Por Helena Degreas*
Lembrei-me do jornalista Gilberto Dimenstein e do seu hábito saudável de, literalmente “andar por aí” e descobrir coisas e detalhes que só o passo lento, o olhar livre de intenções e o prazer estético são capazes de proporcionar. Tento, em vão, manter o hábito das longas caminhadas, mas “tá difícil”, Gilberto. É sério.
O descaso para com o andar das pessoas é histórico e remonta ao tipo de colonização de nossas terras. Está entranhado na gestão da coisa pública. Uma visita às cidades colonizadas pelos espanhóis mostra padrões rigorosos na forma urbana, impactando diretamente na qualidade da paisagem vivenciada e nas calçadas. As ruas organizadas em um padrão de grade ao redor de uma “plaza” central revelam uma estrutura planejada, onde a igreja e o governo ocupavam lugares proeminentes. Essa disposição não apenas determinava a paisagem urbana, mas também exercia influência direta na construção das calçadas públicas. Ruas largas e alinhadas continuam a oferecer espaços generosos para a circulação de pedestres, enquanto a “plaza” central, frequentemente dominada por uma igreja de estilo barroco, transformava as calçadas em locais centrais para atividades sociais e religiosas.
Separados por um oceano de distância entre os continentes, a autoridade portuguesa presenciou o surgimento de povoamentos espontaneamente originados de expansões territoriais decorrentes de atividades econômicas, como bandeiras e mineração, religiosas, militares e indígenas. As ruas, frequentemente sinuosas, e, por extensão, as calçadas, ainda hoje, se adaptaram às características dos terrenos acidentados, seguindo as inclinações e larguras possíveis impostas pela topografia natural.
Poucos são os projetos urbanos de bairros e cidades executados por prefeituras e demais entes federativos. O que vivenciamos hoje é resultado de uma abordagem mais abstrata e centralizada proveniente de um planejamento urbano por meio do uso de taxas, coeficientes, indicadores e regulações que permitem ao proprietário de lotes e glebas praticamente definir a forma final do lugar por onde andam as pessoas. Para os bairros periféricos, mais distantes das áreas centrais, a abordagem da forma urbana final é ainda mais complexa pois a ausência de regulamentações urbanas e políticas públicas de habitação secularmente frouxas no atendimento das populações, levou e ainda leva, à autoprodução de bairros em áreas urbanas que ainda hoje resultam em vielas e becos prejudiciais aos cidadãos além de caminhos de acesso informais, rotas improvisadas que conectam diferentes partes do assentamento, frequentemente sem planejamento formal, enquanto vielas e becos formam estreitas passagens entre edificações, ocasionalmente constituindo redes complexas de caminhos sinuosos.
Rua no centro de Pontevedra, Espanha: calçadas alargadas e restrição à circulação de automóveis Foto: Concello de Pontevedra
Embora a demanda por moradia cresça exponencialmente, os projetos urbanos de bairros e cidades implementados por prefeituras e outros entes federativos desde o século 20 são insuficientes. A abordagem predominante, baseada em taxas, coeficientes e indicadores numéricos, prioriza o planejamento abstrato e centralizado, relegando a segundo plano as necessidades das pessoas que vivem e circulam nas cidades. Essa lógica coloca nas mãos dos proprietários de terrenos a responsabilidade final pela forma do lugar, sem considerar o impacto social e ambiental das decisões tomadas.
A situação nos bairros periféricos apresenta uma complexidade ainda maior. A histórica negligência do Estado na regulamentação urbana e na implementação de políticas públicas de habitação levou à autoconstrução de grande parte desses assentamentos. Isso se reflete em vielas e becos estreitos, muitas vezes sem planejamento formal, dificultando o acesso e a circulação dos moradores e configurando redes complexas de caminhos sinuosos. Frequentemente, essas áreas carecem de infraestrutura básica adequada, como pavimentação, iluminação e saneamento. A inexistência e a difícil implantação das calçadas é apenas um reflexo dessa realidade desafiadora.
Uma Rua Cada Dia
No projeto #UmaRuaCadaDia, o portal Mobilize Brasil vem publicando desde o primeiro dia do ano várias imagens que retratam as diferentes realidades das ruas e calçadas do território brasileiro. Rondon (PR), Hortolândia (SP), Caucaia (CE), Rio Formoso (PE) apresentam ruas com calçadinhas de pedra, ruas de terra, com mesinhas sobre o asfalto, estreitas e com carros estacionados sobre as calçadas, um mosaico das distintas realidades brasileiras dos locais por onde caminham os brasileiros. Questões de design/projeto frequentemente não são insolúveis; uma ênfase equivocada no tráfego automotivo ou medidas de segurança excessivamente rigorosas pode ser a linha que separa o fracasso do sucesso. A gestão eficiente e uma reorganização de prioridades podem transformar muitos lugares inadequados em excelentes espaços públicos.
A infraestrutura de mobilidade a pé, englobando calçadas, pistas e travessias, é importante para a eficiência da mobilidade urbana, seguindo diretrizes dos planos de mobilidade de implantação obrigatória nas cidades brasileiras. Infraestrutura de mobilidade a pé abrange espaços viários como calçadas, pistas, canteiros centrais e travessias, incluindo elementos como calçadões, faixas elevadas, passarelas, sinalizações específicas e mobiliário urbano. A rede de mobilidade a pé opera em conexão, seguindo uma hierarquia viária para integrar elementos e fluxos de pedestres, sendo essencial para planejar e operar a mobilidade a pé de maneira eficiente. Não é um lugar de passagem rápida de pessoas. É parte importante da vida urbana.
Calçada, medida da civilidade
As calçadas, em particular, são medidas da civilidade de um lugar público, sendo elementos fundamentais para consolidar laços sociais e promover qualidade de vida urbana. O espaço público transcende definições jurídicas e normas urbanísticas. Primordialmente, é um resultado do uso social, influenciado pelas variadas formas como as pessoas o ocupam e dele se apropriam. A qualidade desse espaço encontra-se na construção social e política, levando em conta os modos de utilização, os significados atribuídos, a acessibilidade e as dinâmicas sociais que o envolvem. Desta forma, as calçadas como integrantes do espaço público, emergem como uma métrica da civilidade e qualidade urbana. Ao repensarmos nossos espaços públicos, considerando usos, acessibilidade e dinâmicas sociais, podemos transformar não apenas as calçadas, mas toda a experiência urbana.
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*Helena Degreas é arquiteta e urbanista, docente da Universidade Municipal de São Caetano do Sul e pesquisadora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
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