Cidades do mundo todo já entenderam a urgência de adotar políticas de mobilidade que privilegiem a sustentabilidade, em vez de insistir em velhos modelos só preocupados com o fluxo de veículos nas ruas. No Brasil, esse movimento também ganha adeptos, mas lentamente, e muitos gestores ainda dissipam verbas públicas em obras como abertura de grandes avenidas e megaestruturas viárias, que se tornam "não lugares" onde pedestres e ciclistas não têm vez.
Com 868.075 habitantes, ocupando uma área urbana de 219,89 km2, Teresina é uma dessas cidades que ainda não "virou a chave" da mobilidade urbana. O que se vê na capital do Piauí são espaços públicos não valorizados, transporte coletivo caro e mal mantido, falta de políticas para os modos ativos de deslocamento, e a não participação popular nas decisões administrativas.
Apesar de a população teresinense manter um "vínculo afetivo" com a bicicleta (veja na entrevista abaixo), a cidade conta apenas com mal cuidados 57,5 km de malha cicloviária (MobiliDados 2020), não dispõe de programa de bicicletas compartilhadas e, além do transporte sobre pneus - inclusive o clandestino de passageiros - não investe em sistemas como trem, VLT ou o hidroviário. Há uma linha de metrô, que ganhou usuários nos anos da pandemia, mas o sistema não é valorizado e não há planos para sua ampliação.
Revelador dessa difícil situação é o plano de mobilidade urbana: elaborado em 2008, o documento - de cunho rodoviarista - aguarda revisão e até hoje só teve uma única audiência pública no ano passado, mas esvaziada, porque quase não houve divulgação, e sem prosseguimento.
A essa audiência esteve presente o coordenador do Estudo Mobilize 2022 em Teresina, o arquiteto e urbanista Luan Rusvell. Ativista do movimento popular pelo direito à moradia e à cidade, Luan participou da construção do movimento "ContraoAumentoTHE", e integra a comissão técnica da Auditoria Popular do Transporte Público Piauiense. Nesta entrevista concedida ao Mobilize, o arquiteto - que há 12 anos utiliza basicamente a bicicleta em seus deslocamentos - faz uma análise crítica completa da mobilidade urbana em Teresina.
Luan Rusvell fala na Câmara sobre plano de mobilidade. Foto: Reprodução/YouTube CMT
Como foi a experiência de fazer as avaliações para o Estudo Mobilize 2022?
Foi interessante usar os parâmetros do Estudo para avaliar a qualidade dos modos de transporte de Teresina; exigiu um outro olhar sobre a forma como as pessoas se deslocam pela cidade, atento a questões que muitas vezes parecem pouco relevantes, mas que acabei percebendo como fundamentais. Por exemplo, o índice de ruído nas vias. Fiquei surpreso de ver o quanto precisamos avançar em acessibilidade, e que conforto térmico é uma necessidade urgente em Teresina.
Em relação ao plano de mobilidade urbana, em 2008 a cidade elaborou um planejamento, por meio de consultoria externa, para atualizá-lo por volta de 2019. Como foi o processo de elaboração desse documento? O PMU já foi aprovado como lei municipal?
Não participei da elaboração do Plano, nem tenho lembrança da realização de atividades referentes à participação da população na época, embora fosse estudante secundarista e utilizasse o transporte público diariamente. Conheci o PMU na graduação em Arquitetura e Urbanismo, e pude então comprovar diversas falhas de elaboração do documento, principalmente quanto às metodologias de participação e decisão popular. Na verdade, os resultados apresentados são puramente técnicos e projetam um sistema de mobilidade urbana que ainda privilegia muito o transporte motorizado. Nas duas últimas décadas, o PMU foi utilizado para fundamentar a construção de grandes obras rodoviárias na cidade, como a construção de viadutos, grandes avenidas e pontes. E pouca atenção foi dedicada ao transporte sustentável.
Pode dar algum exemplo nesse sentido?
Prova disso é o sistema de transporte público, o Inthegra1, projetado em 2008, cujas obras se arrastaram por muitos anos, ainda não foram totalmente concluídas e hoje parte dessa infraestrutura está sem uso e sucateada. Quando investigamos mais a fundo os motivos para esse fracasso na implantação de um sistema que prometia revolucionar a mobilidade na capital, a resposta é uma só: o projeto não atendia àquilo que a população queria.
Mas, e neste momento, como está sendo feita a revisão do Plano?
