Banhada pelo mar e pelo emblemático rio Capibaribe, ligada por várias pontes, a cidade do Recife é agraciada por uma deslumbrante paisagem urbana onde ainda se destacam fortes, igrejas e o casario histórico de traço holandês. Esse o Recife Antigo do cartão postal que temos na memória.
A cidade mítica descrita acima é somente uma parte do território de 217 km2 do município, onde vivem cerca de 1,6 milhão de pessoas. E a capital é o centro da região metropolitana de 2.770 km2, com 14 municípios: Araçoiaba, Igarassu, Itapissuma, Ilha de Itamaracá, Abreu e Lima, Paulista, Olinda, Camaragibe, Jaboatão dos Guararapes, São Lourenço da Mata, Moreno, Cabo de Santo Agostinho, Ipojuca e a própria capital.
No total, a Grande Recife tem uma população de mais de 4 milhões de habitantes que enfrentam diariamente uma série de dificuldades para ir e voltar do trabalho, estudar, fazer compras ou simplesmente passear, divertir-se. A boa nova é que o Plano de Mobilidade Urbana do Recife (PMU) foi aprovado em dezembro/2021 (Lei nº 18887, de 29/12/2021), com recomendações para o desestímulo ao uso do automóvel e o incentivo ao transporte público e aos modos ativos de transporte, bicicleta e caminhada.
A mobilidade dos recifenses é coordenada pela Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU), principal autoridade de trânsito municipal. A presidente da CTTU, Taciana Ferreira, explica que desde 2008 o transporte público na região metropolitana é administrado por um consórcio de municípios, o Grande Recife Consórcio de Transporte, que define uma única regra tarifária e o mesmo cartão para uso em ônibus e metrô.
Taciana Ferreira (CTTU). Foto: Daniel Tavares/PCR
A região tem duas tarifas de transporte, dependendo da área a ser percorrida. A legislação definiu dois anéis territoriais, com tarifa de R$ 4,10 no Anel A, e de R$ 5,60 no Anel B. Trata-se de um sistema estrutural integrado, com cinco tipos de linhas, permitindo que os usuários possam realizar baldeações entre as linhas de ônibus, pagando uma única tarifa por meio de um bilhete eletrônico, o Vale Eletrônico Metropolitano (VEM), explicou a executiva da CTTU. Essa bilhetagem eletrônica também está permitindo a identificação dos usuários e o mapeamento de seus trajetos com informações que serão aplicadas no planejamento futuro do transporte.
Sistema integrado
Taciana Ferreira lembrou também que a gestão municipal está realizando uma série de intervenções para garantir a circulação prioritária dos ônibus nas vias da cidade, além dos BRTs, que já operam desde 2014. Conforme sua entrevista, as faixas exclusivas para ônibus evoluíram dos 20 km (2013) para os atuais 67 km. "São faixas sinalizadas, implantadas à direita da via, e permitem que os ônibus façam conversões, medida que, segundo ela, melhorou a velocidade média dos coletivos. O tempo de viagem ainda é alto, mas estamos buscando melhorar. Implantamos as faixas exclusivas nas vias por onde passam mais de 40 ônibus por hora", justificou a presidente da CTTU.
"O perfil do sistema de transporte pode ser comparado à palma de uma mão aberta", resumiu Taciana Ferreira. "Os dedos sugerem as linhas radiais alimentadoras, que trazem as pessoas das localidades distantes para os terminais de integração, de onde as pessoas podem seguir para o centro ou deslocar-se entre os bairros por meio de linhas circulares que conectam os vários terminais e também as estações do metrô", explicou Taciana.
Parece perfeito, mas a colaboradora local do Estudo Mobilize, Luiza Bandeira (veja entrevista), explica que a integração nos terminais é bastante confusa e desconfortável nos horários de pico, e lembra que ainda não há integração tarifária com o metrô, que é operado pela empresa federal CBTU.
Ela conta a sua experiência pessoal com o sistema: "Em 2016, eu trabalhava em um local onde, para chegar, precisava pegar um ônibus até uma estação de metrô, e vivenciei bem os horários de pico nas estações de integração. E posso dizer que é uma grande bagunça. Seis horas da tarde, e não há sequer uma organização de fila na estação de integração! É muita, muita gente, e os ônibus lotados. Isso foi anos atrás, e de lá para cá muita coisa mudou; tivemos o fator da pandemia, que mudou os padrões de viagem, a demanda e a oferta. Mas as pessoas que precisam pegar o metrô diariamente me contam que essas estações de transferência ainda são caóticas", revela Luiza.
