Em Helsinque, na Finlândia, uma pessoa sai de casa, aluga uma bicicleta, deixa na estação do trem e vai trabalhar. Na volta, passa no supermercado e chama um táxi para ajudar a carregar suas compras. Tudo com bilhetes digitais através de um aplicativo no celular, incluídos numa assinatura mensal.
Conversei com Sampo Hietanen, CEO da MaaS Global, a empresa finlandesa dona de um aplicativo, chamado Whim, que faz essa conexão entre os transportes. Ele é o autor da expressão MaaS, Moblity as a Service (Mobilidade como Serviço), que hoje é ouvida em todas as discussões sobre smart cities, as cidades inteligentes. MaaS expressa a facilidade de pegar vários transportes - e pagar tudo de maneira integrada. É uma das apostas de engenheiros de transporte para o futuro da mobilidade nas cidades.
Sampo acha que as pessoas que têm carro estão acostumadas com a ideia de poderem ir aonde quiserem na hora em que quiserem. A questão é que nas grandes cidades ter carro não garante mais isso. Não dá para todos andarem de carro para fazerem suas atividades cotidianas. As ruas estão congestionadas e poluídas, as vias expressas destruíram parte do tecido urbano e já existem políticas para aumentar a prioridade para o transporte público.
Nesse cenário, a melhor combinação de transporte deve ser a que mistura o transporte público e privado. O aluguel de um automóvel também faz parte do pacote, para alguns usos não recorrentes e especiais, como uma viagem no fim de semana ou uma ida ao médico com crianças. Na visão dele, grande parte dos atuais assinantes do serviço vão acabar se livrando dos seus carros nos próximos anos.
A empresa já opera em Viena, Tóquio e em várias regiões da Inglaterra, Bélgica e Suíça. No Brasil, acabaram de comprar uma empresa, a Quicko, que oferece um aplicativo para transportes públicos, e pretendem começar a conversar com todos os operadores de transporte para tentar amarrar sua solução.
Será que o Brasil está preparado para isso?
Em São Paulo, nosso problema é, na verdade, de dois tipos. Para quem hoje usa majoritariamente o transporte público, falta simplificar a integração entre ônibus e trens, facilitar a venda, melhorar a qualidade e confiabilidade das viagens e, claro, achar uma equação que permita que pessoas hoje excluídas possam se integrar ao sistema.
Uma tese de doutorado da USP de Tainá Bittencourt mostrou que o transporte chega a representar até 40% da renda de famílias mais pobres, o que faz com que muitas pessoas deixem de ir a entrevistas de emprego ou consultas por absoluta falta de dinheiro.
Há também uma complexidade na interlocução: a rede de ônibus é municipal, os trens e o metrô têm gestão estadual e quem mora em outros municípios da Grande São Paulo tem que ficar fazendo contas para decidir que bilhete comprar. Quem estiver disposto a fazer parte do trajeto em bicicleta vai descobrir que nem todas as estações têm bicicletários e as que têm exigem um cadastro chato e burocrático. Bicicletas compartilhadas, patinetes e bikes elétricas estão disponíveis apenas em regiões que já são mais bem servidas por transporte, inclusive com metrô.
Para o outro extremo dos usuários, os que têm carro, porém, o serviço de integração de transportes começa a fazer sentido. Mais da metade dos domicílios de São Paulo têm pelo menos um veículo. A questão é que o carro gera custos mesmo sem ser usado. Além do preço e da depreciação, há o seguro, o imposto obrigatório, as vagas de garagem, tudo para manter uma máquina que vai ser usada em menos de 4% do tempo.
Diante da oferta de novas linhas de metrô, da conveniência dos carros de aplicativo, corredores de ônibus, do crescimento das ciclovias e até da melhoria de calçadas, muita gente já está largando seu carro em casa. Com ou sem um serviço de assinatura de transportes, pode-se abrir mão do carro, pagar uma taxa mensal ou avulsa e acessar os serviços.
É interessante pensar no fim da ideia da posse do automóvel. Durante muito tempo, o carro era um verdadeiro passaporte para a cidade. São Paulo adotou esse modelo a partir da década de 1970. Os "com-carro" acessam marginais, minhocões, viadutos exclusivos e param na garagem dos shoppings. Os "sem-carro" que se virem a pé ou nos ônibus ruins em linhas irregulares. Mas, aqui, como em todo o mundo, isso está mudando.
Não é mais aceitável oferecer tanto espaço para um meio de transporte só, em detrimento dos outros. É uma mudança cultural que inclui rever hábitos e até a noção de que é preciso possuir um carro. Em vez de ter um automóvel, passo a ter acesso a um menu de transportes. Em vez de ficar discutindo modelos, potência, velocidades, em vez de me preocupar com estacionamento, simplesmente decido aonde ir e vou, de metrô, a pé, bicicleta, trem, e até carro. Não mais o meu carro, mas um meio compartilhado de solução de transporte. Falta muito para uma solução completa, mas a ideia é libertadora para o indivíduo e inspiradora para a cidade.
*Mauro Calliari é administrador de empresas e doutor em urbanismo, autor do blog Caminhadas Urbanas, professor e palestrante
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