A jornalista Denise Silveira entrevistou, com exclusividade, a diretora da Velo-city, Caroline Cerfontaine, e faz um recorte do evento pelo olhar de participantes "históricos" internacionais.
Imagine uma cidade repleta de bicicletas, onde todas as conversas giram em torno do passado, presente e futuro da mobilidade. Uma vila itinerante e sem fronteiras que a cada ano muda de país. Esta cidade não é utópica. Esta é Velo-city, conferência global sobre bicicleta e cidades. "Vélo" é bicicleta, não em inglês, mas em francês. E como a língua francesa incorporou anglicismos - por exemplo, "bom fim de semana" é "bon week-end" - nada melhor do que "Vélo-city" para mostrar que o modelo carrocrata e de negócios norte-americano é frágil, e que para atrair os holofotes do mundo inteiro é preciso de uma identidade real internacional com valores em comum.
Quem forma essa identidade é o participante. Quer seja como palestrante ou somente para assistir, ele é chamado de "velo-citizen" e é considerado cidadão legítimo dessa cidade. Voilà! E a sede da Federação Europeia de Ciclistas, organizadora do evento, é a Bruxelas francófona, capital da União Europeia.
A Federação é uma importante associação que une diversas organizações da Europa, todas com um objetivo comum: promover a bicicleta como meio de transporte em centros urbanos. Por isso, cidades comprometidas em planejar um futuro melhor por meio do ciclismo podem se candidatar para sediar o evento. A licitação para 2026 está aberta até setembro. Ano que vem a conferência global será realizada em Ghent, cidade medieval na Bélgica flamenga, que fala o neerlandês. Em 2025, em Gdansk, Polônia.
Este ano, a conferência realizada em Leipzig, Alemanha, pode ser traduzida por mais de 1.500 ciclistas de 55 países, além de 430 palestrantes em 80 sessões exclusivas. Pode-se dizer que o encontro não dura apenas alguns dias. A rede de contatos profissionais feita a cada conferência é inspiradora e continua por mais um ano, até que o novo evento aconteça.
Caroline Cerfontaine, diretora do Velo-city. Foto: ECF
A diretora da Velo-city, Caroline Cerfontaine, especialista internacional em mobilidade e transporte sustentável, se descreve como apaixonada pelo planejamento de mobilidade urbana com base em políticas de caminhada, ciclismo, mobilidade compartilhada e transporte público. Fundadora do Grupo Women in Cycling (Mulheres no Ciclismo), é uma das responsáveis pela política de incentivo à participação feminina na Velo-city, que neste ano teve um número recorde de mulheres palestrantes, com 45% do total.
Caroline trabalha para a conferência desde 2020, mas participa desde 2010 como "velo-citizen" ou como palestrante. Para ela, tudo o que acontece no encontro é sobre o nosso futuro, o futuro que queremos viver.
" Ao longo de décadas, aceitamos gradualmente a ocupação quase completa do espaço público pelo tráfego de automóveis. Andar de bicicleta e caminhar foram marginalizados, as crianças não podem mais brincar nas ruas e os espaços públicos abertos são poucos e distantes. Além disso, a poluição do ar proveniente do tráfego é responsável por 25% de nossas emissões totais de CO2, levando à atual crise climática. Nossos pontos de vista, nossas experiências cotidianas, nosso ambiente de vida e nossas necessidades devem fornecer a estrutura para decisões e ações políticas" , afirma Caroline.
Brasileiros
O conceito plural e institucional da conferência criou o ambiente perfeito para um encontro de prefeitos e políticos de todo o mundo, que se reuniram para assinar a declaração: "Tornar a bicicleta um meio de transporte de pleno direito para todos". Entre eles os principais nomes de destaque estavam Goura Nataraj, deputado estadual pelo Paraná (PDT), e Marcelo Sgarabossa, vereador pelo Rio Grande do Sul (sem partido).
Goura e Karola Lambeck, do Dep. de Ciclismo Urbano do Ministério de Transportes da Alemanha Foto: Divulgação
Foi a terceira Velo-city de Goura Nataraj, que esteve na Holanda, em 2017, e no Rio de Janeiro em 2018. Este ano ele foi convidado para participar de uma mesa com o prefeito de Leipzig, Burkhard Jung, do Partido Social Democrata da Alemanha, e a prefeita de Dublin, Caroline Conroy, do Partido Verde da Irlanda, entre outras autoridades. Um detalhe: Goura fez a viagem de 180 km entre Berlim e Leipzig de bicicleta.
