Um caminho possível e sustentável para o transporte público

Uma entrevista detalhada com o prefeito que estabeleceu a gratuidade para resolver o desafio do transporte público em sua cidade. Ele conta tudo, tintim por tintim...

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: Marcos de Sousa/Mobilize Brasil  |  Postado em: 25 de agosto de 2021

Josué Ramos, defensor do transporte tarifa-zero

Josué Ramos (PL), defensor do transporte tarifa-zero

créditos: Pref. Vargem Grande Paulista


Logo ao tomar posse para sua primeira gestão, em 2017, o prefeito Josué Ramos, teve que encarar uma crise profunda no transporte coletivo em Vargem Grande Paulista, município da Região Metropolitana de São Paulo. Os ônibus perdiam passageiros, a empresa concessionária exigia a elevação da tarifa para compensar as perdas, e a qualidade do serviço estava em queda livre. Numa ação rápida, o prefeito "improvisou" um transporte emergencial, buscou apoio com especialistas e construiu um novo modelo para a gestão do transporte coletivo, com tarifa zero. Nesta entrevista, o advogado de 57 anos que já foi cobrador de ônibus explica como chegou, em 2019, a essa solução, que ele considera adequada para muitas cidades brasileiras. E que tem sido aprovada pelos moradores...


Vargem Grande Paulista, com sua operação de ônibus tatifa zero se tornou uma referência nacional para o transporte público, que está em crise em todo o Brasil. Depois de 21 meses de tarifa zero, qual é o balanço? 

Vargem Grande se tornou uma referência, inclusive com alguns apontamentos internacionais em Portugal, com relação ao transporte público. A experiência aqui na cidade foi tema de debates e seminários internacionais e neste momento de crise no Brasil após 21 meses o balanço é muito positivo. Nós inauguramos o serviço em novembro de 2019, logo depois veio a pandemia, mas nós jamais imaginávamos que essa opção faria tamanha diferença para o funcionamento do transporte público. O transporte coletivo no Brasil já vinha encontrando grandes dificuldades porque quando cai o número de passageiros, os custos continuam os mesmos para o empresário e ele tem que procurar manter o equilíbrio de contrato. Nesses casos, ele requer o aumento da tarifa ou o aumento do subsídio do transporte. E na maioria das vezes, ou sobra para o bolso do usuário, ou sobra para o município, o que indiretamente também sobrecarrega o bolso do usuário com impostos. E por isso nós buscamos um caminho alternativo.

 

Como tudo começou e quais foram os pontos principais para que a cidade optasse pela tarifa zero? De onde vieram os recursos que permitiram o subsídio ao transporte público?

Em 2017, quando eu assumi o primeiro mandato, me deparei com uma empresa operando no município de forma precária, alegando que o valor da tarifa não era suficiente para cobrir as despesas. A empresa exigia que a prefeitura aumentasse a tarifa ou concedesse um subsídio para o transporte. Como não havia previsão orçamentária, eu não fiz nem uma coisa, nem outra. O empresário decidiu encerrar o serviço e ao meio-dia ele nos comunicou que a partir da meia-noite não haveria mais o serviço de ônibus na cidade. Para atender à emergência, eu chamei todos os motoristas da prefeitura, peguei todas as minhas vans, contratei mais três vans e em apenas um dia a prefeitura assumiu o serviço de transporte, totalmente gratuito, até porque não havia como fazer a cobrança. Assumimos esse risco por 45 dias e fiz uma uma análise de como isso iria proceder. Suspendi o contrato com a empresa anterior e abri um contrato emergencial sem aumentar a tarifa e sem ter que conceder subsídio. Um empresa assumiu o serviço e enquanto isso continuamos o estudo, agora com apoio de uma consultoria.


Mas, como o problema foi equacionado para que o sistema de ônibus pudesse funcionar sem a catraca? De onde vieram os recursos para absorver os custos?
Primeiro nós buscamos atender à questão social, das pessoas desempregadas, que às vezes andavam quilômetros pra buscar um emprego por não ter condições financeiras de arcar com esse custo. Segundo, também procuramos atender aos empregadores, que puderam deixar de pagar o vale-transporte para os funcionários, pagando apenas uma taxa de 39 reais. Como todos sabem, o custo do vale-transporte para o empregador gira em torno de 10% a 12% da folha de pagamento. E com isso, os empresários puderam gerar mais emprego na cidade e priorizar a mão de obra local para não ter que ter pagar o vale-transporte.

