Neste mês de abril completamos os cem dias da seção #UmaRuaCadaDia. No período, publicamos fotos dos espaços públicos batizados com a data do dia, de 1º de janeiro a 9 de abril de 2024, com imagens de mais de 200 ruas, avenidas e praças, em todas as regiões do país, a partir da captação e edição de fotografias realizadas pela plataforma Google Earth Street View.
O trabalho seguirá até o final de 2024, com mais 532 ruas, mas o resultado desses três meses já revela uma grande disparidade no tratamento dos espaços urbanos brasileiros.
Encontramos algumas ruas consolidadas, com toda a infraestrutura necessária para a mobilidade segura, incluindo calçadas bem pavimentadas, faixas de travessia perfeitamente sinalizadas, semáforos para pedestres, ciclofaixas delimitadas, arborização e paisagismo, além de espaços para descanso. Mas são exceções.
No outro extremo, vemos caminhos com piso de terra ou grama, galinhas ciscando, cavalos pastando, um ou outro poste da rede de energia, e apenas uma pequena casa vista ao longe. São lugares com características rurais, recém incorporados aos cadastros dos municípios.
Algumas fotos dessas ruas "híbridas" sugerem lugares bucólicos, tranquilos, mas, como sabemos, imagens podem ser traiçoeiras. Em alguns casos, basta girar a foto no "street view" para ver a cidade ali perto, na primeira esquina, com trânsito intenso e o céu machucado pelo perfil dos prédios altos.
A maior parte das imagens, porém, revela um Brasil de urbanização precária, em bairros resultantes de loteamentos irregulares ou de simples ocupações informais. São ruas tortuosas, em lugares de relevo difícil, com calçadas descontínuas, muitas vezes ocupadas por veículos estacionados ou entulhos de obras. Há também ruas ou vielas implantadas em áreas baixas, próximas a cursos d'água, algumas com casas sobre estacas para escapar das cheias periódicas.
Rua 25 de Fevereiro, em São Luís (MA) Google Street View | Edição Lauro Rocha
Olhando a coleção de fotos, fica evidente a quase impossibilidade de se cumprir a promessa de passeios acessíveis, com três faixas bem definidas (acesso, livre e serviços), como preconizam os manuais de urbanismo. São calçadas muito estreitas, por vezes também ocupadas por escadas de acesso às casas elevadas.
Mas, examinando as imagens com novas lentes, podemos intuir um caminho possível e suave para essa transformação: simplesmente, deixar que a vida ocupe as ruas. Muitas fotos mostram a faixa de calçadas tomada por rodas de pessoas em cadeiras de praia, conversando, trabalhando, bebendo um cafezinho, vivendo a vida do lado de fora.
Vê-se jardins, pequenos comércios, quitandas, bares, vendinhas, casas de açaí, barbearias e talvez bancas de jogo do bicho e outras coisas indizíveis. E carros, muitas motos, caminhões e até ônibus estacionados nas ruas e sobre as calçadas.
Ruas assim estreitas, com calçadas impraticáveis, poderiam ser transformadas em vias compartilhadas, com circulação restrita para veículos, mas completamente abertas a pessoas, para desfrute das conversas e brincadeiras infantis. É uma intuição, que talvez mereça um exame mais profundo de urbanistas, antropólogos, engenheiros, profissionais de saúde, comerciantes, gestores públicos e, claro, dos moradores de cada rua.
A baixíssima arborização é outro aspecto a destacar nas imagens: são raras as ruas e cidades que oferecem essa proteção natural contra o sol tropical e o calor, que já nos ameaça. Sintoma dessa falta de cobertura são as inúmeras fotos com pessoas circulando sob o sol, protegidas por sombrinhas coloridas.
Faltam também espaços drenantes, sem pavimentação, como jardins, pequenas praças, onde as águas das chuvas possam penetrar de forma suave no solo.
Um ponto importante é a constatação de que as imagens colhidas pelo serviço Google Earth Street View constituem um recurso poderoso, que cobre boa parte dos territórios urbanos, a exceção das localidades mais remotas, na Região Norte do Brasil.
É uma ferramenta que permite acompanhar a situação e a evolução temporal das vias urbanas do país, permitindo avaliar condições das vias, calçadas, da sinalização, infraestrutura para bicicletas, iluminação, arborização pública, tratamento de resíduos e uma série de outros aspectos que compõem a vida urbana.
A seguir, incluímos uma pequena estatística da amostragem realizada até agora.
Vias com urbanização consolidada
Das 200 ruas publicadas, 154 (77%) ostentam uma urbanização antiga, consolidada. Destas 154,
- 7 são dotadas de ciclovia ou ciclofaixa (3,5% do total de vias publicadas)
- 22 oferecem alguma arborização (11% do total de vias publicadas)
- 60 apresentam calçadas regulares e acessíveis na maior parte de sua extensão (30% do total de vias publicadas)
- 67 mostram calçadas irregulares, sem nenhuma acessibilidade (33% do total de vias publicadas).
Ocupações e loteamentos irregulares
Entre as 200 ruas, 38 parecem resultar de ocupações informais ou loteamentos irregulares (19% do total de vias publicadas). São vias em baixadas ou terrenos com relevos acidentados, com calçadas estreitas ou inexistentes.
Vias em processo de urbanização
Das 200 vias publicadas, 10 imagens mostram ruas em processo de urbanização (5% do total de vias publicadas), sem calçadas, arborização ou sinalização viária.
Vias "rurais"
Embora agregadas ao tecido urbano, 10 imagens (5%) mostram vias que sugerem ambientes com características rurais. Em geral, não são pavimentadas e não têm calçadas.
Veja fotos das 200 ruas.
É uma viagem muito interessante pelas cidades do Brasil:
Abril: uma rua por dia
Março: uma rua por dia
Fevereiro: uma rua por dia
Janeiro: uma rua por dia
* Os textos e a pesquisa de imagens da ação #umaruacadadia são preparados diariamente pelo fotógrafo e arquiteto Lauro Rocha.
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