"Na Assembleia Legislativa do Paraná, nos últimos quatro, agora no quinto ano, nós aprovamos diversas leis ligadas ao cicloturismo, turismo de bicicleta, turismo de base comunitária e também outras leis para garantir que obras do governo do estado contemplem a infraestrutura cicloviária. A gente está lutando para que as novas construções dos pedágios das rodovias contemplem a infraestrutura urbana, principalmente nos trechos urbanos das rodovias, fortalecendo, fiscalizando, cobrando políticas públicas pelo Detran, pela secretaria da cidade, garantindo recursos e emendas para infraestrutura cicloviária'’, conta Goura.
Marcelo Sgarbossa, que já foi um grande atleta do ciclismo esportivo mundial, marcou presença para assinar a declaração. E foi além: aproveitou para trabalhar a construção de uma rede independente para divulgar o Fórum Mundial da Bicicleta (FMB), que acontecerá em novembro, no México, e no Brasil, em 2024. O FMB surgiu como uma reação política ao atropelamento de participantes de uma bicicletada do movimento Massa Crítica, em Porto Alegre, em 2011. A primeira edição do Fórum aconteceu justamente na efeméride do 1º aniversário do atentado. Focado no apoio e criação de políticas públicas voltadas ao combate à violência no trânsito, Marcelo também está sempre ligado ao ambientalismo e explica que a cultura da bicicleta depende totalmente de novos projetos governamentais.
O vereador Marcelo Sgarbossa e sua bike no estacionamento na Câmara de Porto Alegre Foto: CMPA
"Nós precisamos mudar a cultura e a cultura você faz através de políticas públicas. Do ponto de vista filosófico, o agente político tem uma obrigação obviamente muito maior. Estar atualizado, estar sintonizado com o que há de melhor para as pessoas da tua cidade, do teu estado, as pessoas que você representa enquanto agente em função do poder público", acredita Marcelo, seguindo a mesma cartilha da diretora da Velo-city.
Caroline Cerfontaine também destaca a importância social quando o assunto é sustentabilidade. Ela explica que comunidades desfavorecidas ao redor do mundo têm maior probabilidade de viver em áreas com menor qualidade do ar, com mais escassez de transporte. "A transição para a mobilidade ativa sustentável também é uma ferramenta para promover a justiça social. Priorizar os sistemas de transporte para ciclismo em vez de tráfego motorizado pesado e privado significa democratizar o setor de transporte e tornar a mobilidade acessível a todos", diz a diretora do Velo-city.
Ciclologística com mulheres
Foi justamente o tema social que levou para Leipzig uma das mulheres mais inspiradoras do Brasil, Aline Os, fundadora do coletivo "Señoritas Courier", de São Paulo. Ela foi uma das brasileiras selecionadas e viajou com a ajuda do engajamento popular de um financiamento coletivo. Aline vive no centro da maior cidade da América Latina e de seu apartamento, próximo à esquina das avenidas Ipiranga e São João, coordena um serviço de logística e cooperativismo de entregas feito exclusivamente por ciclistas mulheres e LGBTQIAP+. Esta foi a sua primeira vez na conferência. Com uma qualificação profissional construída ao solucionar os problemas do cotidiano das entregas em meio à pandemia global que resultou nas crises sanitária e econômica, Aline representou o Brasil para o mundo e se tornou agora fonte de inspiração internacional.
Aline Os, fundadora do coletivo "Señoritas Courier" Foto: Denise Silveira
"Essa área [logística] é predominantemente controlada por homens, então tem essa questão de construirmos um espaço onde as mulheres podem falar. A gente entende que as mulheres têm muito a contribuir e qua a logística antes de ser um trabalho de força, tem que ser um trabalho de ponderações e de muita eficiência e eficácia...
E as mulheres trabalham muito bem com isso. As mulheres sofrem muito menos acidentes, sofrem menos e provocam menos acidentes e menos perdas. Então, a gente tem muito a contribuir com relação a isso, com relação ao cuidado, o cuidado com a carga, cuidado no atendimento. Esse tipo de trabalho também é muito bem desenvolvido por mulheres e pessoas diversas", diz Aline.
Ela se baseia em pesquisas. Uma delas, conduzida pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre junho de 2021 e 2022, sob encomenda da fintech ZigNET, revelou que os homens provocam a maioria dos sinistros no trânsito. Naquele período, foram registradas 183% mais ocorrências entre motoristas homens.
Aline chegou na frente no palco internacional com questões relevantes que trazem soluções reais para antigos problemas quando o objeto de estudo também é desigualdade social e a inclusão das mulheres e LGBTQIAP+ no mercado de trabalho.
