O lado bom de andar a pé

José Osvaldo Martins continua caminhando e olhando a cidade. Neste texto ele mostra as belezas que só se vê andando a pé. Vamos com ele...

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Fonte: Mobilize Brasil  |  Autor: José Osvaldo Martins*  |  Postado em: 17 de agosto de 2021

Andar para ir, para voltar, andar por andar

Andar para ir, para voltar, andar por andar

créditos: José Osvaldo Martins



Em meu último artigo - Pedestre: Não verás calçada alguma - fiz um resumo dos obstáculos e desventuras a que estão sujeitas as pessoas que andam pela cidade. Neste, por outro lado, falo das coisas boas de andar a pé. Tudo que digo aqui é melhor se feito com calma, embora mesmo com pressa possamos perceber estas coisas.  Quando digo a pé, pode ser figurativo, já que você verá as mesmas coisas rodando sua cadeira por aí. Na verdade, o que faz a gente perceber essas coisas é a velocidade mais baixa propiciada pelo “caminhar” e, claro, uma disposição em “ver”.

 

É a pé que vemos e sentimos melhor as coisas... É andando que sentimos o cheiro das flores, das folhas, dos frutos, das árvores. Vemos suas formas e texturas, ouvimos o barulho que fazem seus galhos quando venta.  Vemos a fruta cair no chão. Andando vemos o rosto das pessoas, suas formas, sorrisos e semblantes, ouvimos suas vozes. Vemos seus olhos. Sentimos o chão, sua dureza firme, sua forma, suas superfícies, nuances. É andando que você pode sentir o sapato, seja um tênis, uma sandália ou chinelo e perceber seu conforto. Andar descalço também, por que não? Andando você vê as casas, suas diferenças, sua arquitetura, sua personalidade.


É batendo perna que se pode apreciar os jardins e suas variadas formas. Olhamos os prédios e suas alturas. Vemos o céu, suas cores. Vemos as nuvens, sentimos a luz do sol, a brisa do vento. Ouvimos o vento. A música que sai das casas. O barulho da cidade, o cheiro da cidade. O canto dos pássaros e dos insetos.


Há quem ande para chegar, há quem ande por andar. Há quem ande por trilhas no mato, há aqueles que andam nas praças, parques, shoppings, galerias ou museus. Há quem ande de mãos dadas, há quem ande com os amigos, há quem ande só e não veja problema nenhum nisso.


Andando vemos os desenhos nos muros. Os gatos sentados no muro. Os cães e seu jeito de andar engraçado. Sentimos o ar encher nossos pulmões. É caminhando que vemos a beleza da lua. Ouvimos o silêncio da noite. Respiramos o cheiro da comida saindo das casas e ouvimos gargalhadas de alguém lá dentro. Andando podemos perceber a beleza particular de cada pessoa, sua graça.

 

                                          Em algum momento até o motoqueiro tem que andar. Foto: José Osvaldo Martins

 

Caminhando ouvimos a garotada feliz no intervalo da escola. Damos informação a um desconhecido e quem sabe até trocamos algumas opiniões. Ouvimos o barulho das crianças brincando, as palavras de um bebê.  Damos um bom dia, uma boa tarde a qualquer um, só por dar. Alguém passa cantarolando e você sorri sozinho. O sorvete de alguém cai no chão e você sofre pela pessoa. Alguém tropeça e você não sabe se ajuda ou segura o riso.


Caminhando empurra-se o carrinho do bebê enquanto ele vai vendo o mundo, tranquilo, tranquilo. Andando desaceleramos e damos valor ao tempo. Sentimos o esforço de subir a ladeira e o prazer de descê-la.  É a pé que podemos ver o garoto deslizando gracioso em seu skate e a turma pedalando as bicicletas. Vemos as pipas no céu e ficamos abismados quando reparamos no emaranhado de fios que correm pelos postes. Olhamos curiosos os produtos nas lojas. Vemos os homens trabalhando, concentrados e apressados.


Somente a pé se entra na feira de rua. Só a pé reparamos no rastro das formigas. Só andando apreciamos a borboleta que pousa numa flor. É andando que paramos para ver a revoada dos pássaros ou o planar do beija-flor. Vemos uma festa no quintal ou as pessoas conversando pela janela como antigamente. Caminhar para trabalhar, caminhar para fazer companhia, caminhar para descansar.


Andando fazemos a digestão do almoço. Andando sentimos a chuva e quem sabe vemos o barquinho de papel passar levado pela água. É a pé, que as crianças vão brincando com os desenhos do chão. Que se pode ver a luzes refletidas nas poças formando caleidoscópios. As sombras fazendo desenhos abstratos. Caminhando vemos as tantas diferenças e semelhanças que são próprias do mundo.


