Rua dos Trilhos, Quarta Parada, Rua do Tramway, Parada Inglesa, Ladeira Porto Geral, Parada de Taipas, ...Vários bairros e ruas de São Paulo ainda carregam as marcas dos modos e sistemas de transportes que fizeram sua história com barcas, tropas de mulas, carruagens, bondes de tração animal e trens.
Mas foi apenas em 1899, por meio da companhia canadense São Paulo Tramway Light & Power Company, que os capitais ingleses trouxeram a energia elétrica necessária para mover os primeiros bondes elétricos de São Paulo, uma rede de transporte que por volta de 1950 tinha centenas de quilômetros(1) e atendia a quase todas as regiões da cidade de então. O metrô foi proposto nos anos 1930, mas sua primeira linha somente foi iniciada tardiamente no final dos anos 1960, quando a cidade já reunia mais de cinco milhões de moradores. E sem trilhos, rendeu-se ao transporte sobre pneus. Surgiram as grandes obras viárias, para acolher mais e mais fuscas, romisetas, decavês, gordinis, galaxies e outras tantas marcas de carros que se reproduziam às pencas, além dos ônibus, que se tornaram a forma mais capilar de transporte urbano e permitiram a expansão da malha urbana paulistana. Naqueles anos, os ingênuos paulistanos acreditavam que São Paulo não podia mesmo parar.
Hoje, em 2022, a cidade de São Paulo conta com mais de 13 mil ônibus para sua circulação. Parece muito, mas cabe lembrar que o município tem uma área urbanizada de 950 km2 e sua população gira em torno de 12,3 milhões de habitantes, o que resulta em uma relação de um ônibus para cada mil habitantes. A frota total de veículos da cidade totaliza 8,9 mihões de unidades (Senatran, março de 2022), das quais mais de 7 milhões são carros e caminhonetes, e 1,3 milhão são motocicletas ou motonetas. Em resumo, cerca de 8,3 milhões de veículos destinam-se ao transporte individual motorizado, frota que simplesmente não cabe nos atuais 20 mil quilômetros de vias públicas.
A cidade é também centro de uma região metropolitana de 39 municípios, com uma área total de quase 7.946 km2 e área urbanizada de quase 2,4 mil km2 , onde vivem mais de 21 milhões de habitantes (IBGE 2020). Essas pessoas circulam entre os bairros e cidades para trabalhar, estudar, cuidar da saúde ou divertir-se, gerando uma demanda permanente de transportes: os gráficos de utilização dos sistemas de mobilidade da RMSP mostram uma sucessão de picos ao longo de todo o dia, em todos os dias úteis, tanto nos ônibus como nos sistemas sobre trilhos: metrô e trens urbanos.
Terminal Parque Dom Pedro, no Centro da cidade. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Antes da pandemia de Covid-19, a divisão modal (distribuição das formas de transporte utilizadas) na RMSP mostrava uma prevalência do transporte público, com 37% das viagens diárias, e um equilíbrio entre as pessoas que fazem seus deslocamentos a pé (31%) e de transporte próprio (31%), com uma pequena, mas crescente participação do uso da bicicleta, especialmente nas áreas dotadas com melhor infraestrutura para a segurança dos ciclistas.
Bicicletas e ciclovias
No município de São Paulo, conforme dados da prefeitura da capital, há exatos 663,1 km de ciclovias e ciclofaixas, além de 2.700 bicicletas para compartilhamento, parte delas já dotadas de motores elétricos. Essa infraestrutura estimulou, de fato, o uso da bicicleta na cidade, tanto para os deslocamentos como para as entregas de porta a porta, embora a rede cicloviária ainda sofra pela falta de algumas conexões, o que obriga as pessoas a pedalarem alguns trechos no asfalto, em meio ao trânsito.
Há também problemas com a limpeza e manutenção das ciclovias, como buracos, falta de tampas em caixas de serviços, além do desgaste nas pinturas e tachões de demarcação das faixas. Em alguns locais, mesmo nas proximidades do Centro, as ciclofaixas estão envelhecidas, ocupadas por entulhos e até por barracas de pessoas em situação de rua. E, além disso, algumas ciclovias foram instaladas em avenidas de trânsito agressivo, de acesso difícil para os ciclistas, o que acaba afastando mulheres, crianças e pessoas mais idosas.
