"Teresina tem o pior transporte público do Brasil. E podemos provar"

Prefeitura promete tarifa zero, mas usuários de ônibus na capital do Piauí apontam muitos problemas na qualidade dos serviços. Leia artigo de Luan Rusvell

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Luan Rusvell*/ Mobilize  |  Postado em: 27 de janeiro de 2023

Estação Macaúba do BRT, em Teresina: abandono

Estação Macaúba do BRT, em Teresina: abandono

créditos: Luan Rusvell


Em crise desde 2020 e sem nenhuma confiabilidade, o transporte público na capital do Piauí continua perdendo usuários. Agora a Prefeitura promete instituir a tarifa zero para as pessoas de baixa renda e mudar a forma de remunerar as concessionárias. Mas os ônibus chegarão às periferias?, questiona o arquiteto e ativista Luan Rusvell neste artigo. 

 

O anúncio do último dia 11 de janeiro de que a Prefeitura de Teresina ampliará a gratuidade no transporte público para pessoas em situação de vulnerabilidade social não empolgou nem um pouco a população da capital piauiense. Conscientes da realidade, os usuários sabem que os problemas vão bem além da tarifa. 

 

“Nem a gente pagando tem ônibus, imagina de graça..” é o que têm dito as pessoas. Com o sistema ruindo, mesmo com a gratuidade o risco é de que os ônibus nem cheguem àqueles que mais precisam. 

 

Desde o decreto municipal de calamidade pública de março de 2020, que suspendeu o transporte público de Teresina, caminhamos rumo ao colapso: foram três greves, oito paralisações e a demissão de 50% dos trabalhadores ainda no pico da pandemia. Registramos também a desativação dos oito terminais de integração e o abandono das 40 estações de transbordo, além da falta de manutenção nos veículos, o que resulta em uma frota sucateada. Por fim, cabe lembrar a alarmante situação de insegurança que sofrem os usuários. 

 

Eleito com a promessa de resolver os problemas do transporte público da capital nos primeiros cem dias de mandato, o atual prefeito de Teresina, Dr. Pessoa (Republicanos), têm descumprido sistematicamente seus prazos para a solução definitiva e agora promete, até março de 2023, conter a insatisfação popular. Além da ampliação da gratuidade, pretende alterar a base de remuneração das empresas, que passarão a receber pelos quilômetros rodados e não mais por passageiros transportados.  

 Ônibus: lotados, inseguros e desconfortáveis Foto: Luan Rusvell


Falta de segurança e ônibus lotados
A situação é muito grave e não envolve apenas a tarifa. O Relatório Diagnóstico do Plano Diretor de Mobilidade Urbana Sustentável de Teresina, elaborado em junho de 2021,  aponta que, em média, sete em cada dez usuários consideram o sistema de transporte público ruim. Quando perguntados sobre os principais problemas do sistema, “falta de segurança” (índice de insatisfação chega a 94%), “alto tempo de espera nas paradas”, “lotação nos ônibus” e “serviço no fim de semana” são apontados como os problemas que a Prefeitura deveria resolver emergencialmente.  

 

Bem antes, em 2018, um relatório do Ministério Público do Piauí já revelava que 92% consideravam o transporte público ruim à época. 

 

A insatisfação se acumulou ao longo do tempo e afastou os usuários. Entre 2014 e 2019, aproximadamente 30% dos usuários do transporte público haviam abandonado o sistema.  Com a crise iniciada na pandemia, o número de passageiros que utilizam o transporte público na capital hoje é 63% menor se comparado ao de dez anos atrás. Os dados são da própria Superintendência Municipal de Transporte e Trânsito (Strans). 

 

O histórico de abandono dos usuários acompanha o envelhecimento da frota de veículos e a falta de manutenção adequada. Sem justificativa, os ônibus de melhor qualidade foram retirados de circulação e a climatização dos poucos que contam com esse conforto não funciona desde março de 2020. 

 

Hoje o transporte coletivo representa apenas 24% do total de viagens realizadas em Teresina; a maioria da população (53%) utiliza o transporte privado, individual e motorizado em seus percursos diários. Um outro percentual significativo de 23% dos teresinenses utiliza modos não motorizados, como a bicicleta e o deslocamento a pé.

 

Sem nenhuma perspectiva de melhoria na qualidade dos veículos e da infraestrutura física do sistema, na segurança ou no aumento da frota e regularidade do serviço, mais uma vez os planos do poder público estão desajustados com os anseios da população. 