"A gente tá falando de trabalho justo, porque quem está tomando as decisões para gerenciar o trabalho são as pessoas da própria cooperativa. No caso ainda somos um coletivo, mas já com todo o pensamento e estrutura cooperativista. Então é preciso também deixar claro que esse cooperativismo que a gente fala não é o cooperativismo do agronegócio, não é o cooperativismo capitalista. É o cooperativismo solidário, é o cooperativismo dos pequenos negócios, de um negócio de dez pessoas e que, no máximo, a gente pretende chegar a cem pessoas. E a solução proposta pelo Señoritas, que é a plataforma cooperativista, pode atingir muito mais pessoas, não só em São Paulo, mas atender a uma demanda nível nacional", completa Aline.
Bicicletas compartilhadas: inovações em Bogotá
A solidariedade também esteve presente em trabalhos que trouxeram soluções para a acessibilidade. Como no caso de outra brasileira, Juliana Minorello, da Tembici. Ela é a CXO da empresa, sigla que traduzida significa algo como chefe de gabinete de relações externas. A Tembici é líder na América Latina em micromobilidade, conceito que faz referência ao deslocamento de veículos leves em viagens de curtas distâncias. Juliana tem 13 anos de experiência nas áreas de políticas públicas e jurídicas. Participou também da conferência no ano passado, em Liubliana, Eslovênia, e acredita que o evento é importante para fomentar a mobilidade ativa no mundo.
Juliana Minorello, da Tembici: ampliar a diversidade de usuários da bicicleta Foto: arquivo pessoal
Cargobikes e "manocletas"
Em sua apresentação, Juliana divulgou a experiência do projeto de compartilhamento de bicicletas em Bogotá, que abrange um público-alvo mais diverso do que no Brasil, incluindo pessoas com deficiência. Na capital colombiana, somente nos últimos seis meses de operação, foram 420 mil viagens e 55 mil usuários. Lá, as bicicletas da Tembici têm as cores laranja, rosa e azul e 60% dos deslocamentos são feitos com as bikes elétricas.
Há também um projeto para inclusão de pessoas com deficiência, por meio de 150 handbikes, que lá são chamadas "manocletas". Outras 150 bikes tem cadeirinhas para transporte de crianças, uma grande ajuda principalmente para as mães. E mais 150 bicicletas de carga compõem a frota. "É muito importante ter um fórum para trocar experiências para que consigamos, junto com sociedade civil, poder público e instituições de pesquisa, avançar cada vez mais na construção de cidades mais humanas em que a mobilidade seja de fato uma ferramenta de democratização do direito à cidade", completa Juliana.
Da Colômbia, também apresentou seu trabalho de pesquisa o consultor de desenvolvimento urbano Alejandro Manga Tinoco. Para ele, é importante encontrar a elite europeia do movimento ciclístico, assim como pessoas da indústria do ciclismo, de consultorias de mobilidade ativa, da academia e do mundo ativista. Alejandro considera que o custo do ingresso para participantes de países em desenvolvimento, cerca de € 575, o equivalente a quase R$ 3.000, não dá tantas oportunidades para os participantes da América Latina. Esta é sua terceira participação, como uma das vozes mais importantes quando o assunto é mobilidade e justiça.
"O Velo-city é um campo de pesquisa. Minha pesquisa é sobre o papel dos movimentos da bicicleta nas transições energéticas. Parto do postulado de que diferentes organizações que existem em diferentes contextos, econômico, políticos, sociais, culturais e históricos, têm diferentes pontos cegos em termos de justiça social. Tenho foco em eventos nacionais e internacionais, na Europa, com destaque para a França, Estados Unidos e América Latina", explica Tinoco.
A justiça social que a mobilidade pode trazer é um tema de grande interesse. Um dos mediadores da Velo-city foi o diretor executivo da Cyclehoop, Andy Lambert, de Minneapolis, Estados Unidos. A empresa tem distribuidores no mundo inteiro e cria soluções de infraestrutura e estacionamento para bicicletas consideradas inovadoras. No ano passado, durante a conferência realizada em Liubliana, Eslovênia, Andy foi muito aplaudido quando fez uma pergunta sobre racismo num painel sobre equidade.
"A semente da ideia para este painel foi plantada na minha cabeça durante uma sessão plenária, em Liubliana. A plenária foi intitulada “Foco nos cidadãos, partes interessadas e comunidade” e os palestrantes eram profissionais de nível de diretoria, CEO e até uma senadora. Houve muita discussão sobre igualdade e equidade, mas não denunciando especificamente o racismo. Durante as perguntas e respostas no final, perguntei como o trabalho deles aborda o racismo sistêmico e estrutural porque estou interessado em mudanças sistêmicas progressivas", conta.