O PMU está em fase de atualização e temos tentado impedir que seja aprovado sem a devida consulta popular, já que não foram realizadas audiências e tentou-se empurrar o projeto em plena pandemia. Há muitos problemas na forma como o Plano está sendo elaborado; por exemplo, o município se nega a coletar dados de raça das pessoas que utilizam os diversos modais de transporte, na estratégia de não fundamentar as denúncias de racismo das políticas da atual gestão. A luta hoje é para as audiências públicas sejam realizadas com ampla participação popular, para que não se cometa os mesmo erros do Plano elaborado em 2008.
Mas qual é a sua percepção geral sobre a mobilidade em Teresina?
Vivo na capital com o maior índice de motorização2 do Nordeste, e minha percepção é de alguém que sofre as consequências disso, assim como toda a população teresinense. A obsessão dos gestores municipais por um modelo de cidade "moderna" fez de Teresina um lugar em que o carro sempre tem preferência, inclusive sobre as calçadas. Transporte coletivo e não motorizado nunca foi uma prioridade, portanto a oferta desses modos está bem longe de ser considerada boa. Os mais de R$ 400 milhões investidos na implantação do sistema Inthegra nos últimos 15 anos, que prometia operar o transporte coletivo como artéria central de uma rede integrada de mobilidade urbana, é um exemplo: o que a princípio pareceu uma verdadeira transformação na forma de se deslocar, revelou-se uma obra politiqueira e sem compromisso com a boa mobilidade urbana.
Taxa de motorização nas capitais nordestinas 2000-2019 Fonte: Luan Ruswell com dados do IBGE e Denatran2
Teresina tem um sistema metroviário operado pela CBTU. Como está a operação dessa linha? Ela atende às demandas de transporte da cidade?
Embora muito subestimada, a linha do metrô de Teresina cumpre um papel fundamental na mobilidade dos teresinenses, principalmente para quem vive na zona sudeste da capital. Em meio à pandemia, e na crise do transporte público que afeta o país, houve um aumento de 50% no número de passageiros do metrô, que conseguem ter acesso a um transporte relativamente bom, ágil e com uma tarifa acessível no valor de R$ 1,00. Com certeza é um modelo que poderia ser expandido para toda a cidade e região metropolitana, mas esse projeto não é levado a sério pelo poder público.
A cidade fica às margens do Parnaíba. Há alguma possibilidade de um sistema de transporte hidroviário, de passageiros ou de cargas?
Aqui temos apenas um tipo de linha de transporte hidroviário, a que faz a travessia em pequenas barcas da cidade de Timon (MA) para Teresina. A estrutura é bastante precária e não há fiscalização ou qualquer investimento do município. A tarifa de R$ 2,50 é convidativa e o fluxo de passageiros é constante. Embora vários estudos apontem a viabilidade do transporte hidroviário em Teresina, os projetos nunca passaram de promessas de campanha e nunca houve qualquer investimento público para isso se tornar uma realidade.
Voltando aos ônibus: a capital - como muitas cidades brasileiras - sofreu problemas com a paralisação do transporte coletivo. Como está este cenário hoje?
A situação permanece difícil e a crise se arrasta. Desde o decreto de "estado de calamidade pública", que suspendeu o transporte público em março de 2020, o sistema não voltou a funcionar completamente. Uma CPI do transporte público foi realizada pela Câmara Municipal e revelou um esquema de corrupção e enriquecimento ilícito envolvendo gestores públicos e empresários. A CPI, que parecia um ultimato para a solução do transporte público, corre o risco de "acabar em pizza" e virou um nó jurídico-administrativo sem fim.
A realidade hoje é de aproximadamente 40%-50% da frota circulando em horários de pico; fora desses períodos, após às 20h e nos finais de semana e feriados a frota não chega a 20%. Quem continua sofrendo com isso é a população que depende dos ônibus e os trabalhadores do sistema, dos quais 50% foram demitidos nos últimos dois anos.
Parte do transporte coletivo da capital é atendido pelos “ligerinhos”, carros e vans clandestinas que fazem linhas das periferias ao centro a um custo de R$ 5,00 e que se desdobram para fugir da fiscalização da STrans. As negociações por uma solução são feitas somente entre Prefeitura e empresários. Usuários e trabalhadores do sistema em nenhum momento foram consultados.
"Ligeirinhos" rodam de forma irregular em áreas abandonadas pelas empresas de ônibus. Foto: Luan Rusvell
Em relação às tarifas, elas estão adequadas para a renda da cidade?
O movimento popular em defesa do transporte público de Teresina tem uma prioridade em suas pautas: a tarifa. Em 2011 Teresina foi palco do maior movimento em defesa do transporte público da capital. Depois de vários dias de protesto, essa mobilização conseguiu pela primeira vez revogar o aumento da tarifa. Desde então o movimento #ContraoAumento tem buscado diálogo com o poder público para discutir uma política tarifária justa, mas sem resultado. Hoje pagamos R$ 4,00 na passagem; recentemente a prefeitura apresentou um cálculo do novo reajuste que diz que o sistema de transporte só se mantém a uma tarifa de R$ 6,40.