 

Impacto na felicidade das pessoas
Podemos dizer que, de forma ainda que precária, o atual funcionamento do transporte público de Teresina se resume a cumprir um serviço pendular de levar e trazer uma parcela da população de seus postos de trabalho, e só. O transporte público como direito constitucional e meio para alcance a outros direitos sociais como saúde e educação deixou de existir. Os relatos nas reportagens de tevê vão desde a senhora idosa que perdeu a consulta porque o ônibus não passou até o professor universitário que agora precisa liberar a turma da noite mais cedo para que os alunos consigam pegar o último ônibus.

 

Os dados são imprecisos, mas um olhar atento nas ruas da cidade e o saber empírico de quem espera nas paradas permite afirmar que, nos horários de pico, em torno de 60% a 70% da frota está em circulação. Nos horários entre picos e a partir das 20h a frota cai para 30% e só as principais linhas são ofertadas. 

 

Aos sábados e domingos o funcionamento das linhas é incerto. As paradas de ônibus estão quase vazias porque ninguém arrisca perder seu momento de felicidade à espera do ônibus. Assim como ninguém arrisca sua segurança, já que a maioria das estações está em situação tão ruim quanto a dos veículos. Das 40 estações construídas, pelo menos metade estão sem seus vidros de proteção e todas tiveram a climatização desativada após uma série de roubos dos aparelhos, segundo informa a Prefeitura. 

 

Os problemas afetam principalmente as pessoas mais pobres e somente a gratuidade não será suficiente para reverter a situação porque o maior desafio é recuperar o funcionamento das linhas nos bairros onde reside essa parcela da população. Com a crise, as linhas mais periféricas da cidade - e menos rentáveis aos empresários - estão abandonadas. Desde o último edital de concessão do transporte público de Teresina, de 2014, os trajetos das linhas não são devidamente atualizados, deixando muitas comunidades desassistidas, especialmente as que estão à margem do perímetro urbano e na zona rural. 

 

As comunidades periféricas continuam sendo atendidas pelos serviços dos “ligeirinhos” (transporte irregular de passageiros em carros de passeios e minivans), que têm coberto a defasagem deixada pelas empresas concessionárias. Nos pontos de ônibus é constante a passagem de carros anunciando trajetos, com o valor fixo de R$ 5,00 por pessoa. 

 Ante a falta de ônibus, passageiros optam pelos "ligeirinhos" Foto: Luan Rusvell

 

Frente à realidade, talvez o maior desafio da Prefeitura seja o de fazer com que o ônibus chegue até as pessoas que mais precisam, que só assim poderão usufruir do direito à gratuidade.

 

O nó jurídico-administrativo que amarra o transporte em Teresina

Uma coalizão entre prefeitura, câmara municipal e empresários transformou o debate sobre transporte público em Teresina em um nó jurídico-administrativo que parece não ter solução, distanciando o debate público das questões políticas que envolvem a situação.

 

O relatório da CPI do transporte público elaborado pela Câmara Municipal de Teresina comprovou um esquema de corrupção promovido pela antiga gestão (PSDB), que governou a cidade por 30 anos, e os empresários do transporte público. O relatório apontou uma série de repasses irregulares ao Sindicato das Empresas de Transportes Urbanos de Passageiros de Teresina (Setut) especialmente às vésperas das eleições municipais; enriquecimento ilícito; improbidade administrativa de autarquias vinculadas à Strans; interferência nos dados da bilhetagem eletrônica; fraude nos cálculos da tarifa e uma pilha de multas e taxas (incluindo emplacamento atrasado e seguro dos passageiros) não pagas pelas empresas, para citar as principais conclusões. 

 

Não é um problema puramente técnico como querem que acreditemos. O Ministério Público do Estado do Piauí e o Tribunal de Contas do Estado têm exercido seu papel de mediar uma solução legal para a crise, mas tanto a Prefeitura como os empresários têm descumprido sistematicamente as recomendações desses órgãos. Protagonista na CPI, a Câmara de Vereadores, hoje base da atual gestão municipal, atua para minar as polêmicas e esvaziar o debate público. 

 

Tampouco é um problema econômico, já que a Prefeitura Municipal tem nos cofres públicos 150 milhões reservados exclusivamente para o transporte coletivo da capital e cujo destino do recurso é preocupante por não levar em conta os desejos de quem tem sentido na pele a angústia na espera por um ônibus.


A crise do transporte público de Teresina é, principalmente, uma crise social e política, cujos avanços, podemos lembrar, só aconteceram nos momentos em que a população ocupou seu lugar, não apenas de usuária, mas de proponente do transporte público, gratuito e de qualidade que queremos. 

 

*Luan Rusvell é arquiteto e urbanista, ativista do movimento popular pelo direito à moradia e à cidade e membro da comissão técnica da Auditoria Popular do Transporte Público Piauiense. 


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