Pouco mais de 300 metros separam as duas estações ferroviárias. Diferenças históricas e técnicas também impedem a integração dos trilhos. Mas uma simples passagem vem permitindo a circulação segura e tranquila de pedestres entre a Luz e a Sala São Paulo - Estação Julio Prestes.
Já faz quase um ano - foi em abril - que a cidade de São Paulo ganhou o boulevard que liga a Estação da Luz à Estação Julio Prestes e sua famosa sala de concertos, a Sala São Paulo. Com a obra, projeto do arquiteto Daniel Fernandes, as pessoas podem chegar pelos trens urbanos da CPTM ou pelas linhas Azul e Amarela do Metrô, cruzar a passarela centenária da Luz e acessar o agradável passeio que acompanha a faixa ferroviária para chegar à outra gare, que reúne trens e espetáculos musicais. Não por acaso, a passagem recebeu o nome do maestro e pianista João Carlos Martins.
Ontem (16), depois de dois anos afastados pela pandemia, voltamos a frequentar a sala para ouvir a Floresta Villa-Lobos com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. No programa, obras de Almeida Prado, Clarice Assad, Marco Antonio Guimarães, Edino Krieger, Tom Jobim e, claro, Heitor Villa-Lobos. Recomendamos. É um forte remédio contra os maus espíritos que frequentaram nossas vidas nos últimos anos.
Sons e luzes
Saímos do metrô e subimos para a Estação da Luz. Era noite, o céu prenunciava tempestades e os sons dos trens, o movimento das pessoas, as luzes, tudo isso já compunha um grande espetáculo. Cruzar a passagem, aquele atalho entre as duas estações, também nos deixou marcas profundas e estimulou reflexões sobre a cidade, suas histórias e seu potencial de refazer-se.
A Luz, como se sabe, foi inaugurada em 1901 e foi a terceira versão construída pela São Paulo Railway, empresa britânica que completou o projeto iniciado por Irineu Evangelista de Souza (Barão de Mauá), conectando o interior do estado ao porto de Santos. A intensa luta entre Mauá e os ingleses está bem contada no livro "Mauá", de Jorge Caldeira. Hoje, por lá circulam os trens urbanos da Linha 10 - Turquesa, que ligam Jundiaí, no interior, a Rio Grande da Serra, quase em Paranapiacaba (lugar de onde se vê o mar, em língua tupi-guarani), onde os trilhos começam a descer para Santos.
A Julio Prestes nasceu entre os anos 1920 e 1940, pelas mãos de cafeicutores que buscavam uma alternativa ao controle inglês na ligação com o porto. Hoje, daquela estação saem os trens das Linhas 8 e 9, recentemente repassadas à Via Mobilidade, do grupo CCR. A Linha 8 vai em direção aos municípios a oeste da RMSP, passando por Osasco, Carapicuíba, Barueri e Itapevi, mas não chega à cidade de Sorocaba, onde tudo começou. A Linha 9 acompanha as margens dos rios Tietê e Pinheiros, e segue até os bairros do extremo sul da cidade, seguindo a direção dos trilhos que até os anos 1980 chegavam a Santos, depois de passar por 27 túneis.
Trecho do boulevard, ao lado dos trilhos da CPTM. Foto: Pedro Mascaro/Fernandes Arquitetos
Alguns sinais de suas origens e inspirações políticas permanecem vivas. Na Luz, construída com estruturas de ferro escocesas, os trens circulam pelo trilho esquerdo, seguindo a "mão inglesa". Na Júlio Prestes, projetada e construída em concreto, as composições circulam pelos trilhos da mão direita. Essas diferenças também dificultavam a "conversa" entre as duas estações, apesar de sua proximidade - menos de 300 metros. Para os passageiros, era necessário sair, enfrentar a bagunça urbana da área, chegar à outra ferrovia e seguir viagem. Para mim, desde criança, essa separação era inexplicável.
Terminado o concerto, com a alma lavada pelas sonoridades e imagens que nos remeteram às florestas brasileiras, enfrentamos um aguaceiro de verdade, na saída da sala de música. Bastou uma corridinha até a passagem mágica e rapidamente alcançamos a plataforma da Luz e o metrô que nos levou até em casa.
Na travessia, entre algumas poças de água, olhando os trens que passavam, pensávamos em como pequenas intervenções urbanas - uma simples calçada ou um trecho de ciclovia - podem mudar completamente a experiência de quem circula pelas cidades.
Post scriptum: A passagem vai até a Sala São Paulo, mas não chega exatamente até a Estação Júlio Prestes. Para alcançá-la é necessário sair da sala de concertos, ir para a rua e acessar a gare por outra entrada. De certa forma, a separação continua...
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