Ciclovias em marcha lenta
O Plano Diretor Cicloviário da Região Metropolitana do Recife prevê a implantação de 590 km de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas em todo o Grande Recife - 200 km só na capital - até 2024. Em entrevista ao Mobilize, Taciana Ferreira explica: "Em 2013 tínhamos 24 km de rede cicloviária no Recife e não havia plano diretor cicloviário, que foi aprovado em 2014. Hoje, temos 165 km de vias cicláveis, em sintonia com um plano metropolitano, ligando municípios e bairros, sob a gestão do governo do estado". Mais recentemente, como parte de uma rede complementar, foi publicada a licitação para a ciclovia norte-sul, na avenida Agamenon Magalhães, que será realizada em conjunto com governo do estado, e conectará 15 bairros da cidade. Outro corredor previsto no Plano é o da avenida Caxangá, no sentido leste-oeste.
Por ora, ciclofaixa de 1 km em trecho da via local da Agamenon Magalhães. Foto: Daniel Tavares/PCR
O plano soa ambicioso. No entanto, um levantamento recente da Associação Metropolitana de Ciclistas do Grande Recife (Ameciclo) mostra que apenas 20% do previsto foram implementados e alguns trechos, estratégicos, têm demorado excessivamente para sair do papel. É o caso da avenida Caxangá, palco da violenta morte do ciclista e trabalhador Flávio Antônio, em novembro de 2021, atingido pelo pneu de um carro que estava em alta velocidade. "Apesar da propaganda da gestão de João Campos [PSB] sobre a implantação de ciclofaixas pela cidade, a rede cicloviária ainda não leva o ciclista de sua região de moradia para as regiões de trabalho, concentradas no centro da cidade e na zona costeira. E não contempla as rotas que os ciclistas fazem no seu cotidiano”, afirma Vanessa Santana, uma das coordenadoras da Ameciclo.
A presidente da CTTU afirma que até o final da gestão (2024) a prefeitura pretende implantar "mais 100 km de vias para bicicleta", de forma a completar 175 km até 2024. Além das vias para bicicletas, a Grande Recife conta com um sistema de bicicletas compartilhadas, operado pela empresa Tembici, que atua em parceria com governo do estado e governos municipais, e tem apoio da Ameciclo na gestão do sistema. Taciana Ferreira lembrou, ainda, que os estudantes da rede pública de ensino que têm o bilhete "Vem Estudante" podem usar as bicicletas compartilhadas gratuitamente em toda a região metropolitana.
Ações em calçadas
Recife ficou com a média 5,92 (de zero a dez) na avaliação da Campanha Calçadas do Brasil, realizada pelo Mobilize em 2019, com locais ótimos, como a Orla da Praia de Boa Viagem, e também calçadas péssimas, como as encontradas no entorno do Hospital das Clínicas da UFPE. Na entrevista agora realizada, Taciana Ferreira explicou que a prefeitura decidiu chamar para si a conservação dos passeios, a partir do programa Calçada Legal, que vem reformando e mantendo essas vias para pedestres em toda a cidade, com recursos da Caixa Econômica Federal.
"Nos bairros, a qualificação das calçadas vem ocorrendo próximo a vias do transporte público, a partir dos grandes corredores de ônibus. Desde 2019, e agora consolidado, estamos implantando travessias mais seguras, com alargamento dos passeios, sinalização viária e balizadores. Além disso, desde 2020 temos uma parceria com a Iniciativa Bloomberg e a Nacto [em inglês, National Association of City Transportation Officials] para desenvolver ações de urbanismo tático, mobiliário urbano, balizadores, áreas de convivência, enfim, para melhorar as condições ao pedestre", completou Taciana. Como exemplos de resultados, ela cita o Largo da Paz, onde ocorriam 14 atropelamentos por ano, agora reduzidos a zero, e a requalificação da rua da Palma, na área central do Recife, com prioridade ao pedestre e ao transporte público. "O objetivo da CTTU é ampliar a qualificação das calçadas, e atingir a meta de 250 km de novas vias para pedestres", afirmou a executiva.
Ação de urbanismo tático perto de posto de doação de sangue (Hemope), no bairro Graças. Foto: Daniel Nigro/PCR
Segurança Viária
Recife conseguiu uma redução de 29% nas vítimas fatais de sinistros de trânsito entre 2017 e 2020, conforme o 1º Relatório Anual de Segurança Viária lançado em fevereiro pela prefeitura em parceria com a Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global.
Pedestres e motociclistas são as maiores vítimas, aponta o relatório de Redução de Vítimas Fatais, do Comitê Municipal de Prevenção de Acidentes de Trânsito. Apesar disso, os sinistros com mortes caíram de 154 (2017) para 117 (2019) e 109 (2020). "E em 2022 provavelmente esse número será menor. Credito a melhoria nesse índice a uma soma de ações, praticadas de forma sistêmica e concatenada, incluindo aí fiscalização eletrônica, engenharia e sinalização ostensiva, além da educação contínua dos condutores. Mas, lamentavelmente, é preciso dizer que algumas pessoas voltaram a praticar os 'rolezinhos' na cidade (torneios informais de velocidade)...", ressalva a diretora do CTTU.
A visão de quem circula pelo Recife
Entrevista com Luiza Bandeira, colaboradora do Estudo Mobilize 2022 na cidade do Recife
Luiza é engenheira civil, ciclista e trabalha hoje com projetos de paisagismo e acessibilidade. Foto: Arquivo pessoal
Como você costuma se deslocar na cidade?