Andando pensamos, divagamos, refletimos. Andando espantamos o frio. Sentimos o calor, paramos à sombra, bebemos uma água, um suco, um refrigerante e saciamos a sede. E me desculpem os drive-thrus, mas entrar num restaurante é uma sensação que carro nenhum pode dar. As pessoas costumam dizer ao passar a pé por um lugar já conhecido: “Puxa! Eu passo há anos de carro por essa rua e nunca tinha reparado nessa casa ou nesse jardim.”- claro, é só no tempo do andar que se pode ver algumas coisas.


Você pode dirigir o quanto for para chegar à praia, mas chegando lá são os pés que vão pisar a areia. E só fora do carro é que se ouve o barulho das ondas. Caminhando cantamos aquela música que vem à mente do nada ou ouvimos no fone de ouvido. Andando fortalecemos o corpo e o espírito. Espairecemos. Andar pra esquecer, andar pra lembrar. Andar por andar.

 

                               Uma moça caminha em meio à cidade Foto: José Osvaldo Martins

 


O sacrifício e o prazer da jornada
Buda, Jesus, Maomé, Krishina, Zaratustra, Confúcio...e tantos outros. Todos eles para se provar fizeram da caminhada uma jornada de autoconhecimento. Ao andar tiveram que transpor os obstáculos com sua própria força, sem artifícios. Fizeram da caminhada sua experiência de iluminação. Realizaram suas peregrinações, muitas as vezes a pé, como sinal de humildade e sacrifício, para poder conhecer o mundo real, onde o homem precisa pôr os pés no chão para saber o valor das coisas e sentir-se vivo. Jesus andou por quarenta dias no deserto, Buda perambulou pela Índia, Moisés subiu a montanha. O andar parece estar vinculado sempre a meditação, ao esforço e reconhecimento da beleza do mundo. Dificilmente você verá histórias onde um iluminado conhece o mundo de cima de um cavalo ou de uma carroça, isso porque o caminhar sobre as próprias pernas é algo divino que abre portas essenciais aos sentidos. Um ato simples como andar, por vezes parece guardar algo de místico. Caminhe percebendo as coisas ao seu redor e você verá.


Observe que sempre que as pessoas buscam uma jornada de penitência e autoconhecimento elas o fazem a pé, pois isso dá outro valor ao caminho, seja fazendo o caminho de Santiago, andando até Aparecida do Norte, Juazeiro ou qualquer outro destino simbólico. A peregrinação exige desapego. O motivo único é o de tocar o chão sem intermédios de aparelhos inventados pelo ser humano, pois isso dá mais valor a jornada. Embora o andar tenha algo de sacrifício devido ao esforço, o prazer de nos transportarmos pela nossa própria força de um lugar a outro está intimamente associado à caminhada.


Grandes pensadores de todo mundo faziam da caminhada seu momento de relaxamento, e ao andar surgiam grandes ideias. O verbo flanar (do francês, flaner), foi comum entre intelectuais na época da revolução das máquinas, pois com o crescimento acelerado dos centros urbanos, caminhar era poder observar a incrível e complexa sociedade se transformando. Mas o andar como forma de conhecer e sentir sempre existiu.  Repare ainda, como o termo flanar se parece com flutuar, talvez porque caminhar só por caminhar seja como flutuar sobre o chão, tocamos o solo, mas a mente voa.  Nesta sociedade de um hiper-utilitarismo corrompido, caminhar é voltar às origens. Andar é a liberdade de sentir.


Se o homem chegou à Lua, não foi a marca do veículo lunar que ficou na história. Ao caminhar no astro, o que ficou imortalizado no solo, foi a sua pegada. Você pode navegar o mundo inteiro, mas é ao tocar o chão que você se sente em casa.


Que pena de quem esqueceu disso.

 

“É bom andar a pé. Sem sapato, sem direção, à toa. Na cabeça o sol, um boné (...) devagar, para aguentar o calor” (Gabriel Moura/ Pedro Moura).

 

Por mais que você queira, tem coisas que o carro não te dá. Continue caminhando.

 

*José Osvaldo Martins é jornalista de formação, com especialização em Ensino Lúdico e extensão em Geografia Urbana, entre outros. É trabalhador, pagador de impostos, cidadão, pai, escritor quando há tempo, motorista habilitado, ciclista por prazer, mas no fundo só um caminhante que vive e circula na Grande São Paulo.

 


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