As armadilhas do desenvolvimento orientado (apenas) pelo transporte

"Adotar apenas parâmetros de mobilidade urbana para orientar a conformação da cidade é um erro crucial", afirma o ambientalista Carlos Bocuhy. O pior exemplo é São Paulo

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Fonte: Proam / Carta Capital  |  Autor: Carlos Bocuhy*  |  Postado em: 05 de setembro de 2023

Edifício em construção na cidade de São Paulo

Edifício em construção na cidade de São Paulo

créditos: Arquivo Mobilize

Há poucos meses, a cidade de São Paulo aprovou o Plano Diretor Estratégico 2023, que permite o aumento da verticalização orientada a partir de estações de metrô e outros meios de transporte público, sem a necessidade de estudos ambientais.


Adotar apenas parâmetros de mobilidade urbana para orientar a conformação da cidade, contudo, é um erro crucial. Com a popularização do home office, milhões de pessoas estão trabalhando à distância, uma alternativa tecnológica que representa tendência firme. O desenvolvimento urbano não pode estar dissociado da qualidade ambiental e da saúde pública, nem da prevenção dos efeitos nocivos e letais das mudanças climáticas.  

 

O planeta está aquecendo mais que o previsto, conforme aponta o Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas das Nações Unidas, o IPCC. As cidades, que abrigam cerca de 80% da população mundial, devem se preparar.


As diretrizes equivocadas do Plano Diretor paulistano são mau exemplo para todo o Brasil. É evidente o contraste com o que fazem, por exemplo, Paris e outras metrópoles francesas, que travam intensa luta para sua adequação contra o aquecimento das mudanças climáticas. Como explica Maud Lelièvre, vereadora da capital francesa: “Sofrer os efeitos das ondas de calor não é inevitável, mas uma escolha política.”


Paris deu início à identificação de "ilhas morfológicas": quarteirões, praças e parques (considerando o tipo de uso do solo, densidade e a altura dos edifícios) para definir o quanto essas regiões são geradoras de calor. O indicador também leva em conta dados socioeconômicos sobre a população, como idade e renda.


Áreas cimentadas (e sem vento pela excessiva verticalização) estarão sujeitas a médias históricas de calor maiores. Na atual conjuntura, espera-se que o aquecimento médio planetário atinja de 2,5º a 2,8º Celsius até o ano de 2100.


O efeito de 'aquecedor urbano' não se restringe ao espaço verticalizado e impermeabilizado, provocando também defasagens de temperatura nas áreas do entorno. A falta de circulação dos ventos também acirra efeitos da poluição urbana, por falta de dispersão.


“No período de verão, pode haver diferenças de 8 a 10 °C à noite, por exemplo, entre o coração de Paris e os subúrbios externos", diz Sandra Garrigou, gerente de projetos de clima e plano de adaptação do Instituto da Região de Paris. “No verão, isso leva a problemas de saúde, o corpo não esfria e, portanto, não se recupera.”


Em São Paulo, diferenças de até 10º C já foram notadas entre o centro e o cinturão periurbano envoltório. Estudos da Universidade de São Paulo, conduzidos pela geógrafa Magda Lombardo em 1985, já mapeavam esses efeitos das ilhas de calor.


No verão europeu de 2022, as demandas de atendimento a uma população cada vez maior de idosos tornou-se desafio para setores da assistência social. Na França e na Itália, a temperatura elevada provocou malefícios à saúde e isolou os mais vulneráveis em suas casas. Pesquisadores de institutos de saúde europeus estimam que mais de 61,6 mil pessoas morreram de causas relacionadas ao calor em 35 países do final de maio ao início de setembro de 2022. O quadro se agravou neste ano, segundo a Organização Meteorológica Mundial das Nações Unidas. O mês de julho de 2023 foi o mais quente da história da civilização humana, conforme estudos da Universidade de Berkeley. 

 

Mesmo neste contexto, São Paulo, a maior metrópole da América do Sul, produz retrocessos em diretrizes de urbanismo. Intensificará as armadilhas de calor ao perseguir o conceito de cidades-paliteiro americano – ao qual se referia, com intensa preocupação, o renomado geógrafo Aziz Ab’Saber.

 

A redução de desigualdades para o setor habitacional, um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, assumida pela Prefeitura de São Paulo, está relegada a regras que expandem a produção imobiliária em locais de maior atratividade econômica. Enquanto isso, dados do censo de 2022 apontam a existência de aproximadamente 590 mil imóveis vazios na cidade de São Paulo.


Para o advogado Heitor Tommazini, do Movimento Defenda São Paulo, a premissa de adensamento ao longo dos corredores de transporte foi profundamente desvirtuada em São Paulo, especialmente pela falta de estudos ambientais e urbanísticos prévios. "Foi corrompida a premissa da sustentabilidade urbano-ambiental, tema urgente em razão dos conhecidos riscos decorrentes das mudanças climáticas”.


As soluções para refrescar as cidades são múltiplas e seus efeitos se somam: integrar o conforto do verão nos critérios de construção ou reforma, escolher revestimentos leves ou telhados brancos, que refletem o calor, adaptar-se aos corredores de vento (sem montanhas artificiais representadas pela verticalização), construção de fontes públicas e sombreamento arbóreo. É preciso reintegrar a natureza na cidade: revestimentos impermeáveis, plantar árvores, vegetar pisos, fachadas ou telhados (com espécies resistentes adaptadas ao calor e à água disponível). 

 

Um tópico importante é descobrir rios ou riachos. Essa constante defesa em nível global visa reverter a degradação dos corpos d’água. Na contramão das soluções baseadas na natureza, a Prefeitura de São Paulo anunciou, no mês de julho, “o maior programa de canalização de córregos já realizado até hoje”. Serão canalizados 57 córregos urbanos.

 

Segundo Luciana Travassos, professora de planejamento territorial da UFABC, os córregos “têm grande potencial paisagístico e podem tornar os espaços mais verdes, o que também faz com que sejam mais frescos, mais úmidos e que se diminuam as ilhas de calor urbano”.

 

A Promotora de Justiça Maria Gabriela Ahualli Steinberg, da 2ª Promotoria de Justiça da Capital, ingressou em março com Ação Civil Pública para que a Prefeitura de São Paulo repare danos ambientais e as áreas de preservação permanente na canalização de Córrego Ibiporã, na Zona Oeste da capital.

 

É inadmissível que, mesmo sob a ameaça das mudanças climáticas, soluções equivocadas sejam promovidas pelo Executivo e Legislativo municipais.


O Plano Diretor Estratégico 2023 ganhou representação junto à Procuradoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, subscrita por dezenas de entidades, preocupadas com a periculosidade das diretrizes e a falta de controle social que cria armadilhas de calor e favorece a especulação imobiliária. Espera-se firme resposta do Ministério Público e do Judiciário.

*Carlos Bocuhy é diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

 

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