Reajustes na tarifa do transporte não param de ser anunciados todo dia em várias cidades do país... Em Teresina, qual a situação da população caso haja um aumento dessa ordem?
No início da pandemia Teresina já tinha a quarta maior taxa de desemprego entre as capitais (15,20%); 35% da população vivia em situação de pobreza ou extrema pobreza (IBGE/PNAD 2019). A situação piorou muito durante a pandemia. Sabemos o quanto R$ 4,00 fazem falta no dia a dia do povo, e que pagar pelo transporte público não é uma opção. Já nos estudos do Plano Diretor de Transportes e Mobilidade Urbana de 2008, os números apontavam para um alto índice de pessoas em situação de “imobilidade” (31,9%), ou seja, que não se deslocavam pela cidade por falta de condições financeiras ou porque não eram atendidas pela rede de transporte público. Não é por falta de estudos técnicos; o que acontece em Teresina é um projeto de higienização social que ataca a população periférica preta, e as mulheres; a mobilidade urbana tem servido de instrumento para esse projeto.
O sistema de transporte público de Teresina é estruturado em uma rede que sirva às populações dos bairros mais pobres da cidade? Há linhas de ônibus em quantidade que faça a conexão periferia-centro, contando com benefícios como a integração física e/ou tarifária? Comente, por favor.
A realidade hoje é que quem mora na periferia e tem compromissos a serem resolvidos com hora marcada não aguarda pelo transporte público. As periferias têm buscado suas alternativas de transporte por conta própria, e os “ligeirinhos” são prova disso. A bicicleta também tem sido fundamental para garantir o deslocamento dessas pessoas. O grande aumento de motocicletas circulando nas ruas é também consequência disso.
Com a paralisação do sistema Inthegra, a integração física está suspensa e a tarifária é ineficiente. O modelo de mobilidade urbana que foi e continua sendo implantado em Teresina jamais irá considerar a realidade de quem vive nas periferias, até porque essas pessoas nunca foram consultadas.
Vamos falar de mobilidade ativa: houve alguma evolução na infraestrutura para pedestres e ciclistas? Especialmente para você, que é ciclista: como estão as ciclovias de Teresina?
Em 2015 foi elaborado o Plano Diretor Cicloviário de Teresina, em parte um bom projeto, mas que não saiu do papel. Não havia intenção do poder público de executar o que previa o Plano, tanto é que nem mesmo passou pela Câmara Municipal, não virou lei. Logo depois, entre 2015 e 2017, vivemos o maior retrocesso na mobilidade sustentável da cidade, quando, por conta da construção de novos corredores de ônibus do sistema Inthegra e na opção por não diminuir o espaço dos carros, a Prefeitura, de uma vez só, destruiu 10 km de ciclovias da cidade. Nesse mesmo período foi preciso fazer uma grande luta popular contra a destruição do principal corredor de pedestres e ciclistas de Teresina, o canteiro central da avenida Frei Serafim, onde a prefeitura queria implantar estações de ônibus, contra a vontade da população. Nos últimos anos, enquanto a Prefeitura investiu R$ 50 milhões anuais somente com asfaltamento de vias na cidade, em 2021 anunciou um projeto de R$ 3,6 milhões na construção de 22 km de ciclovia, cujo projeto não foi discutido com a população. Pior, as obras não contemplam as prioridades dos ciclistas. Hoje temos uma rede cicloviária em condições mínimas de uso de aproximadamente 15 km, embora a Prefeitura contabilize 41,8 km, incluindo os canteiros centrais de avenidas sem a mínima infraestrutura para o tráfego de bicicleta3.
Prefeitura de Teresina destruiu 10 km de ciclovias para abrir espaço ao trânsito motorizado. Foto: Luan Rusvell
E a caminhabilidade na cidade, a gestão pública avançou nessa área? As calçadas têm boa arborização, sinalização, segurança?
A Campanha Calçadas do Brasil 2019 apontou Teresina como a 6ª pior do país na infraestrutura para pedestres. Acredito que esse resultado serviu de pressão para o poder público avançar nas obras de reforma das ruas do centro histórico, mesmo sendo ainda pontuais e contemplando poucas vias. São aproximadamente R$ 12 milhões investidos em “ruas completas”, que têm dado mais segurança e conforto para os pedestres, mas ainda sem incluir ciclistas. Esse projeto pode ser o início de uma transformação na caminhabilidade do centro, pois inverte as prioridades nas ruas e dá mais qualidade de vida aos pedestres. Mas isso por si só não resolve o enorme problema de excesso de veículos na área central, que, sem fiscalização, continuam desrespeitando e ocupando o espaço que deveria ser dos pedestres. A Lei de Calçadas é "letra morta" e não vemos avanços na prática. Há muitos anos se fala na elaboração de um Plano de Arborização de Teresina, que nunca aconteceu, portanto não há nenhum documento que oriente a arborização urbana e que fundamente políticas públicas nesse sentido.
