A rotina diária de milhares de passageiros está em jogo diante da decisão da empresa Gumi de entregar a concessão da Supervia, sistema de trens urbanos da região metropolitana do Rio de Janeiro. Apesar da desistência anunciada na semana passada, sob alegação de dificuldades financeiras vivenciadas desde o início da pandemia de Covid-19, ainda não se sabe até quando a atual concessionária estará à frente do serviço.
Especialistas ouvidos pela Agência Brasil acham que a falta de transparência em torno da gestão do serviço público dificulta uma análise mais precisa. No entanto, consideram que a má qualidade do serviço tem peso na crise, que não pode ser relacionada integralmente à pandemia. Ao mesmo tempo, acreditam que a situação pode ser uma oportunidade para rever problemas antigos e dar um passo em direção a um serviço mais satisfatório.
“Como era antes da pandemia? As estações estavam em boa condição? Você já ouviu falar de um trem que não chega na hora prevista? Ou que a viagem não tem exatamente aquela duração programada? O sistema é ruim há muito tempo. Todos os dias de manhã eu acompanho o notíciario no rádio. Tem sempre um problema em algum ramal. Então, não pode chegar e dizer que o problema está na pandemia. Você já tinha antes um péssimo serviço”, avalia Ronaldo Balassiano, professor aposentado do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ).
Apesar dos balanços financeiros divulgados pela Supervia em seu site, o especialista avalia que as informações disponibilizadas não são suficientes para compreender o quanto o serviço de má qualidade repercute nas receitas e despesas. Seria difícil saber hoje, por exemplo, quantos passageiros que poderiam usar o trem preferem outros meios de transporte ou se há gastos associados a uma manutenção precária, diz Balassiano.
Para Leandro da Rocha Vaz, professor do departamento de construção civil e transportes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), os recorrentes relatos de superlotação de composições tornam questionável o discurso de redução de passageiros, uma vez que nem a demanda atual nos horários de pico seria atendida de forma satisfatória. "O que a gente percebe é que está faltando mais viagens", diz. Segundo ele, um dos principais desafios desse tipo de serviço é manter o funcionamento de forma regular. "As paralisações constantes afetam o fluxo de passageiros e geram impactos financeiros", acrescenta.
No ano passado, problemas foram listados em um levantamento produzido pela Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes (Agetransp), autarquia ligada ao governo fluminense que fiscaliza concessões de transporte ferroviário, rodoviário e aquaviário no estado. Na comparação com o período pré-pandemia, estavam sendo realizadas 69% a menos de viagens expressas. A própria Agetransp tem aplicado multas à Supervia por descumprimento de contrato, inclusive por falta de investimentos previstos.
A busca por soluções para problemas como superlotação de vagões, atrasos e aumento no tempo de duração das viagens vinha sendo pauta de encontros entre a Supervia e o estado. A notícia da entrega da concessão pela empresa Gumi se tornou pública por meio do governador Cláudio Castro (PL) após mais uma reunião, ocorrida na última quinta-feira (27). Na ocasião, ele prometeu uma transição tranquila, sem interrupção dos serviços, e avaliou que o atual modelo de concessão não funciona. “Vamos partir para um novo modelo de concessão que atenda aos anseios e respeite o direito da população”, acrescentou.
Modelo de concessão
A Supervia atende 12 dos 22 municípios da região metropolitana do Rio. São 104 estações e 270 km de trilhos, divididos em cinco ramais e três extensões, pelos quais se deslocam principalmente moradores da zona norte da capital e de cidades da Baixada Fluminense. Rocha Vaz (UERJ) disse esperar que um novo contrato de concessão dê ao poder público instrumentos eficazes para fiscalizar e exigir o cumprimento das metas e obrigações estipuladas.
Já Balassiano (Coppe) defende que um novo modelo de concessão precisa ser desenvolvido repensando a ação do estado. "O poder concedente, que no caso dos transportes urbanos é o estado ou o município, é quem deve dizer o que que quer e como quer. E temos visto concessões que só privilegiam o operador. E quando o operador não faz o que deveria ser feito, o poder concedente não tem como resolver o problema".
De acordo com o professor, o gerenciamento do sistema de trens urbanos, mesmo sendo uma concessão estadual, deveria contar com uma estrutura administrativa com a participação de representantes dos municípios. Na sua opinião, o enfrentamento dos desafios depende do engajamento e da distribuição de responsabilidades entre todos os interessados.
"A coisa mais importante na mobilidade é o gerenciamento da mobilidade. Não se pode tratar cada modal isoladamente. Até por isso precisa ter o envolvimento de todos. Esse trem tem que estar integrado com o ônibus de cada cidade, com o metrô, com o BRT". Segundo ele, não falta capacidade técnica para melhorar o serviço. "Nós temos técnicos, tanto na Secretaria de Estado de Transportes quanto na prefeitura do Rio, que são altamente qualificados. Há muitas pessoas que trabalham lá que passaram pela UFRJ. Fizeram mestrado e doutorado", acrescenta.
Balassiano lembra que há questões de segurança que também exigem mobilização coletiva. Os constantes roubos de cabo têm sido citados de forma recorrente pela Supervia como fator que afeta o funcionamento do serviço e causa prejuízo. Apesar de reconhecer responsabilidades do poder público, ele considera que a empresa precisa estar melhor preparada para defender seu patrimônio.
Histórico
A operação dos trens urbanos da região metropolitana do Rio foi concedida à iniciativa privada em 1998. Na época, o Consórcio Bolsa 2000, que assumiu o controle do sistema por 25 anos ao vencer o leilão com proposta de R$ 279,7 milhões, criou a Supervia Trens Urbanos S.A.
Em 2010, o Grupo Odebrecht assumiu 61% do controle acionário da empresa e negociou com o governo estadual a renovação da concessão. Foi assinado um aditivo estendendo o contrato até 2043, com o compromisso de investimentos de R$ 1,2 bilhão em melhorias para atender à demanda de passageiros esperada com a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
Enquanto enfrentava denúncias de corrupção, o Grupo Odebrecht se desfez em 2018 de maior parte das suas ações. Foi quando a Supervia foi assumida pela empresa Gumi, subsidiária do grupo japonês Mitsui, que passou a responder por 88,67% do controle acionário.
A Supervia alega que transportava, em média, 600 mil passageiros e que suas operações foram drasticamente afetadas pela pandemia. Mesmo com o fim da crise sanitária, teria havido apenas uma recuperação parcial, o que não seria suficiente para custear a manutenção das operações. Em 2021, ainda durante a pandemia, foi aceito pela Justiça um pedido de recuperação judicial apresentado pela Supervia. Suas dívidas estavam estimadas em R$ 1,2 bilhão. Por meio da recuperação judicial, empresas que se encontram em dificuldades financeiras conseguem paralisar eventuais penhoras e bloqueios em suas contas e ganham prazo para negociação com os credores.
Em agosto do ano passado, a concessionária alegava estar transportando cerca de 350 mil passageiros por dia e obteve do governo estadual uma compensação financeira. Por meio de aditivo contratual, foi acertado ressarcimento emergencial no valor de R$ 251,2 milhões.
Problema crônico
Balassiano observa que o Rio de Janeiro acumula problemas crônicos associados ao transporte. O sucateamento do serviço de ônibus do sistema BRT levou a prefeitura da capital a realizar uma intervenção no ano passado. O Grupo CCR, que opera o serviço das barcas que fazem a travessia da Baía da Guanabara, já ameaçou devolver a concessão algumas vezes. O Aeroporto do Galeão também passa por uma crise que tem gerado discussões para aumentar do número de voos.
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