O modo que mais utilizo é a bicicleta. Desde o início de 2020, com a pandemia, os riscos sanitários, troquei definitivamente o ônibus pelo pedal. Sei que falo de uma cidade relativamente pequena, compacta e plana, que é o Recife. E onde consigo me deslocar facilmente usando a bicicleta para todas as minhas atividades. Também é preciso dizer que moro em um bairro que dispõe de estrutura cicloviária, e onde não me sinto insegura em pedalar, mesmo à noite, mesmo sendo mulher.
Como foi sua experiência nas avaliações para o Estudo Mobilize?
Eu já usava o aplicativo Strava para os meus deslocamentos [o app foi adotado nas avaliações do Estudo] e tive apenas que atentar em tirar algumas fotos enquanto me deslocava, documentando os locais em que via algo de positivo ou negativo. Devo dizer que em um deslocamento com o propósito de avaliar o entorno, o olhar muda, e foi muito interessante, porque no meu dia a dia passei a ficar mais atenta ao que está correto e ao que está errado, o que pode melhorar... Realmente, deu um "estalo" no meu olhar para a cidade.
Quanto aos pedestres e ciclistas, como a mobilidade ativa vem sendo organizada pela prefeitura?
Como dizia, temos um plano diretor cicloviário com metas definidas para a expansão da estrutura cicloviária. Mas, o que vejo de fato é a implantação de ciclofaixas, que é o mais barato e fácil de se fazer, mas em áreas desconectadas da cidade. E creio que falta uma vontade efetiva de mudança de paradigmas, com projetos que realmente priorizem uma estrutura para esse transporte. Até temos na área central uma boa oferta de estrutura cicloviária; moro na zona norte, e aqui há ciclofaixas, mas que não se ligam entre si e aos eixos estruturantes da cidade. Isso seria, a meu ver, o mais importante para se ter. Aliás, para a Agamenon Magalhães, uma via que liga a zona norte à zona sul, saiu recentemente um projeto de ciclovia. Foi uma conquista! Em relação às calçadas de Recife, de modo geral são bem ruins. Gostei muito do programa Calçada Legal, que prevê calçadas mais largas, pavimentadas com blocos de concreto. Mas o programa está atendendo especialmente bairros como Casa Forte, Espinheiro, Jaqueira, que são os bairros mais nobres. Talvez seja o início do programa... Mas devo dizer que vejo sim uma clara mudança da gestão anterior para esta, na implantação de infraestrutura para pedestres e ciclistas.
Qual é a sua percepção sobre o sistema de bicicletas compartilhadas?
Eu utilizava e me atendia muito bem durante certo período de minha vida. Agora uso minha bicicleta própria. E há muitas estações em locais importantes, como a área central, perto de parques, de escolas. Mas ainda vejo esse sistema muito voltado para o lazer, porque é caro e não é todo mundo que consegue pagar...
O transporte coletivo tem prioridade na cidade?
O BRT veio à cidade na época da Copa, com a proposta de ser um metrô sobre rodas. O que temos de fato são essas faixas exclusivas, mas onde muitas vezes o ônibus tem que sair porque muitas obras não foram finalizadas. Muito se discute sobre a falência do sistema BRT no Recife, porque apenas em algumas áreas ele cumpre os requisitos básicos, de ser um ônibus de velocidade mais alta, em uma canaleta exclusiva. Então, como não cumpre essa função do início ao fim, o sistema não funciona. Também há muitas estações que sofrem vandalismo, e esse é um cenário real. Um ponto positivo do BRT é que, diferente dos demais ônibus, funciona com ar condicionado, um fator positivo para Recife, que é uma cidade muito quente.
As tarifas do transporte são adequadas para a renda da cidade?
Em fevereiro a tarifa subiu para R$ 4,10. No início as concessionárias queriam aumento de 22,67% mas, no final, o aumento ficou em 9,69%. Mas R$ 4,10 ainda é uma tarifa alta para o padrão social de Recife. Agora a prefeitura criou algo interessante, que é o horário social, que funciona das 9h às 11 h da manhã, e das 13h30 às 15h30. Quem tem o cartão tarifário VEM paga um real a menos, R$ 3,10. Mas, para muitas pessoas, o custo da tarifa pesa muito no orçamento final do mês. Outro problema é que, na conexão metrô-ônibus-trem, não há integração tarifária, e isso é crucial para que tenhamos uma integração efetiva dos transportes.
Veja um vídeo da Global Design Cities Initiative
sobre a intervenção de urbanismo tático realizada no Largo Dom Luiz
Veja também mais imagens de intervenções urbanas no Recife:
Esta matéria integra o trabalho de preparação do Estudo Mobilize 2022, um levantamento da mobilidade urbana nas 27 capitais brasileiras que está sendo realizado pelo Mobilize Brasil.
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