O historiador Peter D. Norton ficou conhecido nos Estados Unidos por revelar a incrível trama realizada pela indústria do automóvel no início do século 20 para que aquela inovação motorizada e assustadora fosse aceita pela população e autoridades das cidades. Até então, as pessoas circulavam usando bondes, bicicletas ou os próprios pés, ocupando as ruas sem qualquer restrição. Dois de seus trabalhos ("Autonorama" e "Fighting Traffic") tornaram-se leituras obrigatórias para especialistas e pessoas interessadas nos temas da mobilidade urbana.
Em outubro, Norton estará no Brasil para acompanhar o lançamento da versão em português de "Autonorama: A Promessa Ilusória de Dirigir com Alta Tecnologia", traduzido e editado pela Fundação Rosa Luxemburgo, em parceria com a editora Autonomia Literária. A obra questiona a hipótese de que os carros dotados de alta tecnologia seriam a solução para os problemas de mobilidade nas cidades. E, ao mesmo tempo, apresenta alternativas mais baratas, seguras, inclusivas e sustentáveis para a mobilidade nas cidades.
Nesta entrevista, realizada por e-mail, Peter Norton responde a algumas questões envolvendo carros elétricos e autônomos e sugere cautela em relação às promessas da indústria do automóvel, repetidas e recicladas ao longo de todo o século 20, mas nunca cumpridas.
O senhor estará lançando em outubro próximo a versão em português de seu livro Autonorama. Poderia explicar brevemente o que é a publicação?
As montadoras e as empresas de tecnologia querem nos vender um futuro que lhes garanta um mercado enorme e em constante crescimento. Essa concepção não vai funcionar, não tem como funcionar, mas isso não importa para eles, porque o futuro nunca está realmente aqui. Isso significa que nunca poderemos provar que estão errados, porque podem sempre dizer “daqui a 10 anos...” ou “daqui a 20 anos...” Enquanto tivermos uma memória tão curta, eles poderão continuar a dizer isso e nós continuaremos a cair nas suas promessas. Precisamos de memórias melhores. Eles vêm fazendo a mesma promessa há 90 anos. A promessa é que a tecnologia tornará viável o transporte individual com carros. Mas, mesmo a tecnologia mais incrível não conseguirá fazer com que essa dependência do carro realmente funcione.
Automakers and tech companies want to sell us a future that guarantees them an enormous and ever-growing market. It can’t work, but that doesn’t matter to them, because the future is never actually here. That means we can never prove them wrong, because they can always just say “in 10 years ... ” or “in 20 years ... .” As long as we have such short memories, they can keep saying that, and we will keep falling for their promises. We need better memories. They have been making the same promise for 90 years. The promise is that amazing technology will make car dependency work. But amazing technology can’t make car dependency work.
Capa do Autonorama: breve em português Imagem: Reprodução
Por que o senhor decidiu dedicar sua vida para pesquisar um tema tão espinhoso e polêmico, como é o excesso de veículos na vida cotidiana?
“Dedicar minha vida” pode ser um pouco exagerado – mas sim, certamente tenho dado muita atenção a esse assunto. Na década de 1980, como milhões de jovens americanos, lutei para conseguir chegar a algum lugar sem carro. Depois fiquei chocado ao saber que os EUA já tiveram cidades transitáveis com excelentes redes de bondes elétricos. Na minha própria experiência, o transporte público era ruim, os destinos eram muito distantes uns dos outros e as cidades estavam lotadas de estacionamentos de carros. Tudo parecia ineficiente, injusto, feio, perigoso, hostil às pessoas, um desperdício e, novamente, muito feio. Eu queria saber como tudo aconteceu. As respostas nos livros de história não combinavam comigo. A maioria deles informava que as pessoas queriam que fosse assim. Decidi ver por mim mesmo, nos registros históricos.
