Funciona? Até agora, as evidências são variadas, mas ao que parece, o transporte com tarifa zero traz muitos benefícios, desde garantir o acesso equitativo ao transporte, melhorar a pontualidade e frequência dos coletivos, além da economia na fiscalização das tarifas, argumenta a jornalista Nicole Kobie em artigo publicado na revista Wired, em julho passado.
Pode parecer estranho não pagar nada, mas os especialistas traçam paralelos com a saúde pública, bibliotecas e escolas – serviços que alguns usam mais do que outros, mas todos pagam. “Eliminar tarifas sinaliza às pessoas que elas tem o direito de se locomover independentemente de seus meios, e isso é um bem público”, diz Jenny Mcarthur, pesquisadora de infraestrutura urbana da University College London.
A necessidade desse novo pensamento é óbvia: o transporte rodoviário representa um décimo das emissões globais de dióxido de carbono. E, por outro lado, o aumento dos preços dos combustíveis também está pressionando os orçamentos familiares já sobrecarregados.
É por isso que cidades e países ao redor do mundo estão se aproximando da tarifa zero. A Espanha é a última a se juntar à lista, agora em setembro, oferecendo viagens de trem gratuitas em uma seleção de rotas por alguns meses para aliviar a pressão sobre os passageiros à medida que a crise do custo de vida os atinge.
Na Alemanha, as autoridades introduziram um passe de viagem de 9 euros por mês, na Irlanda o governo reduziu as tarifas pela primeira vez em 75 anos, e a Itália distribuiu um vale de transporte público de 60 euros para trabalhadores de baixa renda. Luxemburgo e Estônia zeraram as tarifas alguns anos atrás, buscando tirar os passageiros dos carros, mesma motivação que levou a Áustria a criar o passe "Klimaticket" de 3 euros por dia.
A gratuidade do transporte realmente aumenta o número de passageiros, mas não necessariamente de motoristas que deixam seus carros. Na Estônia, por exemplo, o transporte gratuito era mais usado por quem estava caminhando ou andando de bicicleta, uma tendência que se repetiu em outros lugares. E isso é um problema, pois pedestres e ciclistas geram menos emissões do que o transporte público.
O uso do carro caiu inicialmente em Copenhague após um mês de teste de um bilhete de transporte gratuito, mas as pessoas acabaram voltando aos seus velhos hábitos. Mas isso nem sempre é verdade: a análise do tráfego alemão em junho, apenas algumas semanas após a emissão dos passes de 9 euros por mês, mostrou menos carros na estrada e tempos de condução mais rápidos na maioria das cidades estudadas.
Prós e contras
Em 2020, Luxemburgo se tornou o primeiro país a oferecer transporte público gratuito, mas seus bilhetes já eram baratos e é um país pequeno, com uma população de 630.000 habitantes, além de ser muito rico. Dois anos depois, o tráfego permanece o mesmo ou pior do que antes da política de tarifa gratuita, pelo menos parcialmente, isso porque um grande número de pessoas que não podem morar em Luxemburgo chega e sai do país todos os dias, de carro. Portanto, embora a tarifa zero possa aumentar o uso do transporte público, não necessariamente tira carros das ruas.
Mas o transporte gratuito traz vários outros benefícios. Na Espanha, as passagens gratuitas foram introduzidas para aliviar o fardo da inflação e do aumento dos preços dos combustíveis. Para as pessoas de baixa renda, que não podem comprar um carro, o transporte gratuito mantém o dinheiro em seus bolsos. “É comum as pessoas racionalizarem suas viagens quando o transporte público é muito caro”, diz Mcarthur. “Elas vão às compras somente uma vez por semana e não podem ir quando quiserem, porque isso aumenta muito suas despesas.”
Movimento pela tarifa-zero na Nova Zelândia Imagem: farefreenz
O contexto local também pesa. Na Austrália, o governo da Tasmânia liberou a gratuidade nos ônibus por cinco semanas para compensar o aumento do custo de vida. Embora esse projeto tenha sido considerado um sucesso, os pesquisadores argumentam que expandir a política em outras partes do país beneficiaria os moradores mais ricos, já que o transporte público na Austrália é mais usado por moradores de cidades do interior ou de subúrbios centrais que viajam para distritos comerciais centrais - em outras palavras, pessoas que vivem em bairros caros e que se deslocam para empregos bem remunerados.
Na Espanha, as passagens gratuitas beneficiarão sobretudo as pessoas que vivem em áreas urbanas próximas aos trens regionais, conhecidos como Média Distancia, e ferrovias suburbanas, chamadas Cercanías. Mas o ambientalista Pablo Muñoz Nieto, do grupo Confederación de Ecologistas en Acción lembra que várias dessas ferrovias estão em más condições pela falta de investimento, e muitas áreas estão sem serviços de trens. “Para que você quer uma passagem de trem grátis se você não tem um trem?”, questiona Muñoz.
