Conheça o Metrô de Kiev, abrigo de civis contra a guerra

População da cidade se refugia no metrô ucraniano, o terceiro construído pela ex-república soviética, que se destaca por profundas, impressionantes e belas estações

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Fonte: Folha de S. Paulo  |  Autor: Nabil Bonduki  |  Postado em: 28 de fevereiro de 2022

População usa estações do metrô de Kiev como abrig

População usa estações do metrô de Kiev como abrigo

créditos: Viacheslav Ratynskyi/Reuters

Leia a seguir o artigo "Metrô de Kiev, abrigo contra a guerra, é um legado positivo da opressão soviética", de autoria do arquiteto Nabil Bonduki*, publicado na coluna de hoje (28) do jornal Folha de S. Paulo:

 

São bem conhecidos os metrôs de Moscou e São Petersburgo (antiga Leningrado), construídos durante o regime soviético, por sua eficiência, extensão e imponência das estações, consideradas entre as mais belas do mundo.

 

Mas, até a "blitzkrieg" dos russos contra a Ucrânia na quinta-feira (24), poucos conheciam o metrô de Kiev, o terceiro a ser construído na União Soviética (URSS), assim como a arquitetura, o urbanismo e os mosaicos da capital ucraniana, em vias de ser ocupada pelo Exército russo.

 

Não é por acaso que algumas das estações de metrô de Kiev estejam servindo de abrigo de civis contra os horrores dos bombardeios e da guerra russa contra a ex-república soviética.

 

A mais espetacular é Arsenalna, a estação de metrô mais profunda do mundo, situada a 105,5 m de profundidade. Além de atender, a partir de uma colina, uma linha que cruza pelo subsolo o rio Dnieper, que tem até 400 m de largura, a estação pode ter sido concebida como refúgio de uma catástrofe nuclear, pois existiam soluções técnicas mais simples.

 

Embora possam haver razões topográficas e geológicas, a cara alternativa de construir estações profundas parece ter sido uma política deliberada do regime soviético durante a Guerra Fria, temendo um ataque nuclear.

 

As principais cidades da antiga URSS detêm as estações e as linhas de metrô mais profundas do mundo, equipadas com exaustores e medidores de radiação. Em São Petersburgo, não só por razões geológicas, foi implantada uma linha de metrô muito profunda, onde se situa a estação Admiralteyskaya, a 102 m abaixo da superfície.

 

Em Moscou, a estação Park Pobedy está a 84 m abaixo do nível do solo. Em Pyongyang, capital da Coreia do Norte, país que integrava a área de influência da URSS, a estação de Puhung, entre várias muito profundas, está a mais de cem metros da superfície.

 

Civis na estação Vokzalna, do metrô ucraniano. Foto: Daniel Leal/AFP

 

Para se ter uma ideia do que significam essas profundidades, a estação Paulista do metrô de São Paulo, com suas seis intermináveis lanças de escadas, está a 55 metros abaixo do nível do solo, a metade de Arsenalna, que, assim como Admiralteyskaya, tem imensas escadas rolantes.

 

Embora de discutível valor artístico, as monumentais estações de Kiev merecem ser conhecidas, o que só será possível, presencialmente, em um futuro incerto e se, após a guerra, os ucranianos não eliminarem em definitivo todos os símbolos e referências ao passado soviético, o que vem sendo feito desde o colapso da URSS e que certamente se intensificará se a Ucrânia mantiver sua independência.

 

A implantação de redes de metrô nas principais cidades da URSS foi uma prioridade do regime comunista que, além de atender uma necessidade urbana essencial e de impacto na qualidade de vida, construiu estações como monumentos de propaganda, com uma arquitetura que lembra um classicismo modernizado, com elementos art déco e uma decoração inspirada no realismo socialista.

 

Até sua dissolução em 1991, a União Soviética implantou redes de metrô em, pelo menos, 16 cidades. Um sistema de fazer inveja: Moscou tem 327,5 km e 196 estações, e São Petersburgo (uma cidade de 5 milhões de habitantes, 40% de São Paulo) tem 113 km e 67 estações.

 

O regime soviético construiu redes de metrô em quatro cidades ucranianas. Em Kiev, hoje com 2,9 milhões de habitantes, a rede de metrô tem 52 km de extensão e 50 estações. A recém-ocupada cidade de Carcóvia (Kharkiv), a segunda do país, com 1,4 milhão de habitantes, tem três linhas, com 38 quilômetros e 30 estações. 

 

Estação Minska, do metrô em Kiev. Foto: Metrô de Kiev/Divulgação

 

Kryvyi Rih, centro industrial com 650 mil habitantes, tem uma rede de 18,7 km e 15 estações. Já Dnipro (Dnipropetrovsk), com um milhão de habitantes, tem apenas uma linha, mas 5 de suas 6 estações estão a 70 metros de profundidade, reforçando a percepção de que a implantação do metrô tinha um claro objetivo defensivo.

 

Assim como em Moscou e Leningrado, o realismo socialista esteve muito presente em Kiev. Fundado sobre uma linguagem visual rígida e limitada, ele abrangia um espectro temático com cenas populares, paisagens rurais e urbanas, de atividades quotidianas do proletariado ou do Exército vermelho e retratos de personagens que o regime buscava exaltar, sempre expressando força física e poder.

 

O metrô de Kiev, que começou a ser construído em 1949, ainda expressa muito dos tempos soviéticos. Nas estações mais antigas, como Vokzalna ou Universytet, a presença do realismo socialista é mais forte, embora alguns símbolos com a foice e o martelo tenham sido retirados dos mosaicos.

 

Na estação Shulyavska, o mosaico representa uma fábrica e dois trabalhadores, com um deles segurando um machado, e o outro, um átomo, que simboliza a união entre o trabalho e a ciência. Já as estações construídas na década de 1980, como Minska, quando a crise política e econômica abalava a URSS, são mais simples e com uma linguagem mais moderna, com elementos art déco. 

 

Mosaico na estação Shulyavska, do metrô de Kiev. Foto: Metrô de Kiev/Divulgação

 

A estação Zoloti Vorota, considerada uma das mais bonitas do mundo, destaca-se. A partir de um saguão central circular, partem corredores com cobertura em abóbada e com passagens em forma de arco, que se assemelha a um palácio, como era comum nas estações soviéticas. Mas a decoração destoa do realismo socialista, pois os mosaicos lembram o estilo bizantino.

 

Na paisagem urbana de Kiev se destacam várias fachadas cegas de edifícios decoradas com mosaicos exaltando a revolução, a força e musculatura dos trabalhadores e a crença na ciência, representada pelo átomo. Não deixam de ter interesse artístico, como um mosaico em alto-relevo de 1980, um tanto afastado de uma linguagem de propaganda, que se sobrepõe a um interessante edifício modernista de esquina, ocupado pelo Instituto de Higiene e Ecologia.

 

Estação Zoloti Vorota, em Kiev. Foto: Metrô de Kiev/Divulgação

 

A presença de símbolos da URSS em Kiev, quando a arte era instrumento de propaganda de um regime que oprimiu a Ucrânia e que provocou um genocídio como o Holomodor, seria motivo suficiente para muitos quererem destruí-los. Questão que se relaciona com a remoção de monumentos de bandeiristas em São Paulo.

 

Como os protestos nacionalistas de 2013 e 2014, que derrubaram um governo aliado aos russos, também geraram murais e monumentos exaltando a chamada Revolução Laranja, essa questão poderá se recolocar, no sentido contrário, se um governo pró-Rússia se instaurar como um desdobramento da guerra.

 

As imensas redes metrô nas cidades soviéticas, embora fossem instrumentos de propaganda do regime e, talvez, pensadas também como refúgios de um ataque nuclear, deixaram um legado relevante que ainda hoje estruturam positivamente a mobilidade urbana nas principais cidades da Ucrânia.

 

*Nabil Bonduki é professor da FAU-USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

 

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