O Rio de Janeiro é uma cidade complexa, maravilhosamente complexa. Abrigada entre mar e montanhas, a capital fluminense sempre sofreu dificuldades para encontrar territórios para novos bairros, ruas, avenidas e edificações. Copacabana, por exemplo, somente foi incorporada à vida cotidiana após a escavação de um pequeno túnel que permitiu a chegada dos primeiros bondes de tração animal à famosa praia, ainda no século 19. Morros foram demolidos, águas aterradas, novos túneis e viadutos construídos.
Mas, apesar das pontes e elevados, e das vias de tráfego rápido, como as Linhas Vermelha e Amarela, todos os dias os caminhos do município engarrafam em grandes massas de automóveis, incluindo suas conexões com a Baixada Fluminense e a vizinha Niterói.
Conforme dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), em março de 2022 havia mais de três milhões de veículos motorizados na cidade, a maioria (2,84 milhões) para o transporte individual. Se colocados em fila, tantos carros, caminhonetes e motos somariam mais de 10 mil km, bem mais do que a extensão de todas as vias da cidade, que é cerca de 9.500 km, conforme apurou o Estudo Mobilize 2011. A área urbanizada do município aproxima-se dos 1.000 km2. Eram pouco mais de 925 km2 em 2015, ano da última informação divulgada pelo IBGE. Nessa área, em 2020, viviam 6.747.815 pessoas, segundo estimativas do Instituto.
Assim, ocupando vales e encostas de montanhas, a velha capital do império espraiou-se em novos bairros, semeando cidades que vieram a formar a sua região metropolitana, com 22 municípios, com outros milhões de habitantes que trabalham, estudam e circulam também pelo território. Na realidade, como se sabe, existem várias cidades e realidades dentro do Rio de Janeiro, cada uma com suas facilidades e desafios.
A professora de idiomas Thatiana Murillo (foto) mora na Tijuca, Zona Norte do Rio, "um bairro bem contemplado de serviços". Co-fundadora do movimento Caminha Rio, ela foi a articuladora das avaliações realizadas na cidade para o Estudo Mobilize 2022. "Eu consigo fazer tudo a pé, o que é um privilégio, porque é mais fácil. Tenho metrô, ônibus e uma proximidade bem feliz com a cidade, o que me permite ir ao Centro ou à Zona Sul sem dificuldades". Ela explica que é muito difícil estacionar um carro nessas regiões da cidade e que por isso prefere o usar o transporte público, como o metrô e o VLT.
BRT Transbrasil, símbolo da letargia, em obras desde 2014. Fernando Frazão/Agência Brasil
Outra realidade bem diferente foi vivida por Lorena Freitas (foto), hoje coordenadora de Gestão da Mobilidade do ITDP. Ela cresceu em um subúrbio carioca, na Zona Oeste, mas depois passou a residir em outras áreas da cidade, no Centro e na Zona Sul. "Minha experiência morando no Centro mostrou o quanto a caminhada é possível quando temos oferta de oportunidades. Assim como na Zona Sul, ir a teatros, museus, festas, restaurantes, e também a consultas médicas e ao trabalho a pé é algo que além de tornar a vivência na cidade muito mais agradável, também representa uma grande economia no final do mês."
Lorena lembra que quando morava no subúrbio, seu dia a dia estava marcado por três "coisas" muito ligadas ao transporte: o planejamento, os trens e a avenida Brasil. Primeiro, porque toda saída exigia um plano que considerasse uma folga de tempo para garantir a pontualidade nos compromissos. Depois, o sofrimento nos vagões de trem, sempre lotados, o assédio e as tarifas altas. E a avenida, que é tão importante para os movimentos pendulares, mas onde ainda não há prioridade para o transporte público.