O estudo de viabilidade apresentado pela consultoria mostrava que para manter um serviço de qualidade diante da demanda teríamos um custo de R$ 650 mil mensais e que com a demanda de passageiros daquele momento teriamos uma arrecadação em torno de uns R$ 150 mil por mês. Então, a prefeitura teria que arcar com essa diferença de aproximadamente R$ 450 mil para ter um serviço eficiente. Pedi um outro estudo, para avaliar o custo se nós assumíssemos a gestão do serviço e contratássemos, por meio de aluguel os ônibus com o motorista e combustível por conta da empresa. Então eu resolvi abrir um processo licitatório para locação de ônibus com motorista e manutenção por conta da empresa e a gestão da frota por conta da prefeitura. sendo nossa. 

Quando fizemos a licitação, conseguimos reduzir o valor para R$ 390 mil por mês, que é o nosso custo até hoje para operar com 13 ônibus, com tudo por conta da empresa.
Mas o importante, como eu já citei, é que os horários, as condições de circulação e as linhas são estipuladas e controladas pela prefeitura. Desta forma, se aumenta o fluxo de passageiros numa determinada linha nós podemos ajustar, porque temos essa fiscalização constante para poder fazer esse ajuste.


Então, o senhor acha que o modelo tradicional de concessões de transportes não funciona mais?
No sistema de concessão, os empresários acabam colocando custos adicionais sobre a operação, porque os prazos são muito longos - de dez, vinte anos - e eles têm que considerar a depreciação da frota, a flutuação do número de passageiros, enfim várias incertezas. Então, quando eles estabelecem a planilha do custo operacional, eles procuram incluir o máximo de coisas imprevisíveis e isso acaba onerando muito o custo da operação e, consequentemente, a tarifa. Há também o lucro do empresário, e ele tem que estimar também possíveis prejuízos, possíveis ajustes que tenha que fazer e isso acaba dificultando o cálculos dos custos e onerando muito a todos.

Com a pandemia, os municípios viram a diminuição do número de passageiros, mas os custos ficaram e as prefeituras e os empresários estão tendo grande dificuldade de ajustar as tarifas ou os subsídios. Aqui em Vargem Grande Paulista, nós não estamos sofrendo esse problema, tendo em vista que o serviço já vinha sendo prestado de forma totalmente gratuita. Tenho conversado com outros prefeitos e vejo o desespero deles com relação ao sistema tradicional de concessão de serviço.


Com a gratuidade houve aumento de passageiros e foi necessário aumentar a frota? Hoje são quantas linhas e quantos veículos operando na cidade? 
Nós começamos a operação da tarifa zero com quatro linhas, aumentamos para sete linhas, inicialmente com oito ônibus e aumentamos para treze. Estamos controlando o fluxo diariamente, o aumento de passageiros, a possível flexibilização de horários e a quantidade de ônibus por linha. E até o final do ano estimamos um crescimento de 25% da demanda e da frota. É muito mais fácil e tranquilo fazer isso quando o serviço tem uma gestão própria

Antes de implantar o serviço eu fiz algumas pesquisas em algumas cidades que já tinham o tarifa zero. Um exemplo é Maricá, no Rio de Janeiro, mas lá eles têm os recursos do petróleo  então não é uma referência para nós. Outra opção é Agudos, no interior de São Paulo, cidade que tem uma população muito próxima à população de Vargem Grande Paulista, em torno de 55 mil habitantes, e que optou por comprar ônibus e contratar motoristas concursados. A gestão é do município, mas se o motorista fica doente, não é possível substituir de imediato, se o ônibus quebra, você depende de processo licitatório, que é muito moroso no serviço público. Com a locação, se o ônibus quebrou, a empresa tem meia hora pra colocar outro no lugar...


As empresas de ônibus da região não fizeram alguma pressão contra a gratuidade?
Muita gente me questionou sobre isso quando eu comecei a pensar em trazer essa ideia da Tarifa Zero para o município.

E eu mostrei que esse sistema é benéfico também para as empresas, porque no final de cada mês o empresário que aluga seus ônibus sabe que ira receber um valor fixo, independente se transportou dez ou mil pessoas.