De qualquer forma, com idas e vindas, avanços e retrocessos, a cidade de São Paulo tem avançado no estímulo ao uso da bicicleta. O Plano Cicloviário do Município persegue a meta de implantar 1.800 km de ciclovias até 2028, incluindo pontes, passarelas e outras obras. Em relação às bicicletas compartilhadas, a meta prevê o atendimento de 60% do território até 2024 e a todo o território do município até 2028.
Outro aspecto interessante - melhorado durante a pandemia - é a possibilidade de integração da bicicleta com o sistema de transporte de massa, seja por meio de bicicletários instalados em terminais de ônibus e estações de trem ou de metrô, seja pela possibilidade de transportar bicicletas em ônibus e trens, em horários de menor fluxo de passageiros.
Estação da Luz, agora convertida em centro de conexão do metrô e trens urbanos. Foto: Mobilize Brasil
Trilhos urbanos
O metrô, que já foi um modelo de transportes públicos, tem perdido pontos na preferência dos moradores de São Paulo. Falhas frequentes, trens superlotados e problemas de segurança (assaltos e agressões nas estações e no interior dos trens) são sinais evidentes de que a Secretaria (estadual) de Transportes Metropolitanos não está conseguindo manter um padrão de qualidade nos quase 104 km de suas seis linhas. Outros 280 km de trilhos correspondem às sete linhas de trens urbanos, que atendem a municípios próximos à capital, com qualidade melhorada nos últimos anos, e agora prejudicada por falhas nas linhas 8 e 9, recentemente concedidas à iniciativa privada
Mas, problemas à parte, os paulistanos não têm saída. O metrô e os trens urbanos são as formas mais eficientes e rápidas de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo. Os dois sistemas são integrados, com tarifa de R$ 4,40, permitindo a circulação entre todas as linhas. São 5,3 milhões de passageiros transportados por dia no metrô e mais de 2 milhões de pessoas/dia nos trens urbanos. Os números referem-se a 2019, antes da pandemia de Covid-19, e devem subir nas próximas medições, com a abertura de novas estações na Linha 4 - Amarela e no Monotrilho da Linha 15 - Prata. A cidade espera ainda a conclusão da Linha 17 - Ouro, na zona sul, e da Linha 6 - Laranja, na zona norte, ambas muito atrasadas.
Ônibus, o transporte mais capilar
Presente em todas as regiões da cidade, o transporte por ônibus é o mais capilar e acessível na cidade, com uma média de 10 milhões de passageiros por dia que pagam a tarifa básica de R$ 4,40 e R$ 7,65 para o bilhete de integração com o metrô e trens urbanos.
O maior problema do sistema de transporte em ônibus é a sua baixa confiabilidade em relação aos tempos de viagem. Se nas áreas mais centrais os coletivos circulam com relativa liberdade em faixas e corredores exclusivos, nos bairros periféricos é comum que esses veículos fiquem à mercê das centenas de pontos críticos do trânsito, com vários pequenos congestionamentos ao longo do trajeto. Desta forma, explica-se que parte dos passageiros tenha migrado para os carros por aplicativos, carros próprios ou para as motocicletas e bicicletas.
O Plano de Mobilidade de São Paulo (PlanmobSP) aprovado em 2015 prevê a constituição de uma rede com 1.460 km de vias dotadas de faixas ou corredores exclusivos para o transporte público até o ano de 2032. Conforme dados da prefeitura, hoje a cidade conta com 680 km de corredores e faixas para os ônibus.
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Calçada na rua Vergueiro, na região da avenida Paulista... e na rua Paulo Eiró, no bairro de Santo Amaro. Fotos: Mobilize |
Um dos maiores desafios para a capital e sua região metropolitana é a constituição de uma rede de circulação para pedestres, já que pelo menos 31% dos deslocamentos diários são feitos a pé. Em 2019, nas avaliações de caminhabilidade para a Campanha Calçadas do Brasil, a cidade de São Paulo ficou com a nota 6,93 (de zero a dez), um resultado mediano, produto de obras realizadas para a melhoria de calçadas em alguns eixos importantes de circulação. A prefeitura já vinha recompondo passeios em todas as regiões do município desde 2010, mas somadas, essas faixas caminháveis ainda estão muito abaixo do necessário. Além disso, algumas pontes, viadutos e avenidas são praticamente intransponíveis para pedestres e pessoas com deficiência. Funcionam como muros que dividem bairros.