A especialista cita que todos os dias passam pela avenida Brasil cerca de 25 mil ônibus, enquanto o BRT Transbrasil, planejado para melhorar a circulação do transporte coletivo nessa via, arrasta-se em obras intermináveis, que bloqueiam trechos da avenida e dificultam ainda mais a circulação de todo o trânsito, incluindo os ônibus do transporte coletivo. Um estudo realizado pelo pesquisador Rafael Pereira (Ipea) aponta que o corredor poderia beneficiar 58% da população carioca, ampliando o acesso ao trabalho em 23% para populações mais pobres. A gestão atual, de Eduardo Paes, comprometeu-se a iniciar a operação do BRT Transbrasil em 2023, mas é irônico que, quinze anos atrás, quando o Rio se preparava para a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016, os BRTs tenham sido apresentados como uma solução rápida e barata para o transporte de alta capacidade. No final de 2021, o sistema transportava 248 mil pessoas por dia.
O engenheiro Licínio M. Rogério (foto) é um dos coordenadores do Fórum de Mobilidade Urbana do Rio de Janeiro. Ele lembra que o sistema de corredores de ônibus "foi vendido como um sistema de alta capacidade, o que ele não é". E além disso, explica, os pavimentos iniciais no BRT Transoeste foram construídos com um tipo de concreto asfáltico que não suporta o trem de rodas de tantos ônibus passando exatamente sobre os mesmo pontos. Essa falha provocou a rápida degradação das pistas, resultando em danos mecânicos aos ônibus, reduzindo a oferta dos coletivos nos momentos de pico. Com menos ônibus, os tempos de espera nas estações foram ficando mais longos, o que acabou levando à insatisfação geral e à depredação das instalações, com o abandono desse sistema por parte dos usuários.
Tarifa: "passageiro não pode pagar a conta"
Outro problema apontado por Licínio é o valor da tarifa (R$ 4,05), muito alta para a renda média das pessoas que usam o transporte público, principalmente para quem está desempregado, ou subempregado, realidade muito comum no Rio de Janeiro, que hoje tem uma taxa de desemprego de quase 15%. "O valor é alto, porque muitas vezes a pessoa precisa pegar duas ou três pernas [trechos de integração] para chegar a seu destino, o que nem sempre é possível dentro do tempo limite do bilhete de integração", explicou.
O representante do Fórum de Mobilidade Urbana argumenta que "não dá mais para o passageiro pagar a conta do transporte", e lembra que a Prefeitura do Rio começou a reconhecer isso quando decidiu instituir um subsídio: a tarifa técnica (paga às empresas) foi aumentada para R$ 5,80, mas os passageiros continuam a pagar R$ 4,05. A diferença está sendo paga pela Prefeitura com base nos quilômetros rodados pelos ônibus.
Na visão de Lorena Freitas, "definitivamente o custo do transporte não é adequado à renda da população". Com base em sua experiência pessoal e também como pesquisadora, Lorena afirma que o valor da tarifa exclui parte da população de atividades culturais e de lazer, e muitas vezes até do trabalho. A tarifa alta, inclusive, tem promovido a mobilidade ativa de forma perversa e compulsória: quando a pessoa não tem recurso para pagar o transporte, acaba fazendo seu deslocamento a pé ou por bicicleta, explica Lorena, ilustrando uma situação comum a todas as capitais brasileiras. "Isso não é uma boa notícia, pois estamos falando de viagens com distâncias muito superiores às aceitáveis para esses modos de transporte. A mobilidade ativa, assim como a escolha por qualquer forma de transporte, deveria ser sempre uma opção confortável", argumenta Lorena.
Ela compreende que o custo do transporte também é alto para a gestão municipal, mas lembra que existem várias propostas alternativas para o financiamento desse serviço, como a aplicação de um percentual da Cide (proposta pela FNP anos atrás), a redução ou a isenção do ISS, ou a criação de um Sistema Único de Mobilidade. "Outras fontes de recurso também podem ser discutidas, como a tarifação de automóveis, por exemplo. Mas medidas dessa natureza precisam ser pensadas com atenção ao contexto local para que tenham caráter redistributivo e não ampliem a exclusão das populações das classes C, D e E", pondera a pesquisadora.
