A cidade sem pedestres?

O futuro baseado em aplicativos, serviços de entregas e automação de serviços pode esvaziar o sentido da cidade como lugar de encontro, denuncia Paris Marx em seu livro

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Fonte: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation  |  Autor: Paris Marx  |  Postado em: 27 de agosto de 2022

Cidade sem pedestres?

Cidade sem pedestres? questiona Paris Marx

créditos: Reprodução Verso Books


No começo, o cinema veio até as nossas casas. Logo depois, as idas ao banco também se tornaram dispensáveis. Agora não precisamos mais sair para comprar comida, roupas, ou mesmo para ir ao trabalho. Surgiram as consultas médicas virtuais, os cursos on-line e a promessa da interação total pelo metaverso. O livro "Road to Nowhere: What Silicon Valley Gets Wrong about the Future of Transportation", do escritor Paris Marx, aponta os riscos dessa "sociedade sem atrito" que tem sido estimulada pelo pessoal da tecnologia. Leia um trecho...


"...Serviços de entrega rápida incentivam as pessoas a ficarem em casa. Sem dúvida, eles foram muito convenientes durante a pandemia de Covid-19, mas têm o potencial de corroer ainda mais as interações sociais urbanas a médio e longo prazo. O comércio eletrônico ameaça a sustentabilidade do varejo físico, incluindo os restaurantes, se essa transição não for tratada adequadamente. Basta ver a quantidade de "cozinhas fantasmas" que surgiram nos últimos anos para atender aos serviços de delivery.


...O Vale do Silício odeia caminhar.
 Suas ideias e invenções para a mobilidade foram obcecadas em encontrar a “solução de última milha” para levar as pessoas "porta-a-porta", sem terem que andar mais do que alguns passos. Os especialistas do Vale do Silício preferem que as pessoas peguem um Uber, ou que aluguem uma bicicleta sem estação, que possa ser deixada em frente ao seu destino. Ou, pior ainda, no futuro, tomar alguma forma de mobilidade autônoma, talvez um veículo voador. E para isso, até mesmo a calçada pode ser reorientada para outros usos.

A tecnologia vem tentando fazer as pessoas pararem de andar e para isso está criando uma economia de serviços projetada para entregar qualquer coisa que se queira no menor tempo possível. O formato atual são os aplicativos sob demanda, atendidos por trabalhadores temporários, mal pagos e sem proteção social, que tentam atender ao maior número possível de pedidos para ganhar a vida. E isso traz graves consequências para a vida urbana.


Outro problema é que os serviços de entregas ocupam muito espaço nas ruas. Nos últimos anos, o aumento de vans e caminhões de entrega nas vias urbanas tem sido um importante fator para os congestionamentos e também para o bloqueio de ciclovias e calçadas. Como os motoristas e motociclistas de entregas estão sempre sob pressão para atingir metas inatingíveis, eles dirigem muito rápido, cortam as esquinas, sobem nas calçadas, "aproveitam" semáforos vermelhos, enfim, correm riscos e colocam em risco as pessoas ao seu redor.


Da mesma forma que no passado a paisagem urbana foi reorganizada para dar lugar ao automóvel, um processo semelhante será necessário para abrir caminho para o "mundo sem atritos" do consumo tecnologicamente mediado que as empresas de tecnologia esperam inaugurar.


No entanto, a forma como os serviços de comércio eletrônico são projetados e implementados sob o capitalismo não enriquece as comunidades, nem as torna mais justas. Em vez disso, eles surrupiam as relações humanas - o tal atrito - e esvaziam a existência social.


A cidade do controle algorítmico
As empresas de tecnologia prometem eliminar quaisquer preocupações ou obstáculos. Tudo o que precisamos fazer é pressionar um botão ou usar um aplicativo, e eles cuidarão de todo o resto. Essa concepção ignora, ou finge ignorar, que a tecnologia também pode criar suas próprias formas de atrito.


Considere o supermercado [que já é uma evolução da antiga mercearia]. Primeiro foi a máquina de auto-checkout. Em vez de ter que lidar com um caixa humano, o cliente pode fazer o check-out sozinho. Mas quem já usou esse sistema sabe que as máquinas cometem erros ou não conseguem detectar corretamente as carcterísticas ou os pesos dos produtos. Nesse caso, recorre-se a um atendente humano.


Em vez de desistir dessa ideia, a Amazon introduziu as lojas Amazon Go e Fresh, ambas com a promessa de que os clientes poderiam entrar, pegar o que quisessem e sair, tudo sem ir ao caixa. A desvantagem é que cada parte da loja precisa ser vigiada para garantir que o sistema saiba o que os clientes compram.


A experiência da Amazon foi apresentada como um sistema sem atrito, mas...

...além do complexo sistema de vigilância, todo cliente precisa ter um smartphone, baixar o aplicativo da Amazon, fazer login em uma conta da Amazon e conectar-se a um meio de pagamento. Quando a Amazon abriu uma loja desse tipo em Londres, em março de 2021, um jornalista observou uma pessoa idosa que tentava entrar para pegar alguns mantimentos. E ela simplesmente desistiu quando lhe disseram todos os passos que teria que dar apenas para entrar. E seguiu andando para chegar a uma mercearia normal. Mas no futuro essa pessoa poderá ter problemas semelhantes em outras lojas, já que países como a Suécia são pioneiros em uma economia sem dinheiro e, ao que parece, o modelo da Amazon inevitavelmente está se espalhando.


O pesquisador Chris Gilliard cunhou o termo “redlining digital” para descrever a série de tecnologias, decisões regulatórias e investimentos que “impõem limites de classe e discriminam grupos específicos”. Da mesma forma que os preconceitos nos sistemas de inteligência artificial foram ignorados por muito tempo, se não propositadamente escondidos, para proteger os interesses comerciais das empresas, essas "ferramentas sem atrito" também afirmam que eliminarão as desigualdades, embora Gilliard argumente que “os ciclos de feedback dos sistemas algorítmicos funcionarão para reforçar estes pressupostos muitas vezes falhos e discriminatórios.

 

Já existe uma crescente divisão econômica que produz e reforça as divisões sociais e geográficas. Isso não é uma suposição. É observável no desenvolvimento da economia baseada em aplicativos até o momento, bem como nas propostas de como esses sistemas sem atrito funcionarão.


Nessa cidade baseada em aplicativos há uma transferência direta de poder para as empresas de tecnologia  e, à medida que o controle sobre interações e transações muda para vastos sistemas tecnológicos, há também uma diluição de responsabilidades.


Em troca da falta de atrito para as pessoas que colheram os benefícios da economia moderna, surgem barreiras crescentes para aqueles que não o fizeram – barreiras que podem aparecer rapidamente onde não existiam e que não podem ser facilmente resolvidas porque são controladas por algoritmos..."
(Direitos autorais © Paris Marx, 2022./Tradução e adaptação: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil)


Para saber mais,
leia o Road to Nowhere, de Paris Marx, publicado pela Verso Books.


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