A capital da Galícia, Pontevedra, é uma cidade de 84 mil habitantes situada a noroeste da Espanha. Em 1999, quando Miguel Anxo Fernandez Lores tornou-se prefeito de lá teve de enfrentar uma série de desafios: o município sofria com a má qualidade do ar, o êxodo de famílias jovens e uma economia local em crise.
Inspirado em livros como "Morte e Vida de Grandes Cidades", de Jane Jacobs, e no relatório britânico "Traffic in Towns", Lores acreditava ter a solução: "livrar-se dos carros" que obstruíam as ruas de Pontevedra.
E assim foi feito. Começou pelo centro histórico e foi expandindo continuamente essa política para além desse perímetro. Aos poucos, a cidade eliminou o estacionamento nas ruas, restringiu o acesso de automóveis e alargou calçadas. (Notável pensar que essa transformação na cidade galega antecede em mais de uma década as medidas da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, de retirada dos automóveis da "cidade luz").
À época, os proprietários de carros em Pontevedra chiaram, mas não comoveram o gestor: “Não é meu dever como prefeito garantir que você tenha uma vaga para estacionar”, declarou Lores em 2020. “Para mim, é como se você comprasse uma vaca, ou uma geladeira, e depois me perguntasse onde vai colocá-los”, rebateu.
Viver em Pontevedra
No mês passado, ao visitar a cidade galega, encontrei multidões de todas as idades passeando por ruas tranquilas, conversando em praças sombreadas e devorando frutos do mar na variedade aparentemente infinita de seus restaurantes movimentados (o prato de polvo pulpo gallego é uma especialidade local).
Fiquei igualmente impressionado com o que não vi: carros estacionados na calçada, semáforos e estacionamentos de superfície. (Também não vi muito transporte público, mas como o centro histórico pode ser percorrido a pé em menos de 30 minutos, apenas duas linhas de ônibus parece bastar).
Duas décadas depois, a campanha “Menos carros, mais cidade” é ainda forte na cidade. E Pontevedra oferece as melhores evidências sobre o que sói acontecer quando uma cidade é reconfigurada para acomodar pessoas, em vez de se render aos automóveis.
A seguir, algumas lições que a cidade espanhola pioneira na restrição ao carro pode oferecer a autoridades de outras localidades que se sintirem instigados a seguir o seu exemplo:
Lição 1: “Sem carro” não significa “sem carros”
Apesar da sua reputação, Pontevedra permite a circulação de alguns veículos motorizados nas ruas. “Não falamos sobre ser uma cidade sem carros”, explicou-me o prefeito Lores. “Falamos em ser uma cidade com trânsito apenas necessário e essencial.”
Para os habitantes de Pontevedra, há a opção de usar estacionamentos em garagem; já para os visitantes, pode-se pagar para deixar o carro em parques de estacionamento subterrâneos - e a cidade criou vários locais como esses, gratuitos, na periferia, não muito longe do centro. Pessoas com deficiência são livres para dirigir em Pontevedra, desde que obtenham licença, e os entregadores podem parar seus veículos na rua por um breve período.
Mas não se engane: o número de automóveis em Pontevedra despencou durante as últimas duas décadas apenas depois da eliminação do estacionamento nas vias; da transformação das faixas de tráfego em calçadas; e do redesenho das ruas como espaços para pedestres. “Se quiser atravessar Pontevedra de carro, você pode, mas perderá muito tempo e perceberá que é impraticável”, comentou o prefeito. Dados do município mostram que de 1999 para cá as viagens de carro caíram 97% no centro histórico (um raio de 4,5 km²) e 53% em toda a cidade.
Enquanto conversávamos em seu gabinete, o prefeito pegou-me pelo braço e me conduziu até à janela que dá para a rua Michelena. O que vi: uma rua lotada de pedestres e sem veículos motorizados até onde a vista alcança. “Costumávamos ter 14 mil carros nessa área todos os dias”, disse Fernandez Lores, e abriu um sorriso de orgulho.
Mapa das distâncias para percorrer a pé em Pontevedra. Imagem: Prefeitura de Pontevedra
Lição 2: Sem carros, maior é a segurança na via
Os poucos carros que ainda circulam pelas ruas de Pontevedra estão limitados a 30 km/h, e as cerca de 300 lombadas impedem que os motoristas pisem no acelerador. A baixa velocidade torna quase impossível colisões com acidentes graves. Segundo as autoridades municipais, a cidade não registra nenhuma morte no trânsito desde 2011.
Com ruas calmas e sinalizadas para pedestres, “as bicicletas ficam muito pouco expostas a risco”, pode-se ler num anúncio institucional. Curioso é que a cidade tem pouquíssimas ciclovias construídas; é que a expectativa, longe de segregar, envolve ciclistas circulando em baixa velocidade e misturados aos pedestres.
Lição 3: Ficar sem carro permite atrair novos residentes
Antes de passar pela transformação na mobilidade, o crescimento populacional em Pontevedra estava estagnado. Quando Fernandez Lores assumiu a prefeitura em 1999, o centro estava praticamente vazio de famílias e de idosos, que se sentiam inseguros com o trânsito intenso. Já agora é a cidade da província da Galícia que mais cresce. Muitos recém-chegados são famílias atraídas por suas ruas seguras e também pelo ar puro (os níveis locais de dióxido de carbono caíram dois terços desde que o tráfego motorizado foi restringido). A população da cidade é também a mais jovem da Galícia.
Lição 4: Livrar-se dos carros estimula a economia local
Diferente de décadas passadas, o centro histórico de Pontevedra agora pulsa com o movimento do comércio, e multidões a pé gastam seus euros em lojas e cafés, em meio a vitrines sempre decoradas. Estimular o crescimento econômico com o incremento da mobilidade é uma proposta que parece ter dado certo, como um recente censo econômico aponta: Pontevedra teve crescimento líquido empresarial superior ao de todas as outras cidades galegas, entre 2016 e 2020. A experiência vivenciada ali reforça a ideia de que os estabelecimentos são perfeitamente acessados pelos que circulam a pé.
Por fim, a maior lição de Pontevedra talvez possa ser resumida assim: quando uma população experimenta a vida numa cidade sem carros, a maioria gosta, e muito!
E agora, que tal apoiar o Mobilize Brasil?
Acesse a plataforma Abrace uma Causa e contribua!
Leia também:
Colocamos pessoas em 1º lugar, não carros, diz prefeito de Pontevedra
Trilhas Urbanas, um jogo para repensar as cidades
Bordeaux aposta na mobilidade e é eleita cidade mais 'verde' da França
Veja os resultados da Semana do Caminhar 2023
Um mapa para futuras redes de caminhar em SP