Sem fiscalização, as calçadas "pertencem" aos carros. Foto: Luan Rusvell
Dados de 2005 (PMU) indicavam que a cidade tinha muitos sinistros de trânsito com motos e bicicletas. Essa situação melhorou?
Esse é, com certeza, nosso maior problema na mobilidade de Teresina. Dados do Denatran de 2019 mostram que a cidade está em 1º lugar no ranking entre as capitais no índice de motocicletas: são aproximadamente 1 moto para cada 4 habitantes. Entre 2010 e 2020 houve uma redução de 63% no número de passageiros do transporte público. Para onde essas pessoas foram? A grande maioria migrou para as motos e bicicletas, por serem mais econômicas e mais ágeis que os ônibus. Sem política de segurança no trânsito, o número de acidentes aumentou proporcionalmente. Em 2019, a prefeitura de Teresina comemorou o fato de o principal hospital do município ter sido considerado a maior referência em cirurgia de fratura de face do país. O que levou a essa excelência? O grande número de acidentes de trânsito, envolvendo principalmente motociclistas - 85% dos pacientes cirurgiados são vítimas da violência do trânsito. As pessoas que perdem a saúde e muitas vezes a vida devido a esse tipo de violência são, na maioria, homens negros e que vivem nas periferias; são trabalhadores e pais de famílias que muitas vezes ficam com sequelas para o resto da vida. O poder público tem esses dados e nada faz, por isso acredito que o que vivemos é um projeto de higienização da população economicamente mais pobre de Teresina.
Quais os principais pontos positivos na mobilidade em Teresina? E os pontos mais negativos?
De positivo, vejo que é uma cidade onde as pessoas têm amor pela bicicleta, é uma ligação cultural. Quando da migração do campo para a cidade, a população de hábitos rurais trocou seu jumento por uma bicicleta para se deslocar na cidade. Existe um elo afetivo. Mesmo com todas as dificuldades, é incrível a quantidade de pessoas se deslocando de bicicleta pelas ruas. Com a infraestrutura adequada e com respeito por quem pedala, tenho certeza que Teresina poderia ser a capital nacional da bicicleta.
De negativo, temos a infelicidade de historicamente ter na gestão municipal políticos que atuam em defesa da “carrocracia” e que transformaram as ruas da cidade em uma zona de guerra, sem piedade com os mais fracos. A violência do trânsito realmente é algo que me assusta e que sinto na pele diariamente.
Calçadões do centro, sem fiscalização também, viram estacionamentos. Foto: Luan Rusvell
Notas:
(1) Inthegra é o sistema de Bus Rapid Transit (BRT) de Teresina, inaugurado em 2016; desde 2020 o sistema está paralisado, e por seus corredores voltaram a circular as antigas linhas radiais (bairro-centro) de ônibus.
(2) A taxa de motorização de Teresina foi aferida em 2019 por Luan Ruswell para seu trabalho de conclusão de curso Plano de Mobilidade Ativa para Integração Intermodal ao Sistema de Transporte Coletivo: uma Proposta para a Zona Norte de Teresina. Agora, conforme dados da Senatran (março de 2022) a frota da capital piauiense está em torno de 540 mil veículos motorizados. Destes, 284 mil são carros e caminhonetes e 222 mil são motos e motonetas, totalizando cerca de 506 mil veículos para o transporte individual, o que indica taxa de motorização de 581 veículos por mil habitantes. Para comparação, a média brasileira em 2020 era de 471 veículos por mil habitantes (Denatran/IBGE).
(3) Dados levantados em 2020 pelo ITDP MobiliDados indicavam uma extensão total de 57,5 km de ciclovias.
Observação do Mobilize Brasil: A equipe do Estudo Mobilize 2022 envidou todos os esforços para conseguir obter dados e informações sobre a mobilidade urbana com a Prefeitura de Teresina, inclusive recorrendo à Lei de Acesso à Informação (LAI). Infelizmente, a Prefeitura não respondeu às várias mensagens e tentativas de contato.
Este texto integra o trabalho de preparação do Estudo Mobilize 2022, um levantamento da mobilidade urbana nas 27 capitais brasileiras que está sendo realizado pelo Mobilize Brasil.
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