Prefeitura de SP propõe tarifa zero, mas falta a audiência pública

Casa lotada e discursos inflamados agitaram ontem (27) a audiência que discutiu prós e contras a medida que pretende implantar o transporte público gratuito na capital

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Regina Rocha/ Mobilize Brasil  |  Postado em: 28 de fevereiro de 2023

Início da audiência no auditório Prestes Maia

Início da audiência no auditório Prestes Maia

créditos: Mobilize Brasil


Com auditório inteiramente lotado, ânimos exaltados e a presença de diversos especialistas e autoridades, a Câmara Municipal de São Paulo recebeu na noite de ontem (27) a primeira audiência pública de 2023 para debater a viabilidade da proposta de tarifa zero no transporte coletivo da cidade. Uma audiência anterior já havia sido realizada em dezembro, mas com baixo quórum.


A reunião, convocada pela Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa, teve como objetivo trazer subsídios à discussão do tema, após o prefeito da capital paulista, Ricardo Nunes (MDB), solicitar em fins do ano passado um estudo de viabilidade jurídica e financeira à São Paulo Transportes (SPTrans) para a medida. Apesar de estar à frente da proposta, a Prefeitura não compareceu à reunião, não justificou a ausência, e coube tão somente aos vereadores da situação, Fernando Holiday (Republicanos) e Rubinho Nunes (União Brasil), ali presentes, "justificarem" a falta do executivo, segundo eles porque o estudo ainda não está concluído.


A mesa da audiência foi presidida pela vereadora Sandra Santana (PSDB), e composta pelos vereadores e convidados: Toninho Véspoli e Elaine Mineiro (Psol); Major Palumbo (PP); Sansão Nunes (Republicanos); Daniel Santini (Fundação Rosa Luxemburgo); Lúcio Gregori (ex-secretário de Transportes na gestão Luiza Erundina); (Rafael Calábria (Idec); urbanista Raquel Rolnik; deputado federal Guilherme Boulos (Psol) e Celso Haddad, presidente da EPT, empresa de transportes da Prefeitura de Maricá (RJ), onde a tarifa zero é praticada desde março de 2021.


O vereador Toninho Vespoli abriu a reunião colocando a necessidade de um debate aberto e transparente sobre a medida. Destacou que a tarifa social não poderia vir "para resolver apenas o problema dos empresários", e que a preocupação deveria ser com a população, sobretudo a da "periferia excludente, que não tem hoje mobilidade garantida", afirmou. O vereador questionou também a transparência da gestão - "Em São Paulo, uma cidade de 12 milhões de habitantes, não sabemos qual o custo do sistema de transportes" - e por fim, destacou o problema de como seria a implantação dessa gratuidade, se por região, se de uma vez ou aos poucos... "O que não queremos é uma ação vinda de cima para baixo, sem que entendamos bem como vamos financiá-la", concluiu.


Na mesma linha, o deputado federal Guilherme Boulos se pronunciou em apoio à ideia, até por ser uma "bandeira histórica", mas lembrou que "até o momento, a maior cidade do mundo com tarifa zero tem 400 mil habitantes, e não seria responsável começar em uma cidade como São Paulo um processo 'a toque de caixa', porque isso geraria um colapso no sistema de transporte público", alertou. Um caminho apontado pelo deputado seria iniciar a experiência em alguns horários de menor movimento, em finais de semana, testando a resposta dos usuários. Mas antes, disse ele, "seria fundamental que as planilhas de custos fossem abertas, para que a sociedade saiba exatamente o que está sendo pago com os recursos públicos."


Os ganhos que a sociedade poderá ter com um transporte de melhor qualidade e com passe livre também foi defendido pelo pesquisador de mobilidade urbana Daniel Santini, da fundação Rosa Luxemburgo: "Até mesmo as pessoas que usam carros serão beneficiadas, com melhor trânsito, ar mais puro, e uma cidade mais justa, com acesso de todas as pessoas aos serviços oferecidos pela cidade", observou.


Quem paga?
Na plateia, um dos presentes destacou que "nem sempre as prefeituras gerenciam os serviços de forma aberta e transparente". Como alternativa, cogitou a criação de um sistema de vouchers que atribuam a gratuidade apenas às pessoas de baixa renda. Outro crítico dessa possibilidade, o vereador Sansão Pereira (Republicanos) lembrou que "as cidades que já têm essa política recebem royalties e outros benefícios que ajudam a custear a tarifa zero".