Pedestres enfrentam ainda o problema de semáforos que demoram muito tempo para abrir e que rapidamente (após alguns segundos) passam para uma irritante fase de vermelho piscante, obrigando as pessoas a correrem para completar a travessia das ruas. Há também o problema da segurança viária, por conta do excesso de velocidade e da prática cada vez mais comum de condutores que desrespeitam o sinal fechado. Todas essas dificuldades explicam a preferência dos paulistanos pelos automóveis mesmo em trajetos curtos, de um ou dois quilômetros, que poderiam ser feitos a pé. Enfim, os carros são vistos como instrumentos de defesa pessoal em uma cidade cada vez mais hostil.
Não por acaso, na última segunda-feira (20), a Prefeitura de São Paulo anunciou o início de um programa para o recapeamento asfáltico em dez avenidas da cidade. O plano é reciclar o revestimento asfáltico em 5,8 milhões de metros quadrados de ruas e avenidas, uma extensão de aproximadamente 230 km, com o investimento de 1 bilhão de reais. O objetivo é reduzir os transtornos aos motoristas, que têm reclamado muito dos solavancos e danos provocados pelas imperfeições das pistas, mas também reduzir a possibilidade de sinistros de trânsito nas avenidas de maior movimento.
Ela desistiu do carro, tentou o metrô, mas ficou com a bicicleta
Jackeline Melo, parceira do Mobilize em São Paulo. Foto: Acervo pessoal
Para buscar um olhar mais pé-no-chão da mobilidade paulistana, entrevistamos Jackeline Melo, que atuou como nossa parceira voluntária nas avaliações realizadas em São Paulo para o Estudo Mobilize 2022. Graduada em arquitetura e urbanismo (UnG, 2002), especialista em gestão ambiental pela Faculdade de Saúde Pública (USP, 2004), ela é desde 2001 funcionária da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). No momento, Jackeline atua como assessora técnica na Secretaria de Mobilidade e Trânsito (SMT), além de ser mãe, cuidadora de pets e entusiasta do ciclismo urbano. Leia a entrevista.
Como você costuma se deslocar na cidade?
Sou uma pessoa urbana na essência e sempre morei no centro de São Paulo, mas há nove anos me mudei para o município de Caieiras [RMSP] e isso me fez rever minha forma de deslocamento. Comecei com o carro, pois trabalho no Centro de SP, mas logo desisti de perder quatro horas diárias no trânsito: migrei para o trem e metrô por algum tempo e há mais de quatro anos resolvi encarar o trajeto Caieiras-Centro de São Paulo de bike. Pedalo cerca de 75 km por dia (ida e volta). É um percurso desafiador, seja pela altimetria elevada ou pelo trajeto mesmo, por que passa por várias rodovias, pela Marginal Tietê até a ponte da Casa Verde. Normalmente venho acompanhada de um amigo que mora em Franco da Rocha, e faz 85 km de bicicleta diariamente. É bem difícil fazer esse trajeto, que exige muita experiência, cautela, domínio e também sorte nessas estradas e avenidas de São Paulo.
Como foi participar das avaliações para o Estudo Mobilize em São Paulo? Qual é a sua percepção geral sobre a mobilidade na cidade?
Foi muito interessante porque pude sentir de verdade a carência de infraestrutura para percursos "diferentões", como é o meu. No centro expandido de São Paulo encontro o melhor dos mundos, dentro do possível, claro. Mas, chegando nas franjas da cidade, e na minha cidade, Caieiras, nem calçada eu tenho para andar a pé. Vivo isso todos os dias, mas só construi essa percepção quando registrei as informações para o estudo do Mobilize.
E as tarifas? Elas são adequadas para a renda média das pessoas que vivem da cidade e arredores?
As tarifas em São Paulo eu considero justas, porque os deslocamentos são grandes. O metrô e o trem urbano têm boa qualidade e frequência, mas no horario em que eu usava, são muito desconfortáveis porque tem gente demais. Já em Caieiras a situação é bem precária e o valor da tarifa, de R$ 5, é exorbitante. Além disso, temos que esperar 40 minutos por um ônibus.
Em relação a pedestres, sabemos que ainda há enormes obstáculos para quem deseja simplesmente caminhar ou andar em cadeiras de rodas. Houve algum avanço recente para melhorar a caminhabilidade na cidade?
