Leia a seguir a reflexão do professor Paulo Saldiva em um texto que trata da dimensão humana revelada do interior de uma bicicletaria no centro de São Paulo:
"Nunca escondi de ninguém que gosto de andar pela cidade de bicicleta. Fiz isso quando criança. Faço isso nos tempos de hoje, agora velho. O mesmo hábito cultivei entre esses dois extremos da vida.
Na bike aprendi tudo o que sei sobre minha cidade [São Paulo] e suas gentes. Um observatório do mundo real de antropologia urbana. Durante mais de 50 anos tive como um dos pontos centrais das minhas vivências a bicicletaria, onde recebi aprendizados perenes sobre a vida e também sobre manutenção de bikes.
Com a morte do Edson, o mecânico de bikes, nunca mais consegui ir até lá. Uma perda enorme, irreparável. Mudei de oficina, movido pela necessidade e pelo sentimento de perda. Fui parar na Ceará Bike, na rua General Jardim, no centro de São Paulo, pertinho do Minhocão.
Nessa bicicletaria conheci outro tipo de frequentador. É lá um dos pontos para onde acorrem os bikers que fazem entregas, os trabalhadores que acorrem ao centro para ganhar seu sustento. Alguns classificam esse tipo de atividade como 'bike logística'. Eu chamo de sobrevivência.
Continuei aprendendo muito com os personagens que lá encontrei; como o seu José. O que era um reparo de uma câmara de ar furada para algo muito menos material. A bike do seu José era cargueira, utilizada para transporte de duas caixas enormes de sorvetes feitos artesanalmente em sua casa, no extremo da Zona Leste de São Paulo.
Seu José e sua família só eram possíveis graças à sua bike, que vencia galhardamente a distância de cerca de 40 km diários, levando uma carga rapidamente perecível. O diagnóstico da câmara de ar era algo parecido terminal. Ausência de esperança de reparo. A terapêutica indicada foi troca. O dinheiro que seu José trazia no bolso não era suficiente. Seu José ganhava o seu sustento em bases diárias, no curso da janela de tempo emoldurada pela demanda de clientes e o derretimento dos sorvetes. O dano da câmara de ar passou a ter outros contornos.
Foi então que um dos entregadores de comida, que também ali reparava sua bike, entendeu de imediato a dimensão humana do problema. Para ele também a vida era assim. Havia uma pequena diferença. Naquele instante, a entrega de cafés da manhã já lhe tinha permitido acumular dinheiro suficiente para pagar o conserto. É isso o que ele fez: garantindo o ganho diário do seu José, estava garantindo a viabilidade dos sorvetes. Quanto a mim, ganhei minha cota de esperança no ser humano.
Em homenagem ao José Celso Martinez Corrêa, um dos seres humanos que mais amaram a região do Centro de São Paulo."
Saldiva é médico patologista, prof. da Faculdade de Medicina da USP e ciclista urbano
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