Igualdade racial
Nos EUA, a divisão entre pobres e ricos muitas vezes recai em linhas raciais, o que significa que as tarifas gratuitas podem apoiar a igualdade racial. Mas, embora isso seja verdade em termos financeiros, há mais detalhes nessa história. Como observa o líder comunitário Destiny Thomas, os sistemas de transportes dos EUA “dependem da criminalização da pobreza como fonte primária de receita”, porque as operadoras emitem multas significativas para aqueles que não têm dinheiro para comprar uma passagem. Em 2019, o conselho da cidade de Washington votou para reduzir as multas e o risco de prisão para os evasores após evidências de que nove em cada dez dessas intimações judiciais foram dadas a afro-americanos. Ao remover completamente as tarifas, os operadores de trânsito evitam o risco de aplicação discriminatória.
As tarifas gratuitas também eliminam o custo financeiro da cobrança e dos controles da bilhetagem. Em Boston, um teste de tarifa gratuita foi em parte inspirado por um novo sistema de emissão de bilhetes. E revelou um benefício inesperado: o tempo de embarque ficou mais rápido, o que significa uma economia para a operação do sistema, avalia Mcarthur.
Experimento de gratuidade na região de Los Angeles, EUA Foto: Road Read Marketing
No entanto, o efeito pode ser o contrário. Na Alemanha, o primeiro fim de semana prolongado com os bilhetes de 9 euros por mês levou a superlotação, interrupções de serviço e milhares de horas extras para os funcionários. Na Espanha, Muñoz Nieto adverte que, se as frequências dos trens não forem aumentadas, os serviços ficarão superlotados; Além disso, levar a gratuidade a somente um modo de transporte poderia afastar os passageiros dos ônibus ou dos serviços de metrô.
Subsídios e custos
Aumentar os serviços ao reduzir as tarifas exige mais dinheiro – que tem que vir de algum lugar. Na Espanha, as passagens gratuitas serão pagas com um imposto extraordinário sobre empresas de energia e bancos, calculado em 7 bilhões de euros em dois anos. “Subsidiar trens é fenomenalmente caro, mas precisa ser feito se você quiser que muitas pessoas entrem e saiam das cidades para trabalhar”, diz Paul Chatterton, professor de futuros urbanos da Universidade de Leeds.
Os sistemas de transporte de massa já são subsidiados em certa medida por fundos públicos, pelo menos nos países mais avançados. Na França, as tarifas representam apenas 10% dos orçamentos de transporte público. Luxemburgo pode facilmente tornar os trens gratuitos porque uma passagem de duas horas custa 2 euros, gerando apenas 30 milhões de euros em receita, pouco perto do orçamento de 1 bilhão de euros do transporte do país. Em Londres, a situação é diversa. Cerca de 2/3 do orçamento da Transport for London são de tarifas, o que significa que o governo central teria um "buraco" maior para compensar se quisesse tornar todo o transporte público na capital gratuito.
Os sistemas de transportes que dependem muito das tarifas [como os das cidades brasileiras] foram submetidos a uma enorme pressão durante a pandemia, com muitas redes ainda lutando à medida que os passageiros mudam para o trabalho híbrido. Um escritório vazio em uma segunda-feira, por exemplo, também significa muitos trens vazios. “Todos os modelos de financiamento foram baseados nessa enorme demanda por viagens suburbanas, que está estável há 50 anos”, diz Mcarthur. “Mas, veio a pandemia e esse modelo se desfez.”
Uma alternativa são os descontos direcionados, oferecendo passes gratuitos ou baratos para estudantes, jovens, idosos e beneficiários, já uma prática comum. Em vez de subsidiar os custos de transporte para aqueles que podem pagar, passes gratuitos poderiam ser concedidos a pessoas de baixa renda ou em regiões onde o transporte público está disponível, mas é impopular. Outro passo intermediário é cobrar uma taxa fixa barata, como a Alemanha fez neste verão. “As pessoas ainda valorizam o serviço, mas você também gera alguma receita”, diz Chatterton.
A tarifa zero pode não tirar todas as pessoas dos carros, mas converterá algumas viagens, o que beneficia a todos em termos de redução de carbono e melhoria da qualidade do ar local. E até ajuda os motoristas, ao acalmar o tráfego. Também não resolverá o problema da pobreza, mas ajudará a reduzir os gastos dos mais pobres. E permitirá que todos possam circular quando precisarem.
Para concluir, deixando de lado os números, há outra maneira de ver isso: o transporte público deve ser considerado um direito humano, ao lado do acesso à saúde e à educação. É necessário para a vida em uma cidade, completa a professora Jenny Mcarthur: “O transporte público é uma forma extremamente eficiente de transportar as pessoas”, diz ela. “Ônibus e trens não são apenas eficientes para quem os usa, mas também para quem não os usa.”
*Tradução e adaptação: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil
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