Então, quando eu conversava com os empresários que vinham me questionar nesse ponto, todos entendiam perfeitamente que esse sistema é é bom para todos, bom para a Prefeitura, para o usuário do serviço e bom para o operador de serviço, que hoje não tem essa previsibilidade de quanto irá arrecadar.


Quem ganha com a tarifa zero? É possível medir os benefícios à economia da cidade?
A nossa experiência mostrou que todos ganham: os usuários, a empresa de ônibus, e os comerciantes, porque a livre circulação das pessoas aumentou o movimento no comércio local, o que trouxe uma economia circulante para a cidade. E ganha também a prefeitura, que consegue arrecadar mais impostos, com aumento significativo de ISS e ICMS.


Ônibus do sistema de transporte da cidade: gratuidade com redução de custos Foto: Pref. VGP


Os especialistas que ouvimos até agora - já fizemos várias matérias sobre o tema - dizem que o problema é a falta de uma política federal que organize esse setor. Vargem Grande Paulista é uma exceção ou é uma chave para abordar o problema em outras cidades do país? Seria possível elaborar/desenvolver uma proposta/manual para orientar outras cidades?
Todos os custos de serviços públicos, sejam estaduais, federais ou municipais, na saúde, na segurança, todos esses custos já são estabelecidos e são absorvidos pelos impostos que todos nós pagamos. Nada é de graça, tudo tem um um custo.

Os governos deveriam pensar numa política de gratuidade para o transporte público da mesma forma como é o serviço de saúde, como é o SUS, que é gratuito para a população, porque o transporte também é um direito de todos, previsto na Constituição. Eu estimo que seria um investimento pequeno - e não um gasto - que traria um enorme benefício para o país.

Primeiro, é uma questão de ecologia, porque muita gente vai deixar o carro em casa e isso vai diminuir o fluxo de veículos nas ruas e poderá mudar totalmente o sistema de mobilidade urbana no país. Eu entendo que essa mudança exige quebras de paradigmas e é muito difícil a gente colocar isso na cabeça de alguns gestores. Mas, eu estou pronto para debater o assunto em qualquer âmbito, e principalmente com o Governo Federal, porque todos sabemos que enquanto o sistema de transporte continuar como está, ele estará fadado a entrar em colapso, especialmente agora nesse momento da pandemia.


O senhor acredita que o modelo de tarifa zero com ônibus locados e gestão da prefeitura pode ser aplicado a outros municípios do país?
Eu já passei orientação para outras cidades e tenho estado sempre à disposição para discutir o assunto com prefeitos e nas câmaras municipais de outras cidades. A mudança de de modelo depende das condições de cada município, porque algumas prefeituras têm contratos de longo prazo e seria necessário avaliar a questão jurídica dessa substituição do sistema de concessão para a operação própria. Nosso município tem 55 mil habitantes e, como todos sabem, dos 5.570 municípios do Brasil, mais de 5 mil têm uma população menor do que a de Vargem Grande Paulista. Então, se pensarmos em nível Brasil, tem muito que ser feito, a ser estudado, mas avalio que essa política de transporte gratuito pode ser ampliada nacionalmente.


Há alguma avaliação sobre o nível de satisfação da população em relação ao transporte gratuito?
A Prefeitura já fez várias pesquisas de opinião e hoje nós temos cerca de 80% de aprovação do serviço, mesmo considerando uma parte importante da população que não usa o transporte público. Muitas senhoras que não saíam de casa, muitas crianças que não praticavam esporte passaram a circular pela facilidade do ônibus com tarifa zero. Foi uma decisão que promoveu a inclusão social e que eu julgo irreversível aqui em Vargem Grande Paulista.


Para concluir, há quem diga que tudo o que é grátis tende a ser desvalorizado. É possível manter a "gratuidade" e garantir a qualidade, conforto e segurança no transporte, de forma a atrair novos usuários?
Claro que sim. Nós vamos manter a gratuidade. Vamos aumentar o serviço, como eu já citei, vamos procurar a renovação da frota e buscar ter uma frota com no máximo cinco anos de uso, com acessibilidade, e com uma fiscalização constante, para garantir o conforto e a segurança, que é o que todos esperam de um bom serviço público.


Quer saber mais?

Ouça o Expresso Mobilize #54

 

 

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