Estamos na Semana Nacional de Mobilidade, celebrada entre os dias 20 e 24 de setembro, momento oportuno para refletir sobre melhoria da segurança nas ruas de todas as cidades do país. Para tratar dos vários pontos relativos à mobilidade de pedestres, ciclistas, passageiros do transporte coletivo, motoristas e motociclistas, o Mobilize conversou com José Aurelio Ramalho, diretor-presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária. Passado o primeiro momento da pandemia de Covid-19, conta Ramalho, infrações com motos por exemplo já superaram em 2021 os números de 2019. Leia esta entrevista encorpada com dados, gráficos e tabelas, reunidos pelo especialista.
José Ramalho, diretor do Observatório Nacional de Segurança Viária
Comparado com outros países, qual a posição do Brasil no número de ocorrências de trânsito envolvendo pedestres, motos e bicicleta?
De acordo com o Global Status Report on Road Safety 2018, em 2016 os países com maior número de mortes no trânsito foram, em ordem, Índia, China, Brasil, Estados Unidos da América, Federação Russa e México. A partir desse grupo é possível avaliar a proporção de óbitos referentes aos modos de transporte mencionados. Assim, nota-se que:
- Em relação aos pedestres, o Brasil detém um valor mediano, acima da Índia e dos EUA, mas abaixo da Federação Russa e do México.
- A proporção de ciclistas sobre os óbitos não varia muito entre os países, mas, entre aqueles analisados, o Brasil possui a maior.
- A proporção de motociclistas mortos no Brasil é alta, apenas atrás da Índia.
País
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População
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Número de mortes
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Proporção de pedestres
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Proporção de ciclistas
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Proporção de motociclistas
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ÍNDIA
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1,38 bi
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299.091
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10%
|
2%
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40%
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CHINA
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1,44 bi
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256.180
|
-
|
-
|
-
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BRASIL
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212 mi
|
41.007
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18%
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3%
|
31%
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EUA
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331 mi
|
39.888
|
15%
|
2%
|
14%
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RÚSSIA
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146 mi
|
25.969
|
29%
|
2%
|
6%
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MÉXICO
|
129 mi
|
16.725
|
29%
|
1%
|
10%
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O que é preciso fazer para aumentar a segurança nas cidades para quem caminha ou pedala? Qual o papel do poder público nessa tarefa?
O poder público precisa dar condições de caminhabilidade para quem precisa ou opta por ir a pé, e igualmente criar condições de segurança para quem prefere a bike a outros modos de transporte. Porém, não são somente calçadas com condições adequadas para os pedestres o que incentiva o caminhar, mas sim a consciência da população. Projetos de calçadas seguras devem ser implantados simultaneamente com conscientização sobre a importância do andar a pé. Portanto, é importantíssimo que a sociedade esteja ciente de que trajetos curtos, em bairros seguros e com passeios adequados, são um convite para as caminhadas. Isso vale também para os ciclistas; as autoridades devem, em parceria com a iniciativa privada, incentivar e conscientizar a população sobre os benefícios da bicicleta. Ao mesmo tempo, é preciso que condutores sejam impactados com mensagens de respeito e gentileza àquele que vai de bike. A segurança de todos depende da atitude de cada um.
Se inicialmente a pandemia reduziu o tráfego e permitiu perceber os efeitos benéficos trazidos pelo menor uso de veículos automotores, agora nota-se um incremento na circulação de automóveis, talvez pela necessidade de evitar o transporte público. Há como convencer as pessoas a usarem menos seus veículos individuais?
Somente com campanhas permanentes de conscientização é que essa mudança de comportamento ocorrerá. E não existe diálogo social sobre trânsito, mobilidade, benefícios e meio ambiente, no nosso cotidiano. Somente em épocas bem sazonais, como durante o Maio Amarelo e a Semana Nacional de Trânsito, é que esses assuntos vêm à tona e aparecem com mais frequência na mídia. O Brasil carece de uma política nacional de incentivo ao transporte público, ao transporte por aplicativo e aos modos suaves de transporte (a pé, patinete, bicicleta e skate). Sem a massificação de informações sobre o benefício que esses modos trazem a toda a sociedade, nossos conceitos sobre trânsito não mudarão. E isso não deve partir somente do poder público, e sim dos influenciadores, das empresas (independente do ramo de atuação), das lideranças em todos os níveis e em todas as cidades.
O processo da pandemia trouxe também um forte incremento na circulação das motos de entrega. Para realizar o serviço rapidamente, muitos desrespeitam as normas de trânsito, furam sinais, quase num processo de "naturalização" dessas práticas. Já há como quantificar se a crise sanitária trouxe maior número de acidentes com motociclistas ou de atropelamentos?
As informações sobre infrações são disponibilizadas pela Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) apenas a partir de 2019, de maneira que a análise histórica fica prejudicada. Ainda assim, comparando os valores de infrações associadas à condução de motos, para o mês de abril dos anos de 2019, 2020, e 2021 percebe-se que em 2020 houve realmente uma queda brusca nesses valores, e que, em 2021, os valores superaram os de 2019.
