das cidades sofrem o seu impacto; tudo isso gera precarização e esvaziamento das ruas. 

 

A universalização do automóvel não se deu por suas promessas originárias, mas pelos problemas que sua adoção generalizada criou para a coletividade.

 

Esses problemas raramente são abordados em sua complexidade. No caso das inundações, a responsável pela impermeabilização extensiva do solo urbano e pela construção de pistas sobre cursos d’água é, precisamente, a enorme demanda de espaço para automóveis. A água da chuva, que deveria ser absorvida pelo solo, corre rapidamente pelas ruas asfaltadas, pela rede fluvial e pelos córregos canalizados – e chega com força aos fundos de vale, onde as áreas de inundação foram ocupadas por avenidas. Quando as águas dos rios transbordam e carregam veículos, estão apenas retomando um espaço que lhes foi roubado, mas que inevitavelmente voltarão a ocupar.

 

Outras tragédias cotidianas são produzidas pelo automobilismo. A poluição do ar talvez seja a maior delas. Estima-se que quase 9 milhões de pessoas morram anualmente por problemas decorrentes do ar poluído – o que representou uma em cada seis mortes no mundo em 2015. Os automóveis são os principais poluentes nos centros urbanos, onde está a maior parte das pessoas afetadas. A desigualdade também está presente nessa equação: os mais atingidos são os que passam mais tempo nas ruas, como pedestres e usuários do transporte coletivo. Ou seja: as vítimas preferenciais do ar poluído são aqueles que menos poluem (...)"


Proposta de Saturnino de Britto para o vale do rio Tietê, em São Paulo: um grande parque inundável. A cidade optou pelo Plano de Avenidas, de Prestes Maia, com a ocupação dos vales por grandes avenidas. Fonte: Benedito Lima de Toledo, Prestes Maia e as origens do Urbanismo MOderno em São Paulo, 1996


 

Leia o texto completo na revista Piauí

 

*Texto publicado originalmente na revista Piauí, edição 165, junho de 2020, com o título "A dupla exclusão; Como a quarentena joga luz sobre as crises do clima e das cidades".


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