O vínculo empregatício e a subordinação aos algoritmos dos aplicativos
O ano de 2021 encerrou com a intensificação de um debate que precisa ser pacificado pelo Judiciário brasileiro. Afinal, o vínculo estabelecido entre as plataformas digitais de serviços de transporte de passageiros e entregas e seus motoristas e entregadores possui natureza empregatícia? Contrariando a jurisprudência até então formada, em julgamento ocorrido no último dia 15 de dezembro, a 3ª Turma do TST formou maioria no sentido que sim!
Presentes no Brasil desde 2014, as plataformas de intermediação de corridas e entregas por aplicativos têm aumentado progressivamente sua participação no deslocamento de pessoas e encomendas das cidades, em virtude da conveniência e praticidade oferecida aos consumidores para sua utilização.
Paralelamente, diante de um cenário de estagnação econômica que perdura no país desde 2015, elevando as taxas de desemprego aos maiores patamares desde o início da série histórica, em 2012, a prestação de serviços por meio de aplicativos passou a ser a única alternativa de trabalho para um contingente de trabalhadores desempregados cada vez maior, formadores da chamada economia de “bicos digitais”.
Embora as plataformas não divulguem o quantitativo de parceiros cadastrados, dados de 2021 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicam que este número é de 1,4 milhão de pessoas, o que representa 31% do total de trabalhadores do setor de transportes no Brasil (que inclui ainda aviação, armazenagem e correios).
O conceito inicialmente propagado pelas plataformas de que a atividade de motorista parceiro seria uma forma de complementar a renda nas horas vagas passou a traduzir-se, na maioria dos casos, em trabalho de dedicação exclusiva, submetido a jornadas extenuantes como única forma de auferir sustento a partir daquela atividade.
Feitas estas ponderações, cumpre avaliar se estão presentes na prestação de serviço do motorista ou entregador de aplicativo os requisitos caracterizadores de uma relação de emprego. Em suma, para o estabelecimento do vínculo empregatício, faz-se necessária a identificação de forma combinada de quatro requisitos: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade, e subordinação.
Não parecem restar dúvidas quanto à presença da pessoalidade e onerosidade na relação, visto que é o trabalhador que, mediante cadastramento prévio na plataforma, realiza a viagem e é remunerado pelo serviço, não podendo, de acordo com os termos de serviço, uma viagem ser realizada por motorista diverso daquele que consta no cadastro.
Também está presente, na imensa maioria dos casos, a não eventualidade, visto que o trabalhador se vincula à plataforma de forma regular e habitual, usualmente com periodicidade diária e por várias horas ao longo do dia.
Recai sobre a presença da subordinação o cerne da discussão. Em sua defesa as plataformas alegam que o requisito da subordinação não se faz presente, uma vez que compete ao trabalhador logar na plataforma apenas nos momentos que desejar, não havendo jornada pré-determinada, ou sequer a necessidade de ativação da plataforma em uma periodicidade específica.
A esse respeito, é importante frisar que não é apenas na definição da jornada de trabalho pelo empregador ou na existência de um superior hierárquico que se faz presente a subordinação. Entende-se por subordinação a direção da prestação laboral pelo empregador, que determina o modo como o trabalho será realizado. No caso concreto, a inovação tecnológica apresentada pelas plataformas fez surgir a subordinação algorítmica, que é obrigatoriedade do cumprimento das regras e procedimentos definidos na programação do software da plataforma.
Uma vez logado no aplicativo, todas as ações do motorista são monitoradas e avaliadas pelo programa. A quantidade de corridas rejeitadas, a ocorrência ou não de reclamações dos clientes, o trajeto escolhido, o tempo de permanência ativo sem aceitar corridas, dentre outros parâmetros, são analisados, aplicando-se inclusive sanções, conforme o caso.
Argumentam ainda as empresas de aplicativos que em verdade apenas intermediam uma relação estabelecida diretamente entre o motorista/ entregador e o cliente final, sendo elas apenas provedoras de tecnologia. Tal argumento é facilmente superado na medida em que é a plataforma (e não o motorista) que define a política comercial a ser aplicada ao cliente, fato, aliás, que vem gerando grande insatisfação dos trabalhadores do setor, na medida em que as plataformas mantém as tarifas congeladas desde 2015, enquanto o valor dos combustíveis e dos veículos apresentam forte alta.
É inegável a importância que tais serviços representam na geração de renda e empregabilidade da população, especialmente em momentos de crise econômica. Indiscutível também a comodidade que tais soluções tecnológicas proporcionaram para o consumidor, entretanto, não se pode, sob o argumento da inovação tecnológica, permitir a alarmante precarização das relações de trabalho.
Cabe ao Estado observar a evolução das relações trabalhistas e prover a proteção básica aos trabalhadores, que atualmente sequer percebem férias, 13º salário ou cobertura previdenciária. Ao mercado (empresas de aplicativos), cabe observar a legislação e precificar adequadamente seus serviços para contemplar a correta remuneração do trabalhador.
Países como Inglaterra, Suíça, França, Itália e EUA já firmaram entendimentos no sentido da existência de vínculo empregatício em tais relações. Resta saber como o TST irá uniformizar a jurisprudência.
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*Marcelo Bandeira de Mello é advogado, diretor executivo de empresas de transporte coletivo na Região Metropolitana do Recife e membro do Conselho de Inovação da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU)
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