“Dedicate your life” may be a bit of an exaggeration – but yes, I certainly have given this subject a lot of attention. In the 1980s, like millions of young Americans, I struggled to get anywhere without a car. Then I was shocked to learn that the US had once had walkable cities with excellent tram networks. In my own experience, public transportation was bad, destinations were too far apart, and the towns and cities were crowded with cars parking lots. It all seemed inefficient, unfair, ugly, dangerous, hostile to people, wasteful and ugly. I wanted to know how it all happened. The answers in the history books didn’t add up to me. Most of them said people wanted it that way. I decided to see for myself, in the historical record.
Carros autônomos são ou serão viáveis nas cidades? Quais são os riscos para as pessoas e para a vida urbana
Pessoalmente, prefiro não usar o termo “autônomo” para descrever esses carros. Eles não são autônomos, de forma alguma. Eles são o oposto de autônomos. Ou seja, a ideia é garantir que eles não façam nada além daquilo para que foram programados. Isso os torna deterministas. Ninguém (nem mesmo as empresas) quer um carro verdadeiramente autônomo!
As empresas de tecnologia e as montadoras gostam do termo “veículos autônomos” (AVs) porque isso soa melhor do que carros-robôs, que é o que realmente eles são. “Robôs” evocam respostas ambivalentes nas pessoas. “Autônomo” parece mais impressionante. Mas mesmo o melhor e mais sofisticado carro-robô não passa de um robô. Não é de forma alguma “autônomo”.
Antes de perguntarmos se esses carros-robô são viáveis, devemos primeiro questionar se são desejáveis. Temos alguma razão para desejá-los? Seus benefícios valem o custo? A resposta, penso eu, é um claro “não”. Podemos satisfazer melhor as nossas necessidades de mobilidade através de meios muito menos dispendiosos e com a tecnologia que já temos.
Se, para efeitos de argumentação, dissermos que os carros-robôs são desejáveis, então temos de perguntar se eles são viáveis. A resposta novamente, penso eu, é claramente “não”. Exceto em algumas aplicações especiais e de nicho, os carros-robôs não são viáveis. Eles podem trabalhar até certo ponto, mas o que têm a oferecer não vale o custo. Eles são muito caros para fabricar, manter e operar, mas, apesar de todas esses custos, oferecem, na melhor das hipóteses, um serviço de táxi medíocre.
Se eles forem suficientemente rápidos para valer a pena viajar em um deles, serão perigosos. Se forem lentos o suficiente para serem seguros, não valerá a pena viajar neles. Sem motorista humano a bordo, sua operação deveria ser mais barata, devido à economia no custo de mão de obra. Mas nas cidades reais, os carros-robôs ainda precisam de supervisão humana remota e constante por parte do pessoal dos centros de operações. As pessoas que supervisionam os carros podem não estar no carro, mas também precisam ser pagas. Supervisionar remotamente carros-robôs é caro.
Se os carros-robôs se tornarem comuns, eles causarão muitos problemas nas cidades e nas proximidades. Tal como os táxis normais, eles serão demasiadamente caros para satisfazer as necessidades diárias de transporte das pessoas comuns. Mas, uma minoria de pessoas ricas em carros-robôs ocupando as vias poderá prejudicar a circulação de todos os outros. E apenas alguns carros-robôs em circulação já serão suficientes para tornar as ruas menos úteis para outros tipos de usuários.
Anúncio dos anos 1960 apresentava a ideia do carro-robô Imagem: Everett Collection
Personally I prefer not to use the term “autonomous” to describe these cars. They are not autonomous – not at all. They’re the opposite of autonomous. That is, the whole idea is to ensure that they do not do anything except what they have been programmed to do. That makes them deterministic. No one – not even the companies – want a truly autonomous car!
The tech companies and the automakers like the term “autonomous vehicles” (AVs) because it sounds better than what they really are: robot cars. “Robots” evoke ambivalent responses in people. “Autonomous” sounds more impressive. But even the best robot car is just a robot. It is in no sense “autonomous.”
Before we ask if robot cars are viable, we must first ask if they are desirable. Do we have any reason to want them? Are their benefits worth the cost? The answer, I think, is a clear “no.” We can meet our mobility needs better by much less expensive means, and with the technology we already have.