Tenho visto algumas ações importantes, como avanços em calçadas, aumento do tempo de semáforos, rotas para deficientes visuais com botoeiras sonoras, além de ações de acalmamento de tráfego e de urbanismo tático. Em breve, teremos a remodelação de alguns terminais de ônibus, para trazer mais acessibilidade e conforto aos passageiros com mobilidade reduzida. Acredito que avançamos, ora a passinhos lentos, ora a passos maiores.
E para pedalar, temos futuro?
Quando um gestor público cria ou aperfeiçoa uma infraestrutura, os ciclistas passam a usar e a prefeitura como um todo busca aumentar e qualificar as ciclovias existentes e as futuras. Eu acredito que não estamos parados - muito se tem a fazer, mas estamos caminhando.
Em uma cidade com 12 milhões de habitantes, em uma região metropolitana com quase 8 mil km2 , onde vivem mais de 21 milhões de pessoas, é possível pensar em reduzir o uso do automóvel?
Sim, e vou responder a partir de minhas três perspectivas. As pessoas que moram perto de seus locais de trabalho e têm uma certa infraestrutura para se deslocar, caso se sintam confortáveis e seguras para tentar outras alternativas além do carro podem se surpreender e gostar da mudança.
As pessoas que moram mais longe, como eu, e julguem ser possível trocar o carro pela bike, desde que considerem todos os fatores de segurança, poderão encontrar na bicicleta uma opção prazerosa e muito econômica.
Por fim, como funcionária do poder público, acredito que o estímulo maciço, com a oferta de boa infraestrutura, benefícios aos trabalhadores que usem modos sustentáveis de transporte podem ser bons motivos, além dos pessoais, para que as pessoas deixem seus carros em casa. Mas esses incentivos precisariam ser estudados e implementados, porque não basta vislumbrar que as pessoas irão deixar o conforto de seus carros por uma alternativa duvidosa, e talvez mais desconfortável.
Se você fosse a prefeita da cidade, que medidas adotaria para aperfeiçoar a mobilidade na linha da Política Nacional de Mobilidade? E como você começaria essa mudança?
Acredito muito na participação popular: quando ouvimos os desejos e necessidades dos outros podemos entender realidades que às vezes nem imaginamos. E na área da mobilidade urbana não é diferente. Então, eu continuaria estimulando a participação popular nas câmaras temáticas e conselhos participativos, aumentaria o efetivo de técnicos nos organismos de planejamento, de projeto e implantação, e estudaria a possibilidade de parcerias com diversos setores da economia para alavancar a mobilidade ativa. Também investiria na pesquisa e na manutenção de novas estruturas para a mobilidade ativa.
Ponte móvel para pedestres e ciclistas, na zona sul de S. Paulo. Foto do acervo do arquiteto Roberto Loeb, autor da obra. Bicicletas e barcas de carga apontam para um futuro talvez mais sustentável na capital paulista
Notas:
(1) Os dados sobre a extensão das linhas de bondes de São Paulo são imprecisos. Algumas fontes citam um total de 350 km, outras indicam 500 km e até 700 km de trilhos.
(2) A equipe do Mobilize Brasil contatou e enviou pedidos de entrevistas à Prefeitura de São Paulo e também à Secretaria de Transportes Metropolitanos. Nesta, ficamos sem resposta por conta da mudança na direção da pasta, a quem voltaremos a encaminhar a pauta. A Prefeitura não havia respondido à demanda até o fechamento deste texto, mas enviou, posteriormente, mensagem com suas visões, publicadas no dia 22/6 à noite (leia aqui). Uma ferramenta interessante para acompanhar a evolução dos modos de transporte no município de São Paulo é o painel Observatório Mobilidade Segura, lançado em 2020 pela prefeitura. O site contém mapas com as principais infraestruturas de mobilidade urbana disponíveis no território, como as estações de metrô e trem; terminais urbanos de ônibus; corredores de ônibus; faixas exclusivas de ônibus, frotas de ônibus, rede cicloviária e uma série de outras informações, atualizadas até março de 2022.
Este texto integra o trabalho de preparação do Estudo Mobilize 2022, um levantamento da mobilidade urbana nas 27 capitais brasileiras que está sendo realizado pelo Mobilize Brasil.
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