Mas a realidade tem revelado casos de sucesso, como a cidade de Maricá, na baixada fluminense, que - ainda que agraciada pelos royalties do petróleo - zerou a passagem à população em 2021 e desde então vê crescer o uso do transporte público, com benefícios à cidade como a dinamização do comércio e serviços. "Só em 2022, o transporte público contabilizou 36 milhões de passagens sem custo ao usuário", diz o diretor da EPT, Celso Haddad. Ele explica que "2% orçamento do município é encaminhado ao sistema, o que por outro lado, traz uma economia aos cofres públicos de 20%". Mas, lembra o gestor, o importante mesmo é que "transporte é um direito social e sua razão de ser é melhorar a vida das pessoas".


Modelo retrógrado
"Pai" da tarifa zero, o engenheiro Lúcio Gregori já nos anos 1990, à época secretário de transportes de São Paulo, concebeu a fórmula que ainda hoje é discutida e aplicada em várias cidades do país. Na audiência desta segunda-feira, Gregori lembrou que o modelo de transportes usado no Brasil ainda é baseado no sistema de concessão de D. João VI (ao sargento mor Sebastião Fábregas de Suriguê), em 1817. "O modelo remunera a empresa concessionária por passageiro transportado, como se ele fosse uma despesa, o que não é verdade, porque os custos do sistema são o veículo, combustível e os funcionários. Da forma como está o sistema, quanto mais cheio o ônibus, mais rentável a operação para o empresário", explicou Gregori.


O especialista afirma que algumas empresas de ônibus de São Paulo mantêm a operação das linhas mais rentáveis por décadas, em alguns casos por mais de 80 anos. E apontou o caminho de desvincular as concessões de linhas da posse de garagens nas áreas de operação. "No Rio de Janeiro, o insuspeito prefeito Eduardo Paes estabeleceu uma coisa óbvia: são duas concorrências, uma para a locação dos ônibus e outra para a operação das linhas. As garagens passaram a ser da prefeitura..."


Lúcio Gregori lembrou alguns números citados por vereadores participantes da audiência, todos com valores de bilhões de reais com subsídios, mas observou que o transporte individual com carros sempre foi altamente subsidiado: "Nós vivemos num país de mentirinha no que diz respeito ao transporte. Os custos de manutenção do sistema viário de São Paulo passam dos 60 bilhões por ano. E os subsídios aos combustíveis para a gasolina em 2019 custaram a bagatela de 99 bilhões de reais ao país". Para viabilizar os recursos de financiamento à tarifa zero, Gregori defende a proposta de uma taxa pelo uso do sistema viário, que deveria ser paga pelos proprietários de carros, de forma progressiva, conforme o valor do veículo.


Por fim, Gregori lembrou que nas cidades que adotaram tarifa zero, o movimento dos  ônibus, em média, triplicou. Então, o que se vê é que a tarifa está na verdade impedindo a circulação de uma parte das pessoas e barrando o acesso aos serviços da cidade. Na prática, a adoção da tarifa zero envolve a discussão sobre a política fiscal do país, concluiu o engenheiro.


A urbanista Raquel Rolnik tomou como referência o movimento de 2013, quando milhões de pessoas em todo o Brasil se manifestaram contra os aumentos das tarifas do transporte. E comemorou que, apesar das diferenças, há hoje uma aceitação de que a proposta de eliminação das catracas e tarifas nos transportes é necessária para a consolidação do transporte como direito social, tal como previsto na Constituição Federal.


Outros depoimentos, como o da representante do Movimento Tarifa Zero lembraram que "aquilo que parecia um sonho, coisa de maluco" é hoje uma pauta discutida em várias cidades do país. O vereador Eduardo Suplicy (PT) destacou a similaridade entre a proposta da tarifa zero e a renda básica; a coordenadora do Observatório dos Trens, do Rio de Janeiro, Rafaela Albergaria, reiterou o direito ao transporte como um direito social. Sandra Ramalhosa, do Conselho Municipal das Pessoas com Deficiência, também ocupou o microfone, com duras críticas à falta de qualidade e de acessibilidade dos ônibus, muitos com piso alto e elevadores quebrados.

 

Como participar:
A comissão que organizou a audiência promete retomar a discussão e incorporar sugestões e observações que sejam enviadas pelo e-mail ccj@saopaulo.sp.leg.br


Veja o vídeo das discussões realizadas nesta segunda-feira



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