Em defesa dos "bairros verdes" de São Paulo

Bairros-jardins são ótimos para estimular a mobilidade a pé e em bike. Funcionam como oásis ante a aridez das cidades. Mas eles estão sob ameaça na maior capital do país

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Fonte: Carta para o Futuro / Proam  |  Autor: Carlos Bocuhy e Heitor Marzagão Tommasini*  |  Postado em: 05 de abril de 2024

Visão da cidade de São Paulo a partir dos bairros-

Visão da cidade de São Paulo a partir dos bairros-jardins

créditos: Reprodução/Imosp

 Quem caminha, corre, circula de bicicleta ou mesmo de carro sabe que as áreas mais arborizadas das cidades oferecem um frescor úmido muito agradável nos dias mais quentes. A sensação é automática: surge uma praça ou um parque arborizado, a temperatura cai. Por isso, temos defendido aqui no Mobilize Brasil a necessidade urgente de planos para conservar a massa vegetal das cidades e estimular a criação de novos parques e praças, se possível conectados por corredores verdes. 
Assim, reproduzimos o artigo publicado hoje (5) por Carlos Bocuhy e Heitor Marzagão Tommasini na newsletter "Carta para o Futuro" que denuncia a pressão para que o órgão de patrimônio paulista (Condephaat) reveja o tombamento de alguns bairros de São Paulo que mantêm suas casas e pequenos edifícios com amplos jardins. 

 

A Ameaça da especulação ao “milagre urbano” em São Paulo
Liberar as ilhas de refrigeração dos bairros-jardins para a especulação imobiliária chega às raias da desfaçatez

 

São Paulo possui em seu tecido urbano um verdadeiro tesouro ainda não espoliado pela especulação abusiva do uso e ocupação do solo. São os bairros-jardins, oriundos de conceitos urbanos dos séculos XIX e XX, próximos do atual conceito de sustentabilidade.


Essas áreas foram beneficiadas por tombamento histórico, urbanístico e ambiental. Permitem o benefício de refrigeração da cidade em função de áreas não impermeabilizadas e bem arborizadas. Nada mais sadio diante das novas perspectivas de calor extremo decorrentes das mudanças climáticas, excessiva impermeabilização e concretagem do solo que aumentaram sensivelmente desde a segunda metade do século XX.


Essa riqueza dos bairros-jardins, tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), está ameaçada por uma iniciativa de revisão de tombamento.


Claro que há um dedo de usura que favorece a especulação imobiliária e interesses específicos. O objetivo da revisão é alterar as diretrizes originais que disciplinam a manutenção e recomposição da massa arbórea; as diretrizes de remembramento e desmembramento de lotes, além da alteração de diretrizes que autorizaria prédios de três pavimentos (em algumas situações de até 15 metros), além de condomínios residenciais. Tudo contrariando o tombamento original e descaracterizando o bem tombado.


A iniciativa lobística que tramita no Condephaat gerou revolta. Mais de uma centena de entidades e especialistas manifestou-se contra a proposta, por meio de um manifesto pela manutenção integral do tombamento original, que será encaminhado ao Condephaat e ao Ministério Público, uma vez que o bem tombado assim o foi pelo reconhecimento de seus atributos ambientais, que ainda estão presentes hoje. Ressalte-se que representam maior valia, em função da maior raridade dos serviços ecossistêmicos que beneficiam a qualidade de vida da cidade.


É espantoso que São Paulo tenha conseguido este modelo urbanístico, mantendo essas áreas e sobretudo conseguido protegê-las, mesmo em meio de um processo de intensa especulação imobiliária. Mais espantoso ainda é que este pequeno milagre urbano esteja agora sob séria ameaça. 

 

A ideia inicial deste modelo é atribuída ao progressista Ebenezer Howard, que, desencantado com a “sórdida urbanização do século XIX”, buscava o urbanismo cidade-campo como uma política para o equilíbrio social, urbanístico e ambiental.

 

Como em São Paulo, o conceito de cidade-jardim e posteriormente, de bairro-jardim, já havia se espalhado pelo mundo no século XIX. Letchworth Garden City, no Reino Unido, é uma cidade conhecida por ser o primeiro modelo por suas áreas verdes e planejamento urbano que promove uma vida comunitária e sustentável, seguida por Welwyn Garden City e Milton Keynes.

 

Nos Estados Unidos são muitos exemplos: Residence Park em New Rochelle e Garden City, em Nova York; Woodbourne em Boston; Newport News, Hilton Village da Virgínia; Chatham Village em Pittsburgh; Radburn, Nova Jersey; Greenbelt, Maryland (perto de Washington, DC) e Greenhills, Ohio (perto de Cincinnati), entre outros. Também o Canadá possui diversos exemplos de bairros e comunidades de bairro-jardim, como Mount Royal, Montreal, Quebec, e outros que seguem ideias semelhantes de Howard, assim como em vários outros países, incluídos Singapura e Japão.

