Os dois primeiros meses de 2023 foram marcados por uma sequência de atropelamentos envolvendo ônibus do transporte coletivo na cidade de São Paulo. Não foram exatamente "acidentes", a julgar pelas cenas fortes exibidas em vídeos que circularam pela internet.
Para entender o que está ocorrendo, o Mobilize Brasil encaminhou questionamentos à Prefeitura de São Paulo e também entrevistou Luiz Carlos Mantovani Néspoli, superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). O representante da ANTP procurou responder com base nas estatísticas oficiais, que mostram uma certa estabilidade no número de sinistros de trânsito, com tendência à redução no número de mortes. Lembra que, em 2021, os ônibus estavam envolvidos em 15,8% dos atropelamentos. Mas entende que a difusão das imagens desses incidentes – alguns com indiscutível violência – aumenta o impacto social desses sinistros.
Leia a entrevista:
Luiz Carlos Mantovani Néspoli, da ANTP Foto: Arquivo pessoal
Há alguma estatística que revele de forma objetiva o aumento de sinistros de trânsito envolvendo ônibus em SP?
As melhores fontes de estatísticas para estudar a cidade de SP são os Relatórios da CET e o Infosiga do Estado. O último Relatório da CET é de 2021 e o do Infosiga chega até 2023, portanto, com o ano de 2022 completo.
A estatística da CET é melhor porque permite verificar alguns relacionamentos importantes para a análise de atropelamento. Pelo Relatório de 2021 da CET, observa-se na série histórica uma queda importante nas mortes no trânsito até 2017, mas que a partir daí ficou estabilizada até 2021, em torno de 800 mortes (em 2021 foram 823 mortes). Essa estabilidade foi decorrente da queda de mortes por atropelamentos, enquanto as demais cresceram um pouco, e mais acentuadamente as de motocicleta. O número de mortes encontra-se nessa ordem: motociclistas, pedestres, automóveis e ciclistas, sendo que, somados, motociclistas e pedestres representam 78,8% do total.
Quando se observa o veículo envolvido no atropelamento, a ordem por quantidade de mortes é: automóvel, motocicletas, ônibus, caminhão e bicicleta, sendo que, somados, automóvel e motocicletas estão envolvidos em 58% do total de atropelamentos e os ônibus em 15,8% deles. Comparativamente com o Relatório de 2019, naquele ano os ônibus estavam envolvidos em 17,6% dos atropelamentos fatais, enquanto a soma de autos e motos envolvidos em atropelamento representava 62,4%.
Os idosos com 60 anos ou mais são a faixa etária mais impactada nos atropelamentos e representaram 40% do total de vítimas fatais 2019 e 20% em 2019.
Em síntese, pela análise dos históricos disponíveis nos relatórios de 2019 e 2021 da CET, conclui-se que há uma estabilidade no quadro de mortes na cidade de São Paulo, inclusive para os ônibus, o que aponta um alerta: por quê deixamos de reduzir as mortes nos últimos cinco anos?
O que pode explicar essa sequência de eventos recentes, muitos deles com evidente desequilíbrio psicológico do condutor? Estresse provocado por horários muito apertados, associados aos problemas de trânsito podem explicar esse descontrole dos profissionais?
Creio que a gravidade de alguns acidentes que foram filmados e expostos na mídia é que impactou bastante a sociedade, chamando mais atenção para o problema, embora as estatísticas indiquem uma estabilidade. De qualquer forma, a estabilidade demonstra que é necessário se fazer mais para continuar reduzindo acidentes, em especial os atropelamentos que atingem mais os idosos, pelas dificuldades inerentes que têm nas travessias e acesso aos coletivos.
Os acidentes não têm uma única causa e todos sabemos que vários fatores podem estar envolvidos. Dependem do comportamento dos usuários da via, dentre eles os condutores, mas também os pedestres.
Os motoristas dos ônibus passam obrigatoriamente por treinamentos especializados para condução de passageiros na obtenção da CNH de Categoria D, cujos conteúdos contemplam o relacionamento com o público. Claro que o estresse pode comprometer o ato de dirigir, mas a irritação do motorista não pode afetar a segurança dos usuários. Em São Paulo, além dos treinamentos necessários na habilitação, há também outros exigidos pela SPTrans, que são ministrados nas garagens.