If, for the sake of argument, we say that robot cars are desirable, then we have to ask if they’re viable. The answer again, I think, is clearly “no.” Except in a few special, niche application, robot cars are not viable. They can work to a degree, but what they have to offer is not nearly worth the cost. They are very expensive to make, to maintain, and to operate, but for all that expense they deliver, at best, mediocre taxi service.
If they go fast enough to be worth the fare to ride in one, they will be dangerous. If they go slow enough to be safe, they will not be worth riding in. With no on-board human driver they’re supposed to be cheaper to operate, because of the saved labor cost. But in real cities, robot cars still need constant remote human supervision by personnel in operations centers. The people who supervise the cars may not be in the car itself, but they have to be paid too. Remotely supervising robot cars is expensive.
If robot cars ever become common, they will cause many problems in and near cities. Like ordinary taxicabs, they will be too expensive to meet the daily transport needs of ordinary people, but a minority of rich people in robot cars could make the streets work worse for everyone else. Just a few robot cars is enough to make streets less useful for other kinds of street users.
Falemos, então, dos carros elétricos. Eles seriam a resposta mais imediata e viável para os problemas de emissões dos veículos motorizados, para a poluição do ar e o ruído nas cidades?
A resposta mais imediata aos problemas de emissões dos veículos é oferecer proximidade. Podemos adaptar as cidades de tal forma que não seja necessário dirigir. Se as pessoas tiverem boas escolhas – escolhas que incluem caminhar, bicicleta e transportes públicos – então não terão mais que dirigir nas cidades.
Vamos supor que uma agência governamental tivesse dinheiro para acrescentar uma faixa a mais em uma via expressa, mas optasse por utilizar esse recurso para aproximar as habitações dos locais de trabalho e do comércio. Se fizesse isso, muitas pessoas não precisariam comprar um carro. Isso também ajudaria os motoristas, porque menos pessoas ocupariam as ruas com carros.
As políticas pró-automóvel fazem com que os destinos se distanciem cada vez mais e isto torna todos os outros modos de transporte menos práticos. Por outro lado, as políticas de cidades compactas fazem com que tudo, exceto os carros, funcione melhor.
A eletrificação é crucial para a sustentabilidade, mas essa mesma eletrificação nos oferece mais e melhores escolhas do que apenas os carros elétricos. Os carros elétricos têm grandes desvantagens em relação a outros veículos elétricos [como os trens, bondes, ônibus, barcas e e-bikes]. É uma loucura que pareçamos todos concordar que um “veículo eléctrico” ou um “EV” seja um automóvel de passageiros, como um sedan ou um SUV, com uma bateria enorme.
Os carros precisam de baterias que normalmente pesam de 500 kg a 1.000 kg. Não há cobalto ou lítio economicamente recuperáveis suficientes no mundo para substituir todos os automóveis com motor de combustão por um BEV, e a extracção destes metais tem consequências humanas e ambientais desastrosas.
Em um carro elétrico a bateria, boa parte da energia é usada somente para mover a própria bateria. E tipicamente, menos de 5% da energia é usada para mover a pessoa dentro do carro. Para comparação, em uma bicicleta elétrica, aproximadamente 50% da energia movimenta o ciclista. Alguns veículos elétricos não precisam de baterias, ou têm só uma pequena bateria de reserva, porque recebem continuamente energia dos cabos de alimentação ou dos trilhos. Trens, bondes e trolebus podem fazer mais por nós do que carros elétricos a bateria.
The most immediate answer to vehicle emissions problems is proximity. We can adapt cities in such a way that driving is usually not necessary. If people have good choices – choices that include walking, cycling, and public transportation – then they don’t have to drive.
Suppose a government agency had enough money to add a lane to a highway, but it chose instead to use the money to locate affordable housing near workplaces and shops. If they did that, many people wouldn’t have to buy a car. It would even help drivers out too, because fewer people would have to drive on the highway. Pro-automobile policies make destinations grow ever further apart. This makes all of the other modes of transport less practical. Pro-proximity policies make everything except cars work better.
