Urbanista com extensa atuação na Companhia de Engenharia de Trânsito de São Paulo e na área de Transportes do Ministério das Cidades, Luiza Gomide de Faria vem desenvolvendo uma metodologia para o mapeamento de futuras redes de caminhar, permitindo que as pessoas possam circular mais ativamente nas cidades, intercalando trechos a pé e conexões com o uso dos transportes públicos. Nesta entrevista, realizada com a troca de textos via whatsaap, a especialista explica o conceito da Rede Prioritária de Mobilidade a Pé em São Paulo, proposta que em sua visão caberia em várias outras cidades do país.
Como nasceu a ideia de uma Rede de Caminhabilidade?
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que as Notas Técnicas publicadas pela CET são documentos autorais produzidos por técnicos da empresa, mas que não refletem, necessariamente, a política da empresa ou da prefeitura. Trata-se de um espaço onde os técnicos se manifestam sobre temas diversos relacionados à mobilidade, trânsito, sinalização e muitos outros. Portanto, eu respondo em meu nome somente por esse trabalho e pela proposta da rede de caminhabilidade.
Antes de mais nada, considero importante apresentar algumas definições. Em nossos debates técnicos, o conceito de “caminhabilidade” refere-se à qualidade do caminhar, que depende das condições físicas e operacionais da infraestrutura urbana em cada cidade ou bairro. O termo “mobilidade a pé” trata especificamente desse modo ativo de circulação e transporte, em benefício de cada pessoa em movimento, seja pelo próprio esforço, seja pelo acionamento de equipamento capaz de movimentá-lo, por exemplo, com uma cadeira de rodas elétrica.
A constituição de uma Rede de Mobilidade a Pé é uma estratégia de valorização desse modo de transporte, cuja proposta foi amadurecendo ao longo do tempo, pois em termos práticos uma rede de mobilidade a pé abrange todo o espaço possível de ser percorrido por uma pessoa caminhando, na medida que é a combinação de elementos da via, equipamentos urbanos e demais modos de transporte existentes que se conectam entre si, compondo uma viagem completa do pedestre.
Ao longo do processo surgiu a compreensão de que as distâncias ideais para o trajeto dos pedestres devem variar entre 300 metros a 2 km, a depender principalmente das condições do pedestre e do percurso. Para percursos maiores os pedestres, em geral, se conectam com outros modos de transportes, sobretudo os motorizados, que serão os responsáveis pelos trechos mais longos. Portanto a rede de pedestres é formada por “mini-redes” locais que se conectam entre si por sistemas motorizados, sobretudo pelos sistemas públicos de transporte.
Em nossa última avaliação de caminhabilidade, na Campanha Calçadas do Brasil 2012, consideramos que até mesmo o ruído urbano interfere na decisão de caminhar ou usar um automóvel. Que fatores foram considerados no mapeamento da Rede Prioritária de Mobilidade a Pé?
Os pedestres possuem uma enorme liberdade na hora de escolherem seus percursos, e isso ocorre por diversos motivos, além das condições da infraestrutura disponível, a começar pela sua própria condição física, seguido pelo motivo da viagem, a vestimenta, o horário, a distância, o clima, seguidos pela geografia (se plano, em aclive ou declive), tipo e qualidade do pavimento, e o nível de serviço dos passeios. É claro que toda essa avaliação depende da familiaridade com o ambiente urbano a ser percorrido, mas hoje, com a tecnologia disponível, este pode ser um problema menor. Tudo isso pode interferir nas escolhas do pedestre em relação ao seu caminho. No caso do mapeamento da Rede Prioritária de Mobilidade a Pé, que é formada por percursos considerados prioritários pelo poder público para receberem investimentos públicos para sua qualificação, os critérios para a seleção das vias prioritárias foram: as vias que viabilizam a conexão com o sistema de transporte coletivo - ônibus, metrô, trem etc. - , preferencialmente numa área de influência de até 500 metros de estações e terminais de transporte público; a combinação entre o uso do solo e as linhas de desejo [trajetos mais fáceis e curtos] dos pedestres, como o entorno de equipamentos de saúde, zonas comerciais, de serviço, escolas, universidades, polos geradores etc); vias com muitas linhas de ônibus e as vias contempladas pelo Plano Emergencial de Calçadas (PEC).
A Nota Técnica refere-se como Parte I. O que virá a seguir?
A Parte II pretende apresentar três projetos que foram desenvolvidos no âmbito do Programa Ruas Completas, dentro do Plano de Metas de 2021 a 2024 da Prefeitura de São Paulo. A ideia é mostrar o processo de desenvolvimento, desde o diagnóstico até o projeto final, passando pela elaboração e posterior aplicação de pesquisa de opinião com a comunidade. Essa pesquisa é um dos pilares conceituais do Programa Ruas Completas, que prevê a participação da sociedade na seleção dos problemas que devem ser solucionados sob o ponto de vista dos pedestres. Esse cuidado é necessário para que a Rede Prioritária de Mobilidade a Pé possa oferecer percursos de boa qualidade, com conforto e segurança, visando sempre à melhoria da qualidade de vida para os cidadãos que percorrem o ambiente urbano. Além disso, serão apresentados os projetos funcionais desenvolvidos ao redor de cada um dos três terminais de ônibus localizados nos bairros da Cidade Tiradentes (zona leste) e Vila Nova Cachoeirinha (zona norte), ambos na periferia de São Paulo.
A metodologia pode ser aplicada a outras cidades?
Sem dúvida, a proposta é exatamente essa. Afinal, todas as cidades, independentemente do tamanho, precisam valorizar os modos ativos, sobretudo o modo a pé, mesmo que sejam cidades pequenas e que, portanto, ainda não tenham sistemas de transporte coletivo municipal, mas que devem construir ambientes urbanos aprazíveis para todas as pessoas, incluindo crianças, idosos e pessoas com mobilidade reduzida..
Há planos para colocar o mapa em prática, nas ruas de São Paulo?
O uso contínuo do mapa da Rede Prioritária de Mobilidade a Pé como ferramenta de planejamento e previsão de investimentos na mobilidade ativa certamente ainda passará por um processo de consolidação. Afinal, o conceito da Rede de Mobilidade a Pé é muito recente, mas não tenho dúvidas de que o mapa é uma ferramenta que pode agregar muitos benefícios, principalmente para as prefeituras, que poderão mensurar a qualidade e também a eficiência da infraestrutura prioritária para a mobilidade a pé.
Leia a Nota Técnica Rede de Mobilidade a Pé - Parte I
Leia também:
"Todos os ônibus já deveriam ter piso baixo"
Na Noruega, um túnel de quase 3 km, para pedestres e ciclistas
A pé ou em bikes somos mais eficientes
Semáforo pifa, e pedestres se arriscam no Eixão de Brasília