Cenas, como a que assistimos recentemente, com o ônibus saindo com um idoso sendo arrastado pelo braço são inaceitáveis sob qualquer ponto de vista. Mostram que o motorista já deveria estar identificado como alguém que precisava de algum tratamento ou de um retorno aos cursos.
Mas, em algumas situações os ônibus saem com as portas abertas, o que seria impedido automaticamente...
Os casos de ônibus em movimento com as portas abertas, que colocam os usuários em condições inseguras, conforme a mídia mostrou recentemente, contrariam frontalmente as regras estabelecidas nos contratos de prestação de serviço e deveriam ser coibidas pelo poder concedente. Como os ônibus são dotados do “anjo da guarda”, dispositivos que impedem o movimento com as portas abertas, é possível que o equipamento tenha sido desligado, o que pode representar algum tipo de orientação geral da operadora, e isso deve ser coibido.
Se o propósito desta estratégia é ganhar tempo para se poder cumprir os horários definidos no plano operacional estabelecido pelo poder concedente, é este que não está refletindo o estado geral de tráfego do itinerário e portanto precisa de revisão, e não, pelo contrário, se inibir o “anjo da guarda” para, com isso, se economizar tempo em cada parada de embarque e desembarque. A maneira ideal de se ter tempos de viagens mais controlados e confiáveis é dotar a via com faixa exclusiva ou corredores, ou seja, dar prioridade de circulação para os ônibus.
A quem cabe a responsabilidade por esses sinistros? Às concessionárias ou ao poder público?
O acidente com vítima gera inquérito e este é discutido na Justiça, onde são analisados caso a caso, se houve imperícia, negligência ou omissão do motorista, por exemplo, e outras causas prováveis. Por outro lado, se os motoristas agiram por conta de alguma orientação da operadora, logicamente, ela terá que ser ouvida, da mesma forma se o acidente decorrer de imperícia ou comportamento inadequado do motorista por ausência de treinamento previsto no contrato de concessão.
Há alguma norma que estabeleça critérios ou recomendações públicas para a seleção dos profissionais que atuam no transporte coletivo?
Do ponto de vista da formação e habilitação do condutor de transporte de passageiros, as regras são definidas no Código de Trânsito Brasileiro e também no item 6 do Anexo II da Resolução Contran 789, de 2020, que trata da estrutura curricular básica, da abordagem didático pedagógica e das disposições gerais do curso. No item 6.1 estão as condições do curso para condutores de veículos de transporte coletivo de passageiros. Os conteúdos do curso estão bem definidos para o papel do motorista na condução de passageiros. O que é necessário é verificar se os cursos estão sendo feitos da maneira correta e bem administrados pelos agentes de formação. E também se as avaliações estão sendo realizadas de forma adequada ao seu final.
Independentemente do curso de formação, há outros cursos previstos nos contratos entre o poder concedente e os concessionários, neste caso também com ênfase para o relacionamento com os usuários e sua segurança. É necessário que as autoridades verifiquem se, de fato, eles vêm sendo aplicados.
Há outros indícios que podem ser obtidos também pela administração dos operadores por meio de pesquisa junto ao usuário, bem como por estatísticas de ocorrência e também pelas indicações da telemetria instalada nos ônibus que permite verificar a forma de dirigir do motorista. Com esses dados em mãos, deve-se desenvolver treinamentos específicos par solução de questões pontuais. Não só pela empresa operadora, mas também pelo poder concedente, desde que este faça acompanhamentos, execute a fiscalização ou faça pesquisas e obtenha informações relevantes que podem ensejar treinamentos específicos e também campanhas.
Quais seriam as recomendações da ANTP para evitar esse tipo de sinistros?
As cidades devem ter um acompanhamento estatístico que permita analisar as causas dos acidentes em via urbana, e proporem medidas mitigadoras que envolvam desde uma implantação de sinalização, correções geométricas da via, fiscalização de trânsito mais eficiente, como também programas educativos e campanhas para estimular e desenvolver comportamentos seguros de forma geral. Dentre as medidas que podem contribuir para redução de atropelamentos a redução dos limites de velocidade permitidos na via é uma medida que vem sendo largamente implantada em muitos países no mundo e que vem dando certo e, portanto, deveria ser incentivada como política nacional.
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