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Infração
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Abr/2019
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Abr/2020
|
Abr/2021
|
Variação 2019/20
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Dirigir veículo sem possuir CNH ou Permissão para Dirigir (PPD)
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73.553
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10.581
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105.676
|
44%
|
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Dirigir veículo com CNH ou PPD suspensas
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9.706
|
414
|
4.769
|
-51%
|
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Dirigir veículo com CNH de categoria diferente da do veículo + dirigir CNH ou PPD suspensas
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4.533
|
714
|
7.858
|
73%
|
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Dirigir veículo com CNH/PPD vencida há mais de 30 dias
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23.044
|
1.750
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24.448
|
6%
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Permitir posse/condução do veículo a pessoa sem CNH ou PPD
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16.391
|
1.018
|
33.246
|
103%
|
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Permitir posse/condução do veículo a pessoa com CNH ou PPD cassada + Permitir posse/condução de veículo a pessoa com CNH/PPD suspensas
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1.484
|
77
|
1.293
|
-13%
|
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Permitir posse/condução de veículoa pessoa com CNH ou PPD de categoria diferente da do veículo
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848
|
78
|
2.122
|
150%
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Conduzir motocicleta, motoneta e ciclomotor sem capacete de segurança
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25.870
|
2.312
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30.601
|
18%
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Conduzir motocicleta, motoneta e ciclomotor com passageiro sem capacete
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15.075
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1.692
|
21.868
|
45%
|
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Conduzir moto/motoneta/ciclomotor transportando criança menor de 7 anos
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644
|
100
|
1.397
|
117%
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Em 2011 a ONU decretou a Década de Redução de Acidentes de Trânsito. Chegamos agora ao final desse período em situação pior ou melhor para a segurança viária? Algum país tem o que comemorar?
Incluí alguns gráficos para demonstrar: o Gráfico 1 mostra, na linha mais escura, a previsão de número de óbitos no trânsito no Brasil, feita a partir dos dados dos anos anteriores ao período, e, na linha mais clara, o número de óbitos que cada ano deveria ter para que ao fim do período fosse alcançada a meta da Década (redução de 50% dos óbitos previstos para 2020). Assim, o número de vidas a serem poupadas (redução no número de óbitos) a cada ano é representado nas colunas cinzas, que nada mais são do que a diferença entre o valor da linha mais escura e da mais clara.
Gráfico 1- Meta da Década Mundial de Ação pela Segurança no Trânsito no Brasil
No Gráfico 2, é possível reparar que o número de óbitos que ocorreram de fato (linha amarela contínua) sofreu redução em comparação com o previsto (linha tracejada mais clara), mas ainda assim foi superior ao estipulado como ideal anteriormente (linha traçejada média) na maioria dos anos, de tal forma que as reduções anuais (valor representado nas colunas cinzas do gráfico anterior) não foram alcançadas plenamente.
Gráfico 2 - Número de óbitos causados por sinistros de trânsito por ano no Brasil
No Gráfico 3 é mostrada a porcentagem da redução anual desejada (colunas cinzas do primeiro gráfico) que foi alcançada. A redução alcançada seria a diferença entre os valores da linha tracejada mais clara (previsão de aumento) e a linha mais amarela contínua (realidade) do Gráfico 2. Para o ano de 2011, por exemplo, a redução desejada era de 2.807 óbitos, e podemos ver que houve uma redução de 1.233 óbitos (44.489 óbitos esperados e 43.256 óbitos ocorridos), o que representa 44% do desejado.
Gráfico 3 - Porcentagem das metas anuais da Década cumpridas no Brasil
É possível perceber que, a partir de 2018, a redução alcançada é maior do que a esperada, indicando que a partir desse ano o Brasil apresentou valores até melhores que a meta. Os dados definitivos do Datasus de 2019, reiteram essa afirmação, sendo que nesse ano foi cumprida 102% da meta anual.
Pode-se calcular também o número total de mortes que se desejava evitar até 2019, por meio da soma dos valores das colunas cinzas do Gráfico 1, o que resulta em 134.424. Somando as reduções que foram alcançadas anualmente, percebe-se que foram de fato evitadas 117.639 mortes até 2019, o que mostra que apesar de ser visto um número abaixo até mesmo do que a meta estipulava, até então não tinham sido evitadas tantas mortes quanto se desejava.
Nessa análise, preza-se pela avaliação dos valores anuais, e não somente do número de óbitos em 2020, porque levou-se em consideração a possibilidade de que um ano isoladamente não representa a realidade da segurança viária no país, visto que vários fatores podem contribuir para anomalias na série histórica de acidentes. O fato é que 2020 foi um ano em que a mobilidade sofreu grandes alterações, o que reforça ainda mais tal análise.
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