 

Os bairros-jardins de São Paulo, em sua maioria implementados na primeira metade do século XX pela Cia City de Desenvolvimento, são protegidos por contratos estabelecidos no modelo original, que restringe alterações do espaço planejado dentro da cidade, sustentável e organizado. 

 

A questão da construção de subsolos atingindo o lençol freático, que é muito aflorado, levou a Cia City a adotar o atual modelo de ocupação dos terrenos, com grande área permeável e arvoredo abundante. O Jardim América, já no começo do século passado, foi provavelmente o primeiro bairro ecológico do Brasil. Inadmissível permitir que se possa aniquilar esta preciosidade consolidada e pelos seus moradores ao longo desses últimos 100 anos, exemplo urbanístico adotado e compreendido em todo o Brasil.

 

O tombamento dos bairros-jardins consagrou o estado de preservação da concepção do modelo original do espaço planejado dentro da cidade. As diretrizes originais do tombamento têm natureza técnica e interesse público, com amparo no princípio da menor restrição e fundamento no art. 216, §1º da Constituição Federal. A finalidade do tombamento é salvaguardar o patrimônio cultural, garantindo sua preservação e defesa. No caso dos bairros-jardins, assegura a manutenção da gênese e concepção do modelo original idealizado de forma sustentável e organizada, se sobrepondo assim à lei de uso e ocupação do solo ou outras leis específicas, como de projetos urbanísticos. 

 

Os valores urbanísticos, ambientais, paisagísticos e turísticos foram caracterizados e reconhecidos nas diretrizes do tombamento original que preserva e defende os bairros-jardins por quase 40 anos. Agora, a ameaça aponta para a descaracterização, contrariando o objetivo e finalidade do tombamento, sob a pueril motivação do dinamismo urbano.

 

O bem tombado é alçado à qualidade de patrimônio cultural urbanístico-ambiental, na esfera do direito público e difuso. Trata-se de bem jurídico indisponível e inegociável, em que o Poder Público e a sociedade têm o dever de defender e preservar.

 

O modelo de bairros-jardins encontra abrigo em princípios do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – Icomos/Unesco; em vários Objetivos do Desenvolvimento Sustentável que consolidam um “movimento mundial que visa obter tecidos urbanos onde o espaço construído e o espaço natural são equilibrados, obtendo uma qualidade ambiental específica na qual a natureza, especialmente o verde da vegetação, está presente de modo marcante nas áreas públicas e nos lotes. 

 

Com amplos espaços verdes, traz a concepção de uma nova paisagem urbana e um novo modo de habitar, integrando o homem na trama urbana, tendo sido reconhecidos os valores histórico, ambiental e paisagístico para determinar a preservação integral do conceito e da gênese do bem tombado, para as presentes e futuras gerações”.

 

São Paulo precisa se dedicar à adaptação climática na perspectiva de levar os benefícios climáticos dos bairros-jardins para suas outras regiões, e não o contrário.


Paris está estudando sua morfologia urbana, para compreender quais alterações serão necessárias para proteger os mais vulneráveis do calor extremo. Com pragmatismo climático, os franceses estudaram cenários adversos e pretendem se preparar para enfrentar +4ºC de temperatura média nas áreas metropolitanas para o ano de 2100. Quando se fala em aumento da temperatura média em mudanças climáticas deve-se pensar nos picos das ondas de calor extremo, que ganham amplitudes com temperaturas bem mais elevadas.


São Paulo ganhou o reconhecimento da Unesco pelo seu cinturão verde envoltório. A reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Mata Atlântica da Cidade de São Paulo foi uma conquista da ativista Vera Lúcia Braga, ex-funcionária do Instituto Florestal, depois de anos de intensos apelos às instâncias locais e internacionais. A cidade conquistou o tombamento dos bairros-jardins por intenso empenho de movimentos da sociedade civil liderados por arquitetos idealistas como Paulo de Mello Bastos e Candido Malta Campos Filho, entre tantos outros cidadãos preocupados com a qualidade ambiental e urbana da cidade.


Há uma história interessantíssima por detrás de iniciativas similares, que remontam a Elisabeth I da Inglaterra e seu cordon-sanitaire, em pleno século XVI, prevenindo ameaças bacteriológicas e provocando benefícios para a produção ecossistêmica de água. A história continua. As ameaças são mais complexas, os efeitos sinérgicos no meio urbano são maiores e os cenários já são extremos. O modelo civilizatório está levando o planeta a um estágio de ebulição climática, agravada por cada El Niño que se repete.


Pensar em retroagir sobre questões tão relevantes para o metabolismo urbano de São Paulo, como liberar as ilhas de refrigeração para a especulação imobiliária, chega às raias da desfaçatez. 

 

Os autores:
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam); foi coordenador do Programa Metrópoles Saudáveis (Opas) | Heitor Marzagão Tomasinni foi diretor do Movimento Defenda São Paulo

 

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