A ideia de criar um sistema nacional de mobilidade urbana foi lançada em 2018 por Nazareno Stanislau Affonso, um arquiteto e urbanista, ex-secretário de transportes do Distrito Federal e fundador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos (MDT). A proposta era inspirada no sucesso de outras iniciativas para a universalização dos serviços públicos, como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e, especialmente, do Sistena Único de Saúde (SUS).
Em linhas gerais, a concepção era de uma estrutura técnica, jurídica, financeira e de governança que reordenasse os vários sistemas de transportes municipais e estaduais com base em diretrizes nacionais, de forma a facilitar o financiamento e a gestão do transporte público em todas as suas modalidades, dos ônibus aos metrôs e trens de alta capacidade.
Era também uma tentativa de responder à crise nos transportes públicos - que perdia passageiros desde o início do século - e às reivindicações pelo passe livre, que tomaram as ruas de todo o país, com destaque para as jornadas de 2013. Com a chegada da pandemia de covid 19, em 2020, ficou evidente a necessidade de repensar todo o sistema de transportes públicos, o que levou várias lideranças políticas a gestar a PEC 25/2023, que continua em discussão no Legislativo.
A proposta, de autoria da deputada Luiza Erundina, acrescenta à Constituição Federal um capítulo "sobre o direito social ao transporte previsto no art. 6º e sobre o Sistema Único de Mobilidade e autoriza a União, Distrito Federal e Municípios a instituírem contribuição pelo uso do sistema viário, destinada ao custeio do transporte público coletivo urbano". É um avanço importante para a recuperação de passageiros e para a redução do uso de carros e motos nas cidades.
Transporte público em Lisboa: bondes elétricos modernos e antigos nos mesmos trilhos. Foto: Regina Rocha/Mobilize Brasil
Desafios para o novo sistema
No entanto, ativistas da mobilidade ativa, a pé e por bicicleta apontam o risco de exclusão de pedestres e ciclistas do futuro Sistema Único de Mobilidade (SUM). Afinal, todas as pessoas precisam caminhar ou usar cadeiras de rodas para chegar até os pontos ou terminais de transportes, o que nem sempre - ou quase nunca - é uma atividade agradável. Pedestres enfrentam o trânsito violento, travessias arriscadas, calçadas em péssimas condições, além da falta de conforto ambiental, seja o calor extremo ou os dias chuvosos. E todas essas condicionantes acabam afastando parte da população do transporte público.
Também não há nenhum movimento visível para facilitar a integração de bicicletas aos transportes de massa. Poucos sistemas oferecem locais seguros para a guarda de bikes ou bicicletas públicas para que os usuários percorram o último quilômetro, do terminal até seu destino final. E, sobretudo, faltam ciclovias para que as viagens sejam mais seguras e confortáveis.
Em evento recente, para o lançamento do livro Políticas Públicas Estruturantes para o Brasil do Século XXI, alguns dos autores chamaram a atenção para o fato de que os serviços públicos de saúde e de educação continuam sendo preteridos pelas classes sociais que podem pagar convênios médicos e escolas privadas. O pesquisador Nilson do Rosário Costa, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, lembrou que o SUS nasceu sob inspiração dos modelos de saúde pública universalizada praticados na Europa, especialmente dos países nórdicos, mas lembrou que lá os sindicatos e centrais de trabalhadores aderiram e defenderam de forma aguerrida essas conquistas sociais, enquanto no Brasil, os acordos coletivos sempre incluem a demanda de convênios privados em suas pautas, em uma evidente negação do SUS.
O Sistema Único de Mobilidade corre o risco de repetir essas contradições e tornar-se mais um instrumento de segregação social. É inevitável lembrar o cartaz lambe-lambe do artista Bruno Perê, que em 2011 ocupava muros de algumas cidades brasileiras: "Todo vagão tem um pouco de navio negreiro". A mensagem inconveniente foi rapidamente apagada pelas autoridades, mas desde então os transportes coletivos públicos e privados só fizeram piorar.
Numa perspectiva mais otimista, o SUM pode e precisa constituir sistemas de transportes públicos acessíveis, com tarifas adequadas, talvez com passe livre universal, mas sempre com a mais alta qualidade, de forma a atrair setores da sociedade que fugiram para os carros próprios, mototáxis, ou para os serviços de aplicativos. E também precisa chegar às ruas e calçadas, abrindo rotas de acesso a pé e por bicicletas, com caminhos seguros, confortáveis e rápidos, que possam até dispensar os ônibus nas viagens mais curtas. É um desafio e tanto, mas também é uma grande oportunidade.
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