Licínio Rogério vai mais direto ao ponto, na perspectiva do transporte com tarifa zero. Ele entende que o transporte deveria ser encarado como um serviço realmente público, tal como a educação, a saúde ou a iluminação das ruas, atividades abertas a qualquer cidadão e que são financiadas com recursos dos impostos.
"Ninguém coloca catracas nos elevadores dos prédios porque esse serviço é pago pelo condomínio. Ora, por que não se pode pagar o transporte com os recursos do 'condomínio da cidade', que são os recursos da prefeitura, do estado, do governo federal?", provoca o engenheiro.
Bondes, barcas, bicicletas e teleféricos
A complexidade do Rio de Janeiro também é visível na variedade de meios de transporte existentes na cidade: trens, metrô, VLT, BRT, ônibus, vans, táxis, carros de aplicativo, barcas, bicicletas, teleféricos e o simpático bonde de Santa Teresa. Em 2011, quando foi feito o primeiro Estudo Mobilize, a cidade estava recebendo uma série de investimentos e obras, como a renovação da área portuária, nova linha de metrô, a promessa de melhorias nos sistemas de trens urbanos, novas ciclovias, corredores de ônibus, e a retomada do transporte leve sobre trilhos, com o VLT Carioca.
Teleférico, ainda em operação em 2015: integração favela-cidade. Foto: Tomas Silva/Agência Brasil
No entanto, os teleféricos urbanos, que permitiriam a conexão das grandes favelas aos trens, despontava como um projeto perfeito para integrar esses bairros informais à vida da cidade. O modelo era inspirado no Metrocable de Medellín, na Colômbia, que se tornou uma referência para o transporte em áreas montanhosas, como em La Paz, na Bolívia, hoje o maior sistema de teleféricos do mundo. Inaugurado em julho de 2011, o Teleférico do Alemão transportava cerca de 10 mil pessoas por dia e funcionou até 2016, quando sua operação foi abandonada por problemas técnicos. Outra linha, o Teleférico da Providência, funcionou por pouco tempo e também foi abandonada em 2016.
Questões de segurança pública foram alegadas para a descontinuidade dos serviços, mas foram sobretudo problemas técnicos que levaram ao triste fim dos teleféricos. Segundo informações do engenheiro Licínio Rogério, a empresa que concebeu e montou o sistema especificou um tipo de cabo de sustentação inadequado para os esforços exigidos pelo relevo dos bairros cariocas. Assim, em pouco tempo, os cabos se desgastaram, impedindo a continuidade dos serviços. As falhas coincidiram com uma crise política no governo do Estado do Rio, que interrompeu os pagamentos à empresa operadora. No final de 2021, o governador Cláudio Castro reatou os contatos com a empresa fabricante do sistema, buscando formas de reabilitar os teleféricos, que teve as obras de recuperação iniciadas em 2022.
Teleférico do Alemão: parado desde 2016, agora em obras para recuperação. Foto: Rafael Campos/Governo do Rio de Janeiro
Rio, como sair da crise
Além de ser parceira do Estudo Mobilize 2022, Thatiana Murilo acompanha de perto o trabalho da Prefeitura do Rio. Ela participa do Observatório de Mobilidade Sustentável na Prefeitura e entende que a gestão de Eduardo Paes (PSD) está fazendo um trabalho para recuperar o sistema de ônibus e BRTs. Mas, lembra que em algumas linhas os ônibus desapareceram, especialmente nos bairros mais distantes. "As pessoas simplesmente não estão conseguindo ter uma vida normal. E com essa situação de emergência, a prefeitura acaba sem recurso (e tempo) para se dedicar a outros aspectos da mobilidade urbana".
Como exemplo, Thatiana cita o esforço para a expansão da rede cicloviária, e o projeto Caminho da Escola 2.0, que conta com a participação do ITDP, para melhorar a situação de caminhabilidade no entorno das escolas. Ela também lembra algumas ações para reduzir a velocidade do trânsito, assim como a abertura para a participação da sociedade civil, com intenso envolvimento das organizações que atuam na área da bicicleta.
"Por enquanto, nada mudou, mas numa cidade como o Rio de Janeiro - que teve pouca ação das gestões - vejo com otimismo essas iniciativas. No entanto, a continuidade vai depender de outras gestões...", pondera a ativista.