Electrification is crucial to sustainability, but electrification gives us more and better choices than electric cars. Electric cars have big disadvantages relative to other electric vehicles. It’s crazy that we seem to have all agreed that an “electric vehicle” or an “EV” is a passenger car, such as a sedan or an SUV, with a huge battery. Cars need batteries that typically weigh 500 to 1000 kg. There is not enough economically recoverable cobalt or lithium in the world to replace every combustion-engine car with a BEV, and the extraction of these metals has disastrous human and environmental consequences.
In a battery-electric car (BEV), a lot of the battery’s power is just used to move the battery; most of the rest just moves the vehicle. Typically less than 5% of the energy moves the human being. In an electric bike, about 50% of the battery’s energy moves the human rider. Some electric vehicles need no battery, or only a small reserve battery, because they continuously draw power from wires or rails. Trains, trams and trolleybuses can do more for us than battery-electric cars. We do need some battery-electric cars, but we must favor small, lightweight cars over needlessly large, heavy personal cars.
Capa do Fighting Traffic Imagem: reprodução
Sobre seu outro livro Fighting Traffic The Dawn of the Motor Age in the American City. No início do século 20 a indústria do carro atuou com todos os meios para transformar as cidades, de forma a permitir a livre circulação dos veículos motorizados. Agora, temos esse "beco sem saída" causado pela cadeia produtiva do automóvel, que inclui combustíveis, fabricantes de autopeças, seguros, financiamentos, estacionamentos, construtoras que fazem e mantêm os sistemas viários nas cidades, publicidade etc. Quais seriam os caminhos para reverter esse processo?
1. Contar a verdadeira história de como chegamos aqui, a esse status quo que privilegia os carros;
2. Ilustrar as inconsistências entre o status quo e os valores progressistas, os valores liberais e os valores conservadores;
3. Mostrar que mesmo a tecnologia mas incrível não fará com que o transporte individual seja mais funcional;
4. Acabar com o apoio a políticas públicas para carros-robôs;
5. Enquadrar o futuro que precisamos como um futuro com mais alternativas;
6. Conseguir que a sociedade participe no desenvolvimento de planos para melhores futuros de mobilidade;
7. Discutir essas questões nos meios de comunicação de massa: mostrar vividamente, com exemplos, os futuros atraentes que já estão ao nosso alcance – futuros em que a caminhada, a bicicleta e o transporte público funcionem para todos;
8. Promover a proximidade casa-trabalho-escola-serviços;
9. Nas políticas de eletrificação, priorizar bicicletas elétricas, bondes (VLTs), trolebus, metrôs e trens;
10. Redefinir o conceito de segurança no trânsito de modo a incluir a saúde das pessoas.
1. Tell the true history of how we arrived at the status quo;
2. Illustrate the inconsistencies between the status quo and progressive values, liberal values, and conservative values;
3. Show that amazing technology does not make car dependency work;
4. End all public policy support for robot cars;
5. Frame the future we need as a future of more choices;
6. Enlist public participation in developing plans for better mobility futures;
7. In diverse media, vividly depict the attractive futures that are in our reach – futures in which walking, cycling, and transit work;
8. Promote proximity;
9. In electrification policies, prioritize e-bikes, trams, trolleybuses, and trains;
10. Redefine traffic safety so as to include health.
Lançamento:
Peter Norton virá a São Paulo no final de outubro. A programação do lançamento ainda não está inteiramente definida, mas está confirmado um "bate-papo" sobre o Autonorama no dia 26/10, quinta-feira, às 19 horas, na biblioteca do Sesc Paulista, com mediação da artista e professora Giselle Beiguelman. Informações neste link .
E agora, que tal apoiar o Mobilize Brasil?
Acesse a plataforma Abrace uma Causa e contribua!
Leia também:
A disputa pela rua: o início da era do carro na cidade americana
Como os pedestres foram expulsos das ruas
Carro autônomo, para que, para quem?
Nova York autoriza uso de cargo bikes elétricas maiores