Andy acredita que coletivamente podemos mudar o mundo por meio de festas de rua e passeios sociais de bicicleta. O conceito é chamado de "Community Mobility Rituals" ou "CMRs", em tradução livre, rituais de mobilidade comunitária. E para tratar da questão racial fez um convite, prontamente aceito, ao presidente e CEO da Equiticity, Oboi Reed, de Chicago, organização que defende a equidade racial, maior mobilidade e justiça racial.
Equiticity, de Chicago (EUA): organização da comunidade Fotos: Equicity
"Os CMRs da Equiticity incluem passeios de bicicleta comunitários, passeios a pé pela vizinhança, excursões de transporte público, passeios de patinete em grupo e festivais de rua abertos. Nos referimos a esses eventos de mobilidade como rituais, pois todos eles têm alguns elementos em comum que se prestam a serem ritualísticos", explica Andy. Para Obooi Reed, da Equiticity, foi um trabalho que nasceu e cresceu naturalmente. Ele nunca imaginou que teria uma projeção fora da sua cidade e reconhecimento internacional. Hoje, é referência global e se orgulha de ter começado com ações entre familiares e amigos. Obooi gosta muito do Brasil e participou da Velo-city no Rio de Janeiro, em 2018. "Inspiramos responsabilidade por compartilhar uma mensagem que desafia o status quo na maneira como nós pensamos a mobilidade para mudar os problemas sistêmicos", completa o ativista.
O veterano da Polônia
Desafiar o status quo também é a história de um dos mais experientes velo-citizens, Piotr Kuropatwinsk, professor da Universidade de Gdansk, na Polônia, e voluntário especialista em ciclismo da União Polonesa de Mobilidade Ativa, PUMA. Ele foi eleito para o conselho da Federação Europeia de Ciclistas, em 2011, e foi um dos vice-presidentes até 2015. A primeira conferência que participou foi em 1999, realizada nas cidades de Graz, Áustria, e Maribor, Eslovênia. Desde então participou de 16 edições. Piotr Kuropatwinsk é a memória viva da Velo-city.
Piotr Kuropatwinsk (Polonia), com a ativista anericana Sue Knaup, Eslovênia 2022 Foto: Denise Silveira
"A conferência na cidade austríaca de Graz e na cidade eslovena de Maribor sob o título “Bicicleta cruzando fronteiras" foi extremamente inspiradora, tanto que esta experiência me motivou a participar de todas as conferências seguintes. Lembro de uma opinião da sra. Hillary Clinton expressa em um filme exibido: “A diferença entre um político e um estadista é que o político pensa na próxima eleição e o estadista pensa na próxima geração”, recorda.
Um dos maiores obstáculos para implementação das políticas em prol da bicicleta no mundo inteiro é que políticos evitam entrar em temas sensíveis em que é preciso conquistar a população de opinião contrária através da informação e educação. No painel apresentado, em Leipzig, Piotr Kuropatwinsk destacou os sucessos de um trabalho incansável que inclui o diálogo com oponentes e também as lições aprendidas.
Kuropatwinsk faz um contraponto. Conta que a cidade de Graz foi a primeira a adotar os 30 km como limite de velocidade por hora como um limite de velocidade padrão, em 1992. Para ele, a conferência planejada para ser organizada na cidade de Gdansk, em 2025, poderá incentivar uma reflexão estratégica por parte dos responsáveis pelo desenvolvimento de toda a região, a Pomerânia.
"A Polônia é um dos poucos países europeus que não desenvolveu nem adotou uma estratégia nacional para a bicicleta e a organização da conferência Velo-city será, na minha opinião, um vetor importante que sustenta a ideia de desenvolver e adotar um documento tão estratégico em meu país", conclui.
Ao inspirar a comunidade internacional, os velo-citizens mostram que somos todos muito parecidos em nossos anseios por um mundo melhor, independente de nossas origens e diferenças culturais. E renova a esperança de que a bicicleta seja parte da transformação por um mundo mais sustentável para todos, com projetos diversos e políticas públicas que garantam o direito não apenas às cidades, mas ao planeta.
*(Denise Silveira, especial para o Mobilize Brasil)
Denise Silveira (esq.) e a diretora do Velo-city, Caroline Cerfontaine Foto: arquivo pessoal
Os trabalhos selecionados e apresentados no Velo-city 2023 podem ser pesquisados no link https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1k6apnfERtRnEBMyfeDcVPalMcM-iiwaw
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