Boas notícias
Os primeiros resultados desse "esforço" citado por Thatiana começam a ganhar publicidade. Na quinta-feira (30) a Prefeitura do Rio anunciou o início de implantação de novas ciclofaixas na Zona Norte, nos bairros Cascadura e Engenho de Dentro, conectando estações de trem e do BRT. Outra novidade foi a reabertura de um trecho da Ciclovia Tim Maia, que finalmente está sendo recuperada. São sinais positivos, mas ainda insuficientes.
Há três anos, a Prefeitura do Rio recebeu o relatório do Campanha Calçadas do Brasil 2019, que também contou com a participação de Thatiana Murilo nas avaliações de caminhabilidade e acessibilidade a pedestres e pessoas com deficiência. O Rio de Janeiro ficou com a média 6,19 (na escala de zero a dez), uma nota sofrível, principalmente porque todas as avaliações se referiam ao entorno de repartições públicas, como escolas, hospitais e terminais de transportes, áreas que estão diretamente sob responsabilidade do poder público.
Entusiasta da mobilidade a pé, Thatiana avalia que, apesar das promessas da nova gestão na Prefeitura, nesse quesito nada mudou: "Os projetos que estão surgindo são válidos, me deixam feliz, mas são muito pontuais. A situação alteraria para valer se a prefeitura obrigasse os proprietários a refazer suas calçadas, tapar os buracos, cuidar do lixo, consertar os canteiros de plantas, e se a gestão assumisse essa ações de fato, talvez criando uma área que envolvesse várias secretarias, principalmente as de transportes, urbanismo, limpeza e conservação. A cidade precisa de um grupo que fique responsável exclusivamente pela infraestrutura da mobilidade para calçadas e ciclovias, afirma Thatiana.
BRT: abandonado pelas empresas, agora sob gestão municipal. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Integração da rede de transportes
Entre tantos problemas, Licínio Rogério acredita que a falta de integração - física e tarifária - talvez tenha sido a maior falha nos planos e projetos desenvolvidos para os eventos esportivos de 2014 e 2016. Ele avalia que a cidade precisa criar uma autoridade metropolitana que seja capaz de reunir gestores municipais, empresas de transportes, usuários, sindicatos de trabalhadores e organizações da sociedade para debater as dificuldades de cada parte e reorganizar todo o sistema de transportes da região.
Essa reorganização do transporte coletivo parece ser um fator indispensável para que os cariocas prefiram deixar seus carros em casa. Provocada - caso fosse prefeita ou secretária de mobilidade - a pesquisadora Lorena Freitas considera fundamental que a cidade reduza a quantidade de carros nas vias, por exemplo com a tarifação aos veículos particulares; mas para isso, diz ela, "é fundamental que o transporte público coletivo e a mobilidade ativa se tornem mais atraentes. E isso se consegue com serviços de qualidade, com horários confiáveis, maior oferta de rotas e uma política tarifária mais inclusiva. Faixas exclusivas para os ônibus, mais ciclovias e calçadas, por exemplo, são ações que podem democratizar a mobilidade no Rio de Janeiro". Parece simples, não?
Nota: As entrevistas realizadas com Thatiana Murillo, Lorena Freitas e Licínio M. Rogério serão publicadas na íntegra, nas próximas semanas, com mais riqueza de detalhes.
Observação: Ao longo da preparação do Estudo Mobilize 2022, a equipe do Mobilize Brasil tentou de várias formas contatar a Prefeitura do Rio de Janeiro para obter dados e ouvir suas visões sobre os problemas aqui apontados e seus planos para o futuro da cidade, recorrendo inclusive à Lei de Acesso à Informação. Infelizmente, as secretarias não responderam às várias mensagens e tentativas de contato realizadas para entrevistas.
Este texto integra o trabalho de preparação do Estudo Mobilize 2022, um levantamento da mobilidade urbana nas 27 capitais brasileiras que está sendo realizado pelo Mobilize Brasil.
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