Em artigo, Eduardo Alcântara Vasconcellos faz algumas reflexões sobre o projeto-piloto da "faixa azul" para motocicletas, que está processo de avaliação na Avenida 23 de Maio, em São Paulo. Não é um texto conclusivo, porque a experiência está em curso, mas joga boas luzes sobre esse desafio urgente no trânsito brasileiro
A proposta da Prefeitura de São Paulo de implantar uma faixa na avenida 23 de Maio para uso das motocicletas - felizmente sem prejudicar a circulação dos ônibus - faz parte de um conjunto de medidas que procuram reduzir a quantidade e a gravidade de acidentes com motocicletas na cidade. Embora algumas ações anteriormente aplicadas não tenham atingido seu objetivo, esta nova iniciativa é pertinente, pois será implementada em uma via de grande importância na cidade, que permite um controle permanente do trânsito, podendo abrir o caminho para intervenções semelhantes em outras vias da cidade e talvez em outras localidades do país.
É necessário reduzir com urgência o enorme impacto negativo causado pela entrada em massa da motocicleta nas ruas, avenidas e rodovias brasileiras. Apoiada por uma política fiscal generosa do governo federal, a frota de motocicletas no Brasil aumentou de 1,5 milhão em 1990 para 17 milhões em 2012, sem a preparação necessária dos motociclistas e da sociedade em geral. Como consequência, entre 2000 e 2014 foram pagas 222.580 indenizações por mortes de motociclistas e 1,6 milhão de indenizações de motociclistas por invalidez.
Demoramos a impor limites aos abusos dos sistemas de entrega de pequenas cargas, que aumentaram em todo o país; demoramos a fiscalizar o limite de passageiros na moto e o excesso de velocidade, especialmente nas grandes vias urbanas e nas rodovias. Também não houve fiscalização rigorosa do uso de capacete, de roupas adequadas e do consumo de álcool pelos motociclistas.
Em todas as sociedades, sejam pobres ou ricas, a motocicleta é o veículo mais perigoso e frágil, estando associada a maiores cifras de mortes por número de veículos circulando ou por quilômetros rodados. Apesar do esforço feito em várias sociedades, poucas lograram reduzir os acidentes em grande escala. O problema central é que a motocicleta não tem um equipamento eficaz que possa proteger o condutor e seus passageiros; em caso de acidente, o veículo em si, e o corpo do motociclista e de outros passageiros recebem a energia cinética produzida pelo choque; ademais, os motociclistas têm dificuldade em ver os veículos que circulam por perto e não são vistos com facilidade pelos motoristas, sendo este o principal risco da nova faixa, que não é exclusiva e em vários momentos será cruzada pelos automóveis.
Assim, os usuários da motocicleta estão sempre em situação perigosa quando circulam em vias com veículos de grande porte, cujos condutores não conseguem ver o motociclista de forma adequada. Uma ação bem sucedida a este respeito foi a redução da velocidade de circulação nas Marginais Tietê e Pinheiros entre 2014 e 2015, por onde passam muitos caminhões de grande porte, e que levou à redução de 35,1% dos acidentes com vítimas e de 32,8% de todas as mortes (CET-nota técnica 247/2016).
Guardadas as proporções e as naturezas de dois fenômenos atuais, podemos fazer uma comparação com a pandemia em que vivemos há mais de dois anos: até janeiro de 2022 ocorreram 630.000 mortes pela Covid 19, e um número grande, ainda não calculado, de pessoas com sequelas. Todavia, enquanto o enfrentamento da Covid 19 passou a contar com a vacinação, que salvou um grande número de pessoas e reduziu as ocorrências mais graves, as condições dos motociclistas continuam precárias. Talvez, pensando de forma otimista, a "faixa azul" possa ser uma vacina para reduzir o morticínio de motociclistas.
*Eduardo Alcântara Vasconcellos é engenheiro, sociólogo, doutor em Ciência Política (políticas públicas) pela USP e pós-doutor em Planejamento de Transportes pela Cornell University. É autor de vários artigos, pesquisa e livros sobre o tema, com destaque para "Risco no trânsito, omissão e calamidade - Impactos do incentivo à motocicleta no Brasil